quinta-feira, 14 de maio de 2020

Ninguém dormia

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-- Andámos nós na tropa a formar estes homens, a dar-lhes educação, princípios, horizontes, para isto? Onde é que nós falhámos?
E de novo os dois coronéis estouraram de riso e de novo o riso convocou quem andava perto para surpreender os dois homens, tamanhamente divertidos que se perdiam em lágrimas. Mesmo o espanto tímido de Maria José, o mau feitio de Maria das Dores e o pasmo desconfiado de Felismina foram vencidos por aquelas risadas tão contagiosas e a galhofa generalizou-se, e prolongou-se por frouxos incontroláveis, debaixo do alpendre, junto à piscina, a rasar os telhados, e fez alegrar ares, ervas e ramagens.
O mocho, coitado, é que estava eriçado de indignação. Outra vez? À noitinha, havia de se queixar ao melro. Mudasse-se, veio a dizer o outro. Nem pensar. E o melro acudiu com uma história: já que o mocho não se queria mudar por estar muito afeiçoado àquela oliveira, então que seguisse o exemplo heróico da coruja do Monte dos Matamouros. No Monte dos Matamouros, ao pé de Viana do Alentejo, havia um lavrador e a mulher, que eram doidos por modas alentejanas. Não tinham filhos e todo o dinheiro da cortiça, do azeite e do vinho era pouco para manter três ranchos cantadores que passavam os dias nas modas, e os lavradores com eles, a fazerem os «altos», porque possuíam belas vozes. Uma coruja que morava no alto duma chaminé e tinha ali a sua desvelada criação todas as manhãs era acordada e posta em sobressalto pelo irromper fortíssimo do cantochão sempre em crescendo. Aconselhou-se com a raposa que lhe aconselhou deitar sapos na água das grandes quartas, para que todos ficassem roucos quando a bebessem com seus cocharros. Era engenhoso, mas arriscado. Além disso, sabia-se que existia um contencioso entre a raposa, sempre aproveitadora, e o rei dos sapos.
A coruja que era muito respeitada por essas nuvens afora falou a sete das suas comadres que a ajudaram numa insubordinação colectiva. Assim, todas as noites, em pontos estrategicamente distribuídos, no vão duma janela, na abertura de uma fresta, no cavo das chaminés, estridulavam gritos de arrepiar, e sopravam bafos medonhos. Ninguém dormia. Porque às investidas das corujas vinham somar-se as exclamações, os uis, os protestos e as pragas de lavradores, maiorais e demais pessoal. Uma coruja, mesmo duas, lá se admitia. Agora tantas, era maldição. A casa foi dada como assombrada. Vieram bruxas com rezas. E um padre, em último recurso foi borrifar as paredes com água benta. Sem resultado. Todas as noites as colegas faziam o seu número e já estavam a tomar-lhe o gosto, a introduzir engenhosas variantes, particularmente odiosas, a partir da moda Lá Vai Serpa, lá Vai Moura e as Pias Ficam no Meio. Os lavradores desandaram para a sua casa na vila, nunca mais tornaram a dormir no monte que ficou entregue a um rendeiro mouco. Aí está, rematou o melro, um bom exemplo para teu governo. Se te sentes agravado, age e mobiliza. Eu, por mim, posso fazer uma vozes, dar uns assobios, mas canso-me logo do peito.
O mocho não se deixou entusiasmar pelas facilidades do melro. Por um lado, porque a sua experiência de vida lhe dizia que aqueles humanos não eram do género de ir em lérias de medos e cocas; por outro lado porque sabia como a verdadeira história do Monte de Matamouros tinha acabado. Os filhos do rendeiro vieram com lanternas, caçadeiras e cães, fuzilaram as corujas uma a uma, mandaram-nas empalhar e venderam-nas clandestinamente a um advogado de Lisboa que as exibe como troféus de caça, ainda por cima ilegal, que dá mais sainete.
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páginas 190 - 192

''Fantasia para Dois Coronéis e Uma Piscina''
Mário de Carvalho
edição Caminho

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