terça-feira, 30 de junho de 2020

Walser, meu tolo amigo e camarada, estás cheio de razão!

Aproveito um feriado miltar de vinte e quatro horas para partir, de madrugada, da fortaleza de Sargan, subir ao vale e apanhar o comboio para Herisau. Conversa com o médico-chefe, que me conta que Robert, ante a notícia da morte do seu irmão Karl, em Berna, a 28 de Setembro [de 1943], se limitou a responder secamente, «Ai sim?» Ele teima em representar o papel do realista sereno e não quer distinguir-se em nada dos outros hóspedes do sanatório. Evita a todo o custo qualquer exibição sentimental. De resto, esta atitude é frequente em muitos esquizofrénicos. Das duas uma: ou o equilíbrio emocional é perturbado por demonstrações mínimas de alegria ou sofrimento, ou o paciente tem ataques de emoção explosivos, que assumem por vezes dimensões catastróficas. Robert parece querer distanciar-se, marcadamente, do mundo em redor. Só quando lhe foi dito que a sua irmã Lisa tinha adoecido pareceu comover-se um pouco. A princípio, o médico esforçava-se por fazer chegar-lhe às mãos, como por acidente, artigos publicados sobre ele ou o seu irmão Karl. Mas Robert acabara por tornar-se hostil, a ponto de deixar de cumprimentar o médico. Quando este lhe falou sobre isso -- «Mas nós costumávamos entender-nos, Sr. Walser!» --, Robert enfureceu-se: «Porque me importuna com estes artigozecos? Não vê que me estou nas tintas? Deixe-me em paz! Tudo isso ficou para trás, bem longe.» (...)
Robert espera-me, já impaciente, diante da segunda ala, onde se encontra hospedado. Nos últimos seis meses, não reagiu a nenhuma das minhas cartas ou encomendas. Agora, porém, vem ao meu encontro de modo animado e espontâneo, até mesmo entusiasmado: «Como você cheira a exército! Óleo para espingarda, couro, palha, suor -- tudo isso me reconforta. Não é maravilhoso viver tão intimamente com o povo, corpo contra corpo, como se se estivesse entre irmãos?» Informa-se com interesse sobre tudo o que trago comiigo: da cobertura de tenda enrolada aos galões de oficial, passando pela lanterna de bolso pendurada à cintura e pelo boné novo. Digo-lhe que a vida simples do exército sempre me atraiu. Robert: «Esse é, de facto, um dos seus aspectos mais positivos. A abundância pode tornar-se um grande peso. É na pobreza e na simplicidade que a verdadeira beleza, a beleza de todos os dias, se revela de modo mais suave.» (...)
De manhã: ao passarmos, a bom ritmo, as casernas na parte antiga de Herisau, rumo a Sankt Gallen, falamos primeiro das notícias terríveis da guerra e depois do povo suíço. Eu digo: «A verdade é que o povo não quer, de todo, governar. Quer ser governado.» Robert concorda, vivamente: «É até bastante benevolente para com a tirania!» Mas apressa-se a acrescentar: «No entanto, não se lhe pode dizer isso. quem o fizer irritá-lo-á e será visto como um bruto. Mas, no fundo, o povo deseja muito menos liberdade do que se pensa.»
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, páginas 78 -até- 80

''Caminhadas com Robert Walser''

Carl Seelig
tradução de Bernardo Ferro
edição de BCF editores 2019

domingo, 28 de junho de 2020

Lendo e Lembrando



''Lendo  e lembrando''
óleo sobre tela
50cm por 70cm
2020
ZMB

Neste trabalho, pinto um autoretrato
lendo na cama um livro de Henri Michaux


quinta-feira, 25 de junho de 2020

Exposição Anuário '19 na Fundação da Juventude no Porto

Está patente a exposição colectiva 'Anuário 2019' na Fundação da Juventude no Porto até 19 de Julho de 2019.
Gostei de um vídeo de Tiago Afonso (sobre uma personagem da contracultura tripeira) e de uma sala-instalação multimédia do colectivo Acca.
Também gostei e, em baixo, mostro algumas fotos da participação de Ruca Bourbon (aka Doutor Urânio) onde ele apresenta a visão de um Porto que se vai perdendo com a usura e o desleixo da gente que manda e pode.
Às vezes, penso que o meu trabalho como pintor é interior e imaginativo e sem contacto com a realidade. Mas depois vejo que, de vez em quando, também faço trabalhos com algum valor social e que esse trabalho é interessante para outras pessoas. 
Assim, para esta participação de Ruca Bourbon no Anuário 19, eu cedi a seu pedido um quadro em que pinto um dos locais onde alguma da 'velha guarda' se reunia 
-- o bar Ribeira Negra.












terça-feira, 23 de junho de 2020

Eta Vida


ai tão linda com os meus ólicos
mais
num era o que a gente queria
o que a gente queria era nos mandar

este ano não há martelinhos
bibó são joão

 

segunda-feira, 22 de junho de 2020

Faroeste Caboclo: Legião Urbana



A Legião Urbana foi uma banda que não seguiu à risca aquela “ordem” do mercado e da mídia de estar quase toda semana nos programas de rádio ou de televisão. São poucas (outros até diziam raras) as apresentações da Legião na TV. Mas quando apareciam, era para valer. É o que podemos conferir nessa apresentação que o Renato Russo, Dado Villa-Lobos, Renato Rocha e Marcelo Bonfá fizeram no programa “Globo de Ouro”, da TV Globo, em 1988, emplacando a música “Faroeste Caboclo” no primeiro lugar do programa. Diferente dos outros programas, grande parte das apresentações no Globo de Ouro era ao vivo, o que não foi diferente com a Legião Urbana. Nota-se o vigor da banda nesta apresentação. Ah, reparem que nos dois palavrões da música Renato troca por outra palavra (no “filha da p…” ele se enrola e dá risada). Mais uma apresentação histórica da banda.

domingo, 21 de junho de 2020

Notícias da guerra

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A ilha está calma. Este fim-de-semana nem os pássaros se ouvem. O comandante baixou o som da rfm e o arraial terminou. Estamos num período de tréguas.
A saber: neste momento, o comandante é suspeito de agressões verbais, tentativa de arrombamento e invasão de propriedade e tentativa de agressão física. O agente da polícia, que recebeu a queixa e a passou ao papel na esquadra, ao ouvir que eu queria apenas que a coisa parasse e pudesse viver em paz e que, embora não pudesse com o comandante fisicamente, não tinha medo de agir apresentando queixa no sentido de lhe meter medo, o agente disse: 
-- Esse Luis já é nosso conhecido, mas não se trata só de meter medo, trata-se de não retirar as queixas. -- Sim, disse o pintor, eu quero levar a queixa até ao fim.
-- A porta está danificada?
-- Não.
-- Então, diga lá os insultos que recebeu?
-- Eu sei lá, a partir de um momento desliguei, mas gravei os insultos e as ameaças que ele fez depois que a polícia foi embora, ele voltou e disse «a polícia disse para estar sossegado até à meia-noite mas depois tu vais ver!», tenho uma cópia aqui numa pen se quiser copiar...
-- Agora não, guarde para o tribunal. E... mas depois da meia-noite ele fez alguma coisa?
-- Não, não fez. Ele sabe que a vizinhança lhe chamava a polícia por causa do barulho, ele não é burro.
O agente pega numa caneta após teclar no computador e diz ao pintor: -- Mas diga lá o que ele lhe chamou.
-- Ladrão, insultou a minha mãe, paneleiro, paneleiro a gasol, vou-te foder as costas com uma pistola de aço, meter-te uma granada pela janela, sei lá o que ele disse... mas quando vi que depois dos pontapés ele não arrombava a porta, ripostei e insultei-o de volta, chamei-o de corno várias vezes, ele é Corne-Real e eu chamei-o de corno real, chamei-o de papagaio.
-- O senhor, sorri o agente, foi valente, está com os seus amigos em casa deles e numa conversa... numa conversa tipo de café... chama-lhe drogado...
-- Eu não lhe chamei drogado, disse-lhe que o Tony Carreira não tinha aspecto e ele tinha.
Na sala ao lado, ouvem-se os risos de um ou mais agentes da esquadra e eu aproveito para dizer que chamar drógado ou paneleiro ou seja o que for, isto são apenas insultos genéricos, que não dizem nada e são apenas ruído. E eu não fui genérico, fui específico: disse que ele tinha aspecto de fumador de coca e até nem disse que ele fumava, disse que tinha aspecto, ora para ele o Tony tem aspecto de fumador e o Tony não fuma, por isso, ele, Luis, pode ter aspecto e não fumar. Quanto ao ser drogado, há muito tipo de drogas, há as legais ou oficiais: o tabaco, o álcool, os comprimidos de farmácia, o jogo de casino; há as semi-legais: a canábis e os ectâsis e há as ilegais: a cocaína e a heroína. E cada uma tem o seu tipo e aspecto de consumidor. Mas o pintor responde: -- Oh fui valente em quê?
-- Estar ali a defender uma pessoa que não você conhece e dizer isso ao seu amigo...
-- Eu nem gosto da música do Tony...
Após um momento, o agente regressa com algumas folhas e dá-as a assinar ao pintor. O pintor lê. O agente explica: 
-- Como não houve agressão física de verdade não podemos intervir, agora a tentativa de arrombamento fica registada, quanto às agressões ao bom nome... isso é um crime particular, tem de se constituir como assistente, arranjar advogado e pagar duas unidades de conta, será aberta uma investigação...
O pintor pensa «um advogado do apoio judiciário nada pode contra um rato de advogado pago pela família corne-real»... pergunta por fim:
-- Quanto é uma unidade de conta?
O agente diz e o pintor logo esquece, afinal duas unidades de conta é quase o valor de uma prestação mensal da sua reforma. Acaba por dizer: -- Então, eu desisto das agressões verbais na queixa.
-- Receberá em casa o ofício de arquivamento.
O pintor assina os ofícios de registo da queixa como denunciante e vítima, e devolve os de direito ao agente. Este diz ao pintor a rir-se: -- Mas o senhor diga lá... o que quer dizer «paneleiro a gasol?»
-- Ah sei lá, tem de perguntar a ele. Deve ser um que mete rolhas.
O agente acaba por dizer: -- Olhe sabe, isto parece uma daquelas coisas de crianças que se põem a disparatar.
-- É, ele diz mais do que aquilo que faz. Bom dia.
O pintor vem para casa a pensar «pelos vistos, ele tem que me bater para a justiça andar para a frente mas eu defendo-me, acerto-lhe o passo, e depois alego legítima defesa.»
O pintor vê um pedra suficientemente pesada de cimento e guarda-a no bolso.
Ao chegar perto de casa, vê o Giuliani. Este diz baixinho:
-- Olha... ele está fodido contigo, tem cuidado, estou do teu lado.
-- Giu, que tens no nariz?
-- Foi ele que mo partiu!
-- Mas tens que apresentar queixa!
-- Ó, a polícia goza-me e não faz nada, agora já está tudo bem.
-- Tens que apresentar queixa, ele já te partiu uma clavícula, agora o nariz...
-- Mas posso falar como testemunha...
O pintor pensa «testemunha... testemunha minha que raio, um gajo que não se defende ele próprio apresentando queixa contra o Luis.
-- Giu, tu não tens de testemunhar em nenhum caso doutrem, tu tens de testemunhar em teu nome, tu és uma vítima.
-- Não não.
-- Ó Giu xau!
O pintor entra na ilha, ao fundo o Luis com a guitarra, o pintor caminha e tem a pedra no bolso, caminha para a sua porta e não olha para o Luis, o Luis não mostra movimento. Está quieto. O pintor entra em casa. Está descansado por si, mas irritado por não conseguir que o seu amigo Giuliani se defenda, como poderia ele ser testemunha do pintor se, depois, o Luis no redondo far-lhe-ia uma má cara e o Giu mudaria o testemunho, seria descredibilizado em plena sessão de tribunal e, à noite, o Luis dava cabo dele.
Por isso, o pintor está bem, mas o seu único amigo na vizinhança, o único do qual ele sente algum carinho de amizade, leva porrada e não há meio de o salvar. O meu amigo é doente e triste. A miséria é mais dele que minha mas eu sinto-a como minha.
Quanto ao Luis, neste momento a guerra está empatada a um. Ele insultou e marcou golo mas os pombos, ao ameaçarem que lhe enchiam o cabelo com diluente, fizeram com que ele se descuidasse e deixasse cair o telemóvel inteligente de cento e vinte euros ao chão, desfez-se em cacos. Um igual.
Hoje a ilha está calma e o herói do Stendhal, o Fabrício da Cartuxa de Parma está quase a evadir-se da Torre Farnese. Vou continuar a sua leitura.
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Claudio Mur

quinta-feira, 18 de junho de 2020

Temos guerra

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Aos vinte e poucos anos ironiza-se o papel de vítima dizendo que «quando se quer ter uma aventura [amorosa] mais vale dizer que somos donos do banco de portugal do que desempregados. Há nesta afirmação, a falta de dinheiro e a falta de amor. Quando não há dinheiro, provavelmente sofremos alguma carência: ou nos alimentamos mal ou nos vestimos mal ou habitamos um local mau. Em qualquer dos casos, sentimo-nos infelizes e em necessidade, as nossas preocupações começam a reduzir-se ao básico, e as nossas divagações e passeios começam a reduzir-se ao bairro, as pessoas começam a rarear, os contactos sociais começam por entropia a ser igualmente cada vez mais rasteiros e a mulher ou o amor começam a rarear, queres ver alguém, uma cara bonita e começas a não ver ninguém. E a carência começa a ser visível. Depois de seres vítima de uma falta de dinheiro e de falta de meios para o conseguir, começas a parecer um desgraçado. Ninguém te quer. Dá-te raiva: afinal tinha tudo e agora não tenho nada. Então começas a mentir a ti próprio, começas a contar aos poucos amigos que ainda vêm ver ao pardieiro, onde agora mora o comandante, e cujas obras se reduziram a tirar tudo fora e a desinfectar, e a pôr as aparelhagens lá dentro outra vez dormindo no meio das baratas com o teu novo filho, adoptado desde os gloriosos quatro mil gastos na fortaleza, e que dorme a teu lado, servem de almofada um ao outro, às vezes a festa envolve uísque e cola e a ressaca de ver o pintor a ler no terraço o seu Stendhal e a fumar a sua ganza que pode comprar com o dinheiro que ganhou por ser mão-de-obra de um corno real, este corne real ressacado por a antiga companhia o ter descartado uma companhia onde era oficial mete nojo e óstress quando era chamado a trabalhar como técnico de som em palco, era a sua função invadir o concerto a meio e dizer aos músicos que não lhe podiam estragar o concerto a ele, o óstress, que por uma luzinha falhar na mesa de mistura ia perguntar ao baterista que num momento sem solar tirava uma selfie pondo o carregador na tomada: ó sacanofa biche!, não desligues os fios das tomadas camone andersetande fodote já. o corno real gosta de ser bruto e há dias ressacava do pintor não lhe quer entrar em casa para ver a maravilhosa instalação de som: uma aparelhagem só com rádio na rfm e umas colunas pioners de arraial, uma aparelhagem para ouvir por uns auriculares de telemóvel, roubados ao filho adoptado, a pen de um concerto de uma banda que o faz chorar, ele diz que trabalhou com eles, ele há dias dizia para o filho: é preciso ir comprar um tacho já temos comida mas não temos tacho. Mas nenhum dos seus criados, que vivem na realidade à custa do dinheiro da mãe cona real dele e que às vezes aceitam levar um tabefe, lhe apeteceu ir aos chineses comprar um tacho e entre a fome e a ressaca gastou-se o dinheiro no táxi ida-e-volta à fortaleza. Agora o autoentitulado comandante corne real está fodido porque o pintor, que está a ler o seu livro e a fumar a sua ganza, o ignora por completo até põe nas orelhas os seus próprios auriculares do burrofone sintonizado na antena2, e aí o comandante diz:´ó pintor, não queres comer nada? um queijo da serra, um presunto, pão? E beber?, nada, uísque, cola, leite, água? anda aqui dentro. 
O pintor diz que está bem e não quer nada, ele fuma a broca até ao fim, fecha o livro, e diz à sua consciência: ora bamos lá ber o comandante e as suas baratas, vou ter de levar com ele. Levanta-se do terraço e entra em casa, na sala do comandante, andou a riscar as paredes em inspiração a um mestre surrealista de quem foi caseiro. É!, e não é tudo, também diz que já foi tasqueiro, hoteleiro, cozinheiro fuzileiro, comando e paraquedista e que esteve no ganistão e que matou o terrorista ao fazer de sniper, a mesa é um puff com um tampo de madeira, a um canto um sofá encontrado no lixo, uma televisão com descodificador mas sem carregador e as aparelhagens. Em cima da mesa, as garrafas e o caneco. Estão todos à espera que o pintor faça a sua ganza porque o comandante deve dinheiro ao fornecedor e desvia o que rapina mentindo à mãe para enterrar na fortaleza e no táxi, o comandante quer ganza e começa a falar dos músicos que consomem drogas: olha o Quim, olha o Toy, olha o Tony... 
E salta a tampa ao pintor: o quê? o Tony Carreira não se droga. Ele é um modelo para muitas mulhers, donas de casa e gajas da limpeza. 
O comandante, exaltado por haver alguém que o contradiz, rosna: o Tony snifa coca no meio dos concertos. E o pintor responde: Pois não parece. O comandante: eu também não. O pintor: Pois tu pareces mesmo um fumador de coca. O comandante: estás-me a chamar de drógado, rosna o comandante quase a ferver quase no ponto. O pintor diz: não, não te chamei drogado, disse que o Tony não tem aspecto de quem fuma e tu tens.
O comandante diz, pois eu hei-de vestir-me bem, barbear-me como o Tony, só não ponho gravata, a minha gravata é esta.
E vai à parede e retira o bibe azul do fato da marinha e põe-no ao pescoço: e tu aí não hás-de dizer que eu pareço um drógado.
O pintor pensou: há muito que a desgraça se adivinhava, este comandante é um verdadeiro merdas autoiludido, não há ninguém que lhe faça frente, preciso de escolher bem as palavras. O pintor diz: Se fizeres isso, vais enganar tão bem como o Tony. Bem vou-me embora, vou jantar.
-- Faz uma ganza, pede um dos criados do comandante ao pintor.
-- É, e não queres uma gaja na cama?, também arranjo.
-- É, diz o comandante, tu nem uma gaja para ti arranjas.
-- Olha corne real, tu nem consegues ver quando eu estou a falar brincadeira com o teu menino-de-mão, vou masé para casa, «parece que a última lady que aqui contigo dormiu se queixou da tua impotência» diz o pintor entredentes.
No dia seguinte, o Giuliani diz que o comandante se vingou nessa mesma noite no criado, deu-lhe dois socos e deixou-o a sangrar. Dentro do quarto, ouço-o a rosnar lá fora: esse panelereiro aerossol a dizer que o Tony anda a enganar as sopeiras, ele que apareça aqui fora e que passe à minha porta. 
Mentalmente, o pintor viu a linha desenhada pelo comandante no chão. Pensou: E tu Corno-Real, para saíres do teu pardieiro para qualquer coisa, para saíres à rua tens de passar debaixo da minha janela, quem sabe se os pombos não te dissolvem a cabeça com anacrosina ou diluente quando passares debaixo de mim.
Temos guerra.
As minhas desculpas ao Quim Barreiros, ao Toy e ao Tony Carreira
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Claudio Mur

terça-feira, 16 de junho de 2020

Max Beckmann na Sé


'Max Beckmann na Sé'
óleo sobre tela
70cm por 60cm
2020
ZMB

As imagens auxiliares deste trabalho são 
uma pintura de Max Beckmann e 
um desenho meu de um café já devoluto com vista para a Sé do Porto




sábado, 13 de junho de 2020

Fase 1 terminada

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-- Atão quer dizer que a discussão de ontem em que se mandaram respectivamente apanhar no sítio onde os ratos apanham, e o Luis exigiu de volta ao Giuliani o casaco de camuflado que lhe oferecera na véspera... e eu até pensei: o Giu antimilitarista a mostrar o casaco de tropa no café dado pelo mano de coração Luis, tudo aquilo ontem não passou de uma ressaca de branca?
-- Claro, estás maluco ou quê?, a branca voa. O senhor Neca veio há meia hora agradecer a demão de tinta na parede de sua casa, que eu ontem dei a mando do Luis porque o senhor lhe pedira, e este disse ao Luis: olha, obrigado, toma aí vinte euros para o pequno-almoço, e sabes o que o patrão da obra fez? Deu três pontapés nas plantas dos pés do Ximenes que estava pedrado a dormir no chão e disse-lhe: olha, vai buscar um torrão de açúcar à fortaleza, e ele foi estremunhado, feito pau-mandado, nem um cigarro pediu, e a mim, que lhe fiz com a tua ajuda as obras na casa, e agora estou a pintar com esmalte os cano da água dos telhados, nem um euro recebi, por isso te pedi um euro para ir beber uma súrvia que servirá de almoço, a branca é fodida!
-- É, os chefes, os patrões da obra recebem sempre, mandam, o oficial e o ajudante fazem, o maioral recebe as prendas dos vizinhos e nós... nós trabalhamos arre foda-se!, ou melhor tu trabalhas, mesmo sem receber, porque és viciado em trabalho... ele disse que a mãe investiu cinco mil euros na obra, e que fizemos o trabalho rápido demais, agora só no fim do mês a obra nas restantes casas recomeçam.
-- Cinco mil... cinco mil foi o que a mãe lhe deu, ele na obra gastou seiscentos...
-- Eu pensei em mil, com a nossa mão-de-obra...
-- Qualquê, agora estão a dormir no chão, deitámos-lhe o colchão de pulgas fora e agora dormem os dois no chão, disseram que iam pôr vinil no chão e arranjar dois beliches na Remar, eles levariam a mobília que está lá fora para o lixo, o Luis pagar-lhes-ia cinquenta pelo serviço mas... o dinheiro voa, estão a dormir no chão, é o que te digo: o caneco é fodido.
-- Achas que a mãe sabe para onde foi o dinheiro?, o próprio senhor Neca disse que cinco mil era muito dinheiro...
-- O senhor Neca não sabe de certeza, mas o Luis disse que a mãe lhe disse: droguem-se mas não se aleijem, eu não faço seguro...
-- Essa cona real não queria eu para minha mãe, olha a droga ser matéria prima para o filho fumar enquanto nos faltou o primário para aplicar na parede antes de pintar, o branco está bege da humidade...
-- E não é só isso, por causa dos fumos da cozinha e da nicotina as paredes deviam ter sido lavadas com lixíva e só depois aplicar o primário, por isso...
-- Bem, ao menos aplicámos criolina, retirámos a madeira podre, pulgas, percevejos e térmitas desapareceram...
-- Eles disseram que apareceram quatro baratas...
-- Pois, quando houver dinheiro, pelo menos para uma porta nova com fechadura, a gente aplica um pó na entrada e elas não entram mais.
-- Mas podem nascer na cozinha, eles ontem à tarde apareceram com dinheiro e uma garrafa de uísque, fumaram o torrão e torraram o dinheiro que mãe lhe deu para o são joão em mais um táxi, à noite já estavam no crava.
-- E a história continua...
-- Fase 1 terminada
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Claudio Mur

terça-feira, 2 de junho de 2020

Coisa que não está nos costumes dos países que têm inferno.

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Depois desta borrasca, conjurada graças ao carácter firme da condessa, os dois espósos viveram assim-assim, com a pensão de reforma, a qual, graças à recomendação do general Bubna, não se fez esperar.
Por um feliz acaso, havia já (...)
Essa coragem ridícula a que se dá o nome de resignação, a coragem do tolo que se deixa enforcar sem um protesto, não estava nos hábitos da condessa. Furiosa com a morte do marido, queria que Limercati, esse jovem rico, seu íntimo amigo, se lembrasse também de ir viajar pela Suiça, e desse um tiro ou uma bofetada ao assassino do conde Pietranera.
Limercati achou o projecto perfeitamente ridículo, e a condessa deu conta de que o desprezo matara nela o amor. Redobrou de atenções para com Limercati; queria torná-lo mais apaixonado, e em seguida abandoná-lo e levá-lo ao desespero. Para tornar este plano de vingança compreensível em França, direi que em Milão, terra muito afastada da nossa, ainda há quem, por amor, possa sentir-se desesperado. A condessa que, nos seus trajes de luto, eclipsava todas as rivais, deixou-se galantear pelos jovens de mais elevada posição, e um deles, o conde N.., que sempre dissera achar Limercati pouco digno, pela sua afectação e falta de espírito, duma mulher superior como era a condessa, ficou loucamente apaixonado por ela. A condessa escreveu a Limercati:
«Quer ser uma vez na vida um homem de espírito? Faça de conta que nunca me conheceu. Subscrevo-me, talvez com certo desprezo, sua muito humilde criada -- Gina Pietranera».
Quando recebeu este bilhete, Limercati partiu para um dos seus castelos; o seu amor exaltou-se, ficou meio doido e falou em dar um tiro nos miolos, coisa que não está nos costumes dos países que têm inferno.
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páginas 31 - 32
'A cartuxa de Parma'

Stendhal
tradução de Adolfo Casais Monteiro
edição Editorial Inova 1974