terça-feira, 30 de junho de 2020

Walser, meu tolo amigo e camarada, estás cheio de razão!

Aproveito um feriado miltar de vinte e quatro horas para partir, de madrugada, da fortaleza de Sargan, subir ao vale e apanhar o comboio para Herisau. Conversa com o médico-chefe, que me conta que Robert, ante a notícia da morte do seu irmão Karl, em Berna, a 28 de Setembro [de 1943], se limitou a responder secamente, «Ai sim?» Ele teima em representar o papel do realista sereno e não quer distinguir-se em nada dos outros hóspedes do sanatório. Evita a todo o custo qualquer exibição sentimental. De resto, esta atitude é frequente em muitos esquizofrénicos. Das duas uma: ou o equilíbrio emocional é perturbado por demonstrações mínimas de alegria ou sofrimento, ou o paciente tem ataques de emoção explosivos, que assumem por vezes dimensões catastróficas. Robert parece querer distanciar-se, marcadamente, do mundo em redor. Só quando lhe foi dito que a sua irmã Lisa tinha adoecido pareceu comover-se um pouco. A princípio, o médico esforçava-se por fazer chegar-lhe às mãos, como por acidente, artigos publicados sobre ele ou o seu irmão Karl. Mas Robert acabara por tornar-se hostil, a ponto de deixar de cumprimentar o médico. Quando este lhe falou sobre isso -- «Mas nós costumávamos entender-nos, Sr. Walser!» --, Robert enfureceu-se: «Porque me importuna com estes artigozecos? Não vê que me estou nas tintas? Deixe-me em paz! Tudo isso ficou para trás, bem longe.» (...)
Robert espera-me, já impaciente, diante da segunda ala, onde se encontra hospedado. Nos últimos seis meses, não reagiu a nenhuma das minhas cartas ou encomendas. Agora, porém, vem ao meu encontro de modo animado e espontâneo, até mesmo entusiasmado: «Como você cheira a exército! Óleo para espingarda, couro, palha, suor -- tudo isso me reconforta. Não é maravilhoso viver tão intimamente com o povo, corpo contra corpo, como se se estivesse entre irmãos?» Informa-se com interesse sobre tudo o que trago comiigo: da cobertura de tenda enrolada aos galões de oficial, passando pela lanterna de bolso pendurada à cintura e pelo boné novo. Digo-lhe que a vida simples do exército sempre me atraiu. Robert: «Esse é, de facto, um dos seus aspectos mais positivos. A abundância pode tornar-se um grande peso. É na pobreza e na simplicidade que a verdadeira beleza, a beleza de todos os dias, se revela de modo mais suave.» (...)
De manhã: ao passarmos, a bom ritmo, as casernas na parte antiga de Herisau, rumo a Sankt Gallen, falamos primeiro das notícias terríveis da guerra e depois do povo suíço. Eu digo: «A verdade é que o povo não quer, de todo, governar. Quer ser governado.» Robert concorda, vivamente: «É até bastante benevolente para com a tirania!» Mas apressa-se a acrescentar: «No entanto, não se lhe pode dizer isso. quem o fizer irritá-lo-á e será visto como um bruto. Mas, no fundo, o povo deseja muito menos liberdade do que se pensa.»
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, páginas 78 -até- 80

''Caminhadas com Robert Walser''

Carl Seelig
tradução de Bernardo Ferro
edição de BCF editores 2019

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