terça-feira, 19 de maio de 2020

Comprimidos e todo o tipo de rodas, bloody music


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T Capítulo XIII
Death In June: The last farewell
ZMB: Intermission III

Neste momento, é uma coincidência agradável, bastante feliz aliás, ter conhecimento de alguém perto a quem possa ir comprar um pouco de paz, se eu quiser claro, e claro que quero, eu estou necessitado. Hoje, a aflição dos testes e do referendo passou, ando mais calmo, larguei as pastilhas da prescrição, afinal, a visita de rico ao psiquiatra privado resultou em exorcismos auto macerados, em vodka misturada com comprimidos Normison. Tenho de encontrar o tom para voltar a descrever o inferno da viagem ao subterrâneo, ainda não disse tudo, ainda me falta falar dos desvios de identidade em que me torno quase gaja, ainda me falta aludir às frases assassinas como então mata-te: frases ditas a quem procura conforto e ajuda, companhia, namoro, frases sádicas ditas por se ter perdido o amor por quem se sente e se confessa moribundo, e, no momento da aflição e da desconfiança, não sabe como sair do buraco, nem ela nem nenhuma outra mulher quer namorar um moribundo, um caído em desgraça e só um padre pode querer ajudá-lo com a hóstia. Um padre ou um predador sexual a tentar seduzi-lo como troféu de caça.
Caminho já noite e não encontro ninguém. Vou perdido no meu real eu distorcido e sem muita vontade de voltar a ver G, porque não estou ainda em condições de ser visto por ela, mas tenho curiosidade de saber o que os nossos olhos dirão hoje, dois meses depois. Decidimos ver-nos para trocar os pertences defuntos. Hoje, vejo-a inquieta, nervosa e isso preocupa-me. Não falamos muito porque não temos muito para falar ou porque não devemos querer falar. Ela treme, nem um café ela pede à empregada, não quer falar. Tudo é rápido, muito rápido. Não dá tempo para pensar, trocamos as palavras necessárias, dá-me um livro de Sade e diz que quando o comprou pensou em mim, engole homem!, eu devolvo-lhe a máquina fotográfica que me emprestara. Depois, levanta-se e sai. Separamo-nos para sempre. Nem mais uma palavra sequer. Parece definitivo. Afinal, ela anda a comprimidos a tratar uma depressão por causa de mim e eu sinto-me o culpado, e esqueço que também ela não teve sempre razão, e, se calhar, ela está deprimida não por eu a ter deixado mas porque tem remorsos de, quando eu desabafei estar a ponto de me desfazer por me sentir incapaz, ela ter dito para eu me matar, então ela está deprimida porque eu tive a coragem de lhe fazer a vontade e falhei covardemente.
Tudo isto, é absurdo, fizeste-me bem e fizeste-me mal, eu fiz-te bem e fiz-te mal. Depois, logo a seguir, entro noutro café e desenho num guardanapo um homem ajoelhado em frente da sua cruz, sou eu, claro, a fazer-me de vítima, e lembro a aparente frieza do encontro com ela, a muita rapidez, o minimalismo, a ganza ainda não está, ainda não comecei a pensar e, por isso, a realidade parece-me ter sido encenada, o nervosismo seria dissimulado, a minha aparência indiferente seria dissimulada e essa rapidez... afinal de contas gostei do momento! Teria sido uma bela representação teatral mas como não é teatro nem cinema mas sim a vida, o dia-a-dia...
Sim, gostei do momento. O problema é que ele dá-me vontade de continuar a beber, de entrar na merda outra vez, há muito tempo que não tenho um daqueles delírios. Talvez hoje?
Por todas estas razões, claro está, é uma feliz coincidência saber que poderei ir bater à porta de um tipo e pedir uma milena de paz, outra de alegria, e uma terceira para umas horas de esquecimento, e tu estás tão dentro desse quadro que só tu vês o que lá está... disse-me ela uma vez e eu agora respondo, dando-lhe razão e pensando no diálogo de uma música de Tuxedomoon: ah claro, as microondas, a viagem espacial com certeza... o bom destes momentos é eu poder fechar-me sobre mim próprio, esquecer tudo e, ainda assim, sentir-me feliz e dizer amanhã é outro dia, amanhã suportarei tudo de novo.
Saio de casa do vendedor com uns ramos de arbusto enrolados em papel de jornal, vou rápido para casa para não ser denunciado pelo cheiro da planta. Ao chegar a casa, preparo um café de saco cinco estrelas e passo à vontade uma meia hora a desfazer os cabeços de marijuana para dentro de um saco de tabaco Águia, ainda bem que o Ernesto é um gajo fixe e, por três mil escudos, tenho agora um maço de Águia cheio para fumar, ele disse que era erva da melhor qualidade, vou fazer um éle e fumar já uma valente broca... entretanto, vou pôr a tocar a cassete com a melodia The last farewell enquanto verbalizo para o minidisc a história da luta intestina entre Ernesto Wilde e Ernestine Genet. É um amor visceral.
(Lado A, início.)
Quando Ernesto chega a casa senta-se na poltrona. À sua frente, o espelho ocupa toda a parede. Na mesa-de-cabeceira, a seu lado, tem o cinzeiro e a caixa de fósforos.
(Um longo silêncio.)
Dá-me lumes.
Obrigado! Não o apagues. Deixa-o consumir-se.
Lembro-me agora que ontem tinha algo para te dizer, não te disse, não sei o que era, tentava lembrar-me agora mas esqueci-me completamente.
É natural. Isso acontece... mas não te lembras sequer das formas gerais?
Bem, creio que te queria dizer qualquer coisa como quanto és belo e adorável mas a frase, que deveria em meu entender deslumbrar, esqueci-a por completo.
Não penses mais nisso. Não vale a pena nem são necessárias grandes frases poéticas e românticas para comigo. Não é necessário!
(Após um longo silêncio, o necessário para colocar a beata no cinzeiro, o dialogo é retomado.)
Contigo é tudo tão fácil, fazes-me sentir tão liberta, tão abstraída da realidade que...
Hum calma! Não exageres. Incomodas-me porque soa falso. A vida é algo mais que a sensação de estarmos mergulhados num mar perfumado de rosas.
Adoro o modo como jogas com as palavras, com as frases feitas, expilica-te plise.
Olha, eu detesto dar explicações. Não estás à espera que me vá contradizer, pois não?
Bem, gostava que, por breves momentos, esquecesses esse teu orgulho de caranguejo e explicasses o porquê de não gostares de dar explicações.
Porque peru falando sai apanhando. Porque o silêncio é de ouro. Porque as gavetas estão fechadas. Porque peru calado ganha um cruzado.
(Rio-me suavemente, acendo novo cigarro e ouço divertido.)
Porque mais valem, às vezes, cinco minutos de silêncio que trinta minutos de conversa.
Concordo mas nem sempre és assim.
Obviamente que não. Isso depende das circunstâncias. Existem alturas em que, por qualquer motivo, me emociono e interrompo frases alheias e debito longos discursos sobre... sobre, olha às vezes, sobre velhas banalidades gastas. E delas faço histórias com princípio, meio e fim. E nunca mais me calo. E, geralmente, ninguém me interrompe nem nunca ninguém parece acompanhar ou concordar. Apenas se riem divertidos e não sei se do que digo, se da minha expressão, sei lá de quê?! Nessas ocasiões, bem que gostaria de ter um espelho apontado a mim, como agora, para obter a certeza, ou melhor, para talvez eliminar uma das possíveis... uma das possíveis hipóteses acerca da risota. Mas nessas ocasiões nunca tenho um. O que realmente acontece é fartar-me deles se rirem de mim, e fartar-me deles, e fartar-me de mim próprio. Então, como, por formação, tenho quase sempre a estúpida delicadeza de me não levantar e sair, calo-me abruptamente e desligo por tempo indefinido.
(Longo silêncio. O frio começa a fazer-se sentir. A Elsa está deprimida, chovem cântaros com sapos.)
Está um belo dia, não achas?
Não sei porque insistes em me aborrecer.
Oh... estava apenas a brincar contigo.
E um longo vazio acende-se...
E a provocação degenera...
E o nonsense é cultivado...
E eu adoro-te...
Sim, no fundo, compreendemo-nos bem ou, melhor, aceitamo-nos.
(Silêncio breve.)
A questão é seguir a regra dos jogos. Aqueles que, como diz o outro, não levam a nada. E depois está nas nossas mãos não os deixar rir e sermos nós a rirmo-nos deles, a colocá-los por baixo.
Sendo assim, concordas comigo que...
Sim mas por motivos diferentes. Tu calas-te ou manténs-te calado dado teres medo do riso alheio. Eu não, eu limito-me a observar.
Bem, nem sempre procedo como te disse, depende das circunstâncias, das pessoas...
Eu limito-me a observar. A condensar as pequenas particularidades de cada um numa enorme forma geral. De modo a poder dizer algo de concreto e quase sempre com um objectivo bem definido.
Hum, quase que o posso adivinhar, o objectivo é... o objectivo é... vá lá di-lo, o objectivo é... o objectivo é... é o sarcasmo?
Exacto! Não há nada melhor que gozar com aqueles que estão sempre à espera da melhor oportunidade para se rirem de nós.
(Silêncio breve.)
És um ditador!
(Rio-me.)
Não obrigatoriamente. De qualquer modo, penso que se não deve ter pena dos fracos e que os fortes não devem ser, como dizê-lo?, minimizados.
Heil! Fascista do caralho!
Não obrigatoriamente mas porém, a populaça gosta de caras bonitas e severas. Que lhes dêem dinheiro. E as sentem à mesa delas. E lhes dêem um cargo na empresa. Somos todos fascistas e egoístas a querer que nos sustentem quando corre mal. Quando corre bem fugimos aos impostos.
O egoísmo é uma das virtudes do nosso signo.
E é igualmente aquele que é mais sensível e mais dado a partilhar e a oferecer.
O problema é que existem tão poucas pessoas a quem possamos dar algo de nós...
E quanto mais se observa mais se repara nesta triste verdade que...
Até que... aparece alguém que nos surpreende...
Sim... porque nunca estamos à espera de nada... sim... nunca esperamos nada... até que alguém aparece e diz uma frase... alguém cujos olhos brilham de um modo preciso e num preciso instante...
E nos cativa e nos aprisiona os sentidos e o corpo e nos faz querer o seu corpo, nos faz desejar sentir o seu aroma...
E nos faz afundar na solidão de nunca essa pessoa ser na realidade aquilo que é nos nossos sonhos...
E de a querermos sempre moldar...
Ou de nos querermos moldar a nós próprios contra o nosso gosto e orgulho para a podermos cativar, para a podermos ter...
(Silêncio breve.)
E no fim, ter a sensação de mais uma vez ter perdido...
E o que sempre fica é aquilo que sempre ficou...
As frases ditas, as grandes palavras que gostaríamos de pronunciar em voz alta e que sempre se aniquilam...
E nos levam a experimentar a estranha sensação de existir alguém dentro de nós que se reflecte num repelente espelho, que nos aceita tal como somos, que nos compreende e não nos exige nada, nem nos promete algo de impossível, nada... nada de irreal...
Alguém, uma alma gémea talvez, alguém que nos faz pensar que não precisamos de mais ninguém...
Somos belos e adoráveis... e felizes...
Sim, que não precisamos de mais ninguém porque somos felizes e não temos medo de ficar sós e isolados...
E que podemos, então, babarmo-nos com o sarcasmo atirado às suas faces atónitas!
(Um longo silêncio.)
Dá-me lumes.
(Pego na carteira de fósforos, acendo um cigarro e uma breve claridade se reflecte no espelho colocado nas paredes frias.)
Talvez o que falte a este quarto seja uma bela lareira.
Oh!, se pudesse ser sempre assim.
(Fim. Lado B, início.)
Ernestine abre a porta do quarto, entra e vê no reflexo do espelho uma cor de cigarro, fica um bocado assustada e pensa: parece-me um óme, deixa ver, penso que é o reflexo no espelho da sua cor de cigarro na minha boca, para mim tu pareces um palhaço marchando como os espermatozóides em direcção ao útero, ouves Vangelis e Colombo é?, porque também tu não deixaste os índios americanos em paz? Sinceramente, foste mesmo uma mulher para mim, gostei de te meter o dedo, meu querido, e tu gostaste, tu ainda gostas de mim, eu sei. Sei que dizes que, pelo menos, deste-me a tua vozinha e eu alguns dos meus sonhos, alguns... algumas ensonadas nozes... o teu corpo deste mas não a tua alma, engano-me?, a tua voz, a tua doce voz, cabelo preto, cabelo louro, amor de verdade?, mas bueno que si, vallis jordi, és a minha sombra, sou o teu sangue.
(Fim.)

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Claudio Mur







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