domingo, 17 de maio de 2020

O dia madrugou

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Hoje Sexta-feira, o dia madrugou às seis horas e vinte minutos. Hoje C sai, eu saio do CReEA com a nota final de dez valores. Adivinho um imenso calor humano cheio de esperança no devir. Mas isso é para depois, eu nem sempre ando ao mesmo ritmo do mecanismo funcional dos objectos. Por isso, para hoje os meus planos desejam tornar o dia memorável, quer se ganhe quer se perca será virada uma página no livro cinzento ou, para quem acredita, mais um ciclo cármico se renovará. Lá fora e à minha espera estará ela, eu sei que estará lá. Será que ela virá? Será que ela corresponderá ao meu sigilo pessoal ou a um de AOS ou será até que responderá ao ponto de interrogação de Cyril Grey? Não sei... mas um novo dia surge hoje sem sombra de dúvida. Se ela não vier, será porque não sou uma prioridade... ou o meu encantamento falhou. Nesse caso, deverei ser forte e nunca me deprimir, deverei chupar o tutano da questão e envolvê-la de detalhes, pintá-la numa tela artesanal de pano-cru, e depois quem sabe... se talvez me esquecer do desejo e da ânsia de a ver aparecer daqui a algumas horas do lado de lá do portão e, para que por fim possa acreditar que a transmissão do meu fluido funciona, um dia ela acabará por aparecer as if ou telefonará a dizer que me deseja de modo orgânico.
Após o pequeno-almoço, volto ao quarto para arrumar o que falta. Tenho vinte e quatro anos e estou a sair de um longo bloqueio de três anos. Vivi mais uma existência. Agora, retiro as fotografias da parede, os pequenos desenhos, as reflexões poéticas, as ilustrações para livros futuros sobre memórias passadas. Três anos na sociedade CReEA fizeram de mim um novo homem. Acima de tudo, tive tempo para ler livros sem pensar em mais nada e tive comida, cama e lençóis lavados de borla. Mas nesta prisão escola hospital, se de sociologia cibernética pouco aprendi, pelo menos ganhei algum brio, tive acesso a situações limite, errei em progressão, a minha nota é de dez apenas mas estou livre e, depois da injecção de saída, terei acesso a consultas médicas regulares, tenho o futuro à minha frente e já não sou inocente mas sim um reinserido social. É como com as cobras, é renascer com nova pele.
Agora, tenho de pensar bem neste renascimento, e no que fazer aos livros se tenho de regressar aos outros livros, aqueles que supostamente serão o nosso ganha-pão oficial, aquele que as regras dizem ser o sustento da família... mas isso agora é passado, já passou, o gato já morreu várias vezes como devem desconfiar.
Actualmente, não tenho nada daquilo que as outras pessoas têm. Por exemplo, não tenho mulher a quem beijar, pois ela não virá eu sei, nem tenho um automóvel para passear embora tenha a carta de condução há já alguns anos. Não gosto é do sitio para onde tenho de voltar. No entanto, tenho aquilo com que cresci: os livros e as gravações de campo. Quem sabe se o assistente de reinserção social não me propõe para o rendimento mínimo?, ou se o micro-crédito me empresta massa para abrir um sítio com os meus artefactos... procura a sorte. Não a encontrarás procurando mas só ganhas o euromilhões se jogares.
Não sei. Tenho que pensar bem no futuro. Nem sei se tenho público nem sei se ela virá... seria o mais importante... mas introjectando ao espelho enquanto faço a barba, adivinharia ter tudo de bom, tudo aquilo que é desejável, tudo o que as Marias gostam: entrei nos eixos. Mas eu não sei se ainda gosto do estilo Maria. Afinal de contas, espero ter a consciência de que a realidade experienciada aconteceu mesmo. Espero acreditar que tudo se passou, não dentro de um filme mas no real. Duramente. É preciso ter uma certa força de vontade, um poder de tentar ir para Roma porque Maomé já não vai à montanha, e depois só aquele que acredita vira maluquinho da cabeça.
Vou procurar o meu espaço mas não sei em qual mundo e se habitado de todo. Qual é o meu impasse? Sinto-me pesado, é difícil sentir calor humano. Vou ter que lidar finalmente com o meu eu deslocado. Aqui dentro isto foi uma ponte, tive amigos e uma namorada que me obcecou e de todos me separei. Estive eufórico, deprimido, obsessivo, histérico e masoquista e quis-me matar porque, em certo momento, me senti um falhado no campo do amor, no campo dos resultados às avaliações de eu como aluno na sociedade CReEA e, também, no campo social e familiar. Compreendi e é por isso que me dão um dez na avaliação final global... compreendi e aprendi a paciência e a importância de saber ler e escrever um requerimento, por exemplo, a burocracia e a hipocrisia regem o mundo mas no subsolo há quem viva entre linhas. Curaram-me aqui dentro? Curaram coisa nenhuma... ela continua em memória. Mas, agora que me preparo para passar a portagem de saída da ponte, já sei ler as minhas palavras, o meu passado, sei quem não quero ser mais e sei o que quero vir a ser, aprendi o erro em mim e, ao não varrer o erro para baxo do tapete, estou a aprender a caminhar de novo.
Nestes três anos de exclusão social, nesta viagem que agora termina, houve muito tempo para pensar. Analisando este período, de todas as pessoas que conheci, aquela por quem vou ter mais respeito é certamente o professor O. Desde o traficante que vende contos ao fim de semana aos estudantes ate àquele que transacciona sabões, desde o assaltante munido de seringas infectadas até ao rapinador de joalharias, desde o crime passional inocente até ao homicídio mais sangrento mais religioso, o professor O a todos se impôs. Claro, houve igualmente os anjos caídos em desgraça, as pessoas inocentes identificadas pela sociedade como desadaptadas que não pertencem aqui, não há legislação nem ninguém que os acolha lá fora, e outra solução não existe a não ser a sociedade nunca mais os libertar e exibi-los, assim, aos visitantes da sociedade. A que classe pertencem? Não sei mas segundo a justiça à classe mais baixa, à classe dos ressacados da sociedade. Isto nem com porto felizes lá vai. Hoje, a legislação de venda e consumo ainda não foi alterada para melhor. O Bob ainda não foi libertado. Os catalogadores incluem-me na classe dos doentes-drogado-reciclados. Estou, aliás, rodeado de catalogadores, tresando a análise. Como, por exemplo, quando vou a uma loja de discos e corro as prateleiras à procura de um certo disco, duma letra ou quando leio nos jornais as críticas de um certo acontecimento, está tudo catalogado e, mesmo que de um modo inconsciente, cada um cataloga, há poucas excepções. Estamos, aliás, rodeados de fundamentalistas. Se te vêem com determinado tipo de letra, um certo elemento da tabela social, és logo catalogado como uma pessoa desse tipo, se te vêem com outra letra adicionam-te imediatamente uma nova letra ao currículo, se te vêem ao mesmo tempo com dois tipos de letras és um fonema socio-cultural. No limite, és uma palavra, uma expressão metafórica, uma grande confusão.
Após observar o quadro das notas para me assegurar em definitivo, dirijo-me a cantina para o último almoço, nem de propósito: bifinhos de peru com cogumelos. Capricharam hoje. Sento-me ao lado do professor O pela última vez.
Digo-lhe: é hoje o dia.
Parabéns, e agora?
Não sei ainda. Eu gosto de pintar e pergunto-me se não teria sido melhor ter entrado antes num curso de belas artes... mas lá está, se calhar, iria atrofiar com os ensaios teóricos, com ter de escrever sobre a história da arte e a simiologia do mundo da arte, e de tanto aprender o que os outros fizeram, esses grandes que ficaram na história, iria acabar por não saber mais o que pintar. Pelo menos, aqui dentro, neste curso cibernético aprendi a usar um computador e a ler e a pesquisar informação. Bem... e agora?, não sei, o normal será começar de novo, agora já estruturado e a saber orientar-me no caos, começar por arranjar trabalho para alimentar o meu vício.
Bons planos, temos sempre de os começar, o caminho descobre-se, a glória vem postumamente se alguém em ti reparar. Após alguns momentos, O continua: tenho uma coisa para te dizer já há algum tempo.
Força. Diga lá, é este o momento.
Terminei há pouco um livro que andava a escrever já há alguns anos. Como ele é um marco decisivo para mim gostaria de to colocar nas mãos. Mais concretamente, queria que o mostrasses a alguém. No limite, gostaria que fosse publicado. Imagino o meu nome em grandes caracteres, em grandes posters nas paredes, em grandes livrarias. Imagino-os lido por pessoas.
Pessoas?! Como assim?
Seres com ouvidos atentos à melodia da ave e da retroescavadora, ao cinzel e ao pincel, ao fraco que atira pedras ao forte.
Porquê? É você mesmo o autor?
Porquê o quê!?
O que pretende? Porque mo confia a mim?
Não sei bem. Penso que gostaria de me explicar às pessoas após me ter compreendido e explicado a mim próprio. Às vezes, os livros são como os selos, uma colecção, outros são objecto de arte, outros objectos de estudo, outros objectos de trabalho e obras para tempos futuros. Funcionam muitas vezes como exorcismos e devem mesmo muitas vezes funcionar ao contrário. Partindo de uma certa teoria nihilisto-romântica entre aspas, ao identificares-te com certas personagens de um certo livro bem escrito, poderás, às vezes, pensar que és uma qualquer espécie de insecto subterrâneo e, nesses momentos, estás no fundo por ter a pureza de observar a decadência e observares que existe sempre um motivo para essa decadência, a degradação é algo de sublime às vezes, ao observares o fundo do poço, poderás ter a certeza de que só poderás subir à custa da tua força interior, daquilo que és ou daquilo que descobriste que querias ser ou fazer. Então, por observação endógena, és muito mais que um insecto, és algo de superior a isso. Ao escreveres estás a registar as tuas dúvidas e a procurares as tuas respostas, estás a conhecer-te a ti próprio, estás assim a tornares-te mais lúcido. Compreendes?
Mais ou menos. É uma autobiografia portanto?
Sim, mas a modos que disfarçada, é uma distopia anacrónica. Tem coisas reais, outras bem menos reais. Quando se trata de pintura, há segredos que não se podem revelar...
O sol bate-me nos olhos e, por um gesto de dedos, os olhos fecham-se, tenho calor, pergunto: Porque me quer dar a sua autobiografia disfarçada?
Decide-se por uma meia mentira: Porque és a única pessoa que conheço aqui dentro com a qual me consegui relacionar por mais tempo, por me pareceres a mais equilibrada, e também porque não queres só droga, bem sei que o teu vício principal é a tinta das palavras musicais.
Então é isso, digo eu, eu deverei ficar com a sua biografia e passá-la às pessoas como literatura marginal, um novo Rimbaud, um objecto de conhecimento e ou um objecto de tortura. Ah ah... supremas ambições… é isso então? Pergunto interessado mas cheio de dúvidas.
Sim. E falo-te já dos planos para a capa...
A hora do almoço passa. Três da tarde. Dou um último abraço a O e despedimo-nos. Não devo deixar de prestar uma última visita aos vizinhos, depois é só passar pelo meu alojamento e pegar na mala.
Bato à porta. Como a porta está aberta dizem apenas: entra. L está a experimentar a transmissão vídeo do concerto de um dijei, seu amigo a um quilómetro de distância, através da internet. Podemos ver o dijei cheio de monitores, teclados, emuladores de som e caixas de efeitos e filtros, dentro do seu cubículo. Ele faz som techno e de vez em quando manda uma sms perguntando: então que tal? Ajusta os graves, diz L enquanto pede o isqueiro o J. O dijei levanta o polegar. L pega num cachimbo, coloca um pouco de tabaco como cama e vai a um pequeno tubo de um rolo de fotografia analógica e retira uma pequena pedra. Coloca-a por cima do tabaco e pega no isqueiro com a outra mão. Desvio o olhar. J diz: C, dá só uma passa para veres como é. Não, não quero canecos na minha vida, digo eu. Saio deprimido, já não tenho afinidades com ninguém, nem através da droga. Mas, vou passar em casa do A e ele dispensa-me uma milena de despedida. Fumo-a, limpo o cinzeiro e o lixo, pego nas malas e ala que se faz tarde.
É hora de partir. São seis da tarde. Dirijo-me à entrada acompanhado dos oficiais. Dizem que gostariam de não me voltar a ver.
Vou tentar, obrigado.
Do outro lado da rua, a minha consciência Id, a peste que não queria ver, espera-me dizendo: bons olhos te vejam, por onde andaste?
Afinal lembrou-se. Apareceu... pergunto-me porquê, aconteceu ou foi tudo sonho... cá estamos.
O céu está azul, o sol brilha sobre o céu azul, as sombras são cinzentas, as paredes caiadas de branco, o jardim verde, as árvores terminam a estação. Vamos beber um copo?
Ao fundo da rua, um café tem um néon dizendo MarchPush. Se não for não interessa, no entanto, MarchPush que saudades... peço uma Super Bock. Como um hambúrguer especial com bacon e ovo.
Id começa a contar uma história: Uma vez, estava sentado numa pedra à beira de uma muralha de um castelo no alto de uma colina, que em tempos antigos protegia uma aldeia, com os pinheiros desenvolvendo-se ao longo da encosta, o rio lá em baixo, as casas desordenadas no meio dos campos de cultivo... estava no meio de uma crise existencial e pedia com força solidão, um espaço que fosse só meu e pedia que mo colocassem à frente, tázaver? Ora... observando este desejo estranho designava-me, é preciso que se note, como um preguiçoso e um misantropo e, talvez por influência do filme sobre os Doors ou não, pois não sei dizer quem nasceu primeiro... ouve... imaginei que estava em casa sozinho e recebera um telefonema por volta da hora de jantar informando-me da morte de toda a minha família, numa curva da estrada... os pneus derrapando e o carro indo pela encosta abaixo. Tudo imaginação, vê lá os abismos de uma cabeça, mas... ao descobrir isto, de uma forma poética gritei aos quatro ventos que era livre e poderia ter um espaço, poderia descobrir a minha própria vontade, poderia fazer tudo o que pensasse ou desejasse. Ouve o que fiz... grafitei as paredes com tinta vermelha, disse que o castelo era meu.
Tudo o que quisesses mas só. Só e sem ninguém para te cozer as meias... diz o meu ser com sarcasmo.
Isso não interessa!, respondo: crescerei, conhecerei, tornar-me-ei grande.
Porquê todo este interesse em ser grande?, pergunta o meu ser. Porquê?, pergunto perplexo, porquê?
Porque passo o tempo a preocupar-me. O futuro, repito, às vezes, é o símbolo, a missão que tenho de cumprir, depois há os meios: os livros, a música. A missão é uma ilusão talvez, não fui ao astrólogo ouvir a sina, não está escrita, é um sonho que persigo, um desejo de ser livre, desejo de ser uma personagem, ter uma personalidade própria, correcta, original, (a)moral. Os meus modos traem-me, na verdade.
Eu C ouço-me com atenção, ouço Id com atenção: estou longe mas não tanto. É natural preocupar-me, enclausurado em sonhos, procurar o definitivo. No entanto, o definitivo que sonho pressinto-o violento, demasiado trágico, os fins não justificando os meios usam sempre todos os meios.
Que queres dizer? Mas Id, não te chega já de tragédia?
Não sei bem. Estou confuso.
Bom... Id, tenho de ir apanhar o comboio. Depois telefono. Obrigado por teres vindo.
Confortavelmente sentado na divisória para fumadores do comboio suburbano entre Derza e Triza, onde os papás moram, C pergunta-se para onde terão migrado as sereias. Afinal, o retiro de três anos deu em nada, pois nada mudou. Já pensava assim antes da admissão no CReEA, diz C. Agora tenho mais um brinquedo-repetição, um livro do professor O para expandir nas redes da sociedade da informação. 
C acende o cigarro e começa a ler o último capítulo do livro cinzento:
Conheço Ana por intermédio de um dos meus eus num baile do enterro com os Mão Morta a tocar. A minha consciência apresenta-ma e, quando a banda começa a tocar Aum, nós beijamo-nos por magia.
Dou duas passas no enrolado e começo a rir-me, digo: isto é mais uma mistificação, o O pegou no livro cinzento que eu também comprei na Livraria Cassiber e acrescentou o que bem lhe apeteceu e chamou-lhe redux. No fundo, o D, que lá trabalha, bem me disse, este livro não tem fim, não tem autor, é uma colecção crescente de títulos de amor triste, olha o que diz aqui?, Id estás a ouvir-me aí desse lado?, o O escreve que vive hoje pensando nela como em todas as outras mas já sem ódio, ciúme ou desejo... ah veneno ácido...mas aqui ele agora está a contar a história das anas... espera, vou continuar a ler:
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Claudio Mur

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