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-- Onde está a minha mochila azul?
-- Está aqui no guardafatos.
Ela vem e procura e não encontra, diz: -- Não tenho o estojo...
-- Que estojo?
-- O de depilação.
-- Eu arranjo-te uma lâmina, comprei um pacote com cinco no início do mês. Olha aqui.
Je agradece e diz: -- Vou levar a minha aliança.
Eu pergunto então porquê?
-- Ah, ainda não te contei. Na Sexta, quando fui pedir o papel no balcão do metro, um homem me abordou, estava eu à espera da minha vez com senha já tirada e a fumar cá fora, à espera, ele me disse «Dou-lhe cento e cinquenta euros se você ficar um pouco comigo» e até me mostrou as notas na carteira.
-- Palhaçada! Era novo ou velho?
-- Uns cinquenta anos talvez... Não tenho sorte nenhuma. Vou levar a aliança e depois digo que sou casada.
-- Ok.
Je vai arranjar-se e eu preparo-me para sair igualmente, acompanhá-la à estação, receber o seu contributo mensal para este período da nossa vida, ao qual chamamos de férias, e com o seu magro rendimento recebido hoje eu vou aproveitar para pagar a conta da água e da luz, aproveito e já fica pago, é incrível como o seu rsi é só de setenta e quatro euros enquanto o do ex-marido com rendas e ajuda da mãe é o de lei.
-- Estou pronta Ru.
Saímos. Calor. Hoje almoçámos o que restou do jantar de ontem. Massa tricolor com sardinha com picante e tomate. Tomei o meu café de saco, ela preparou o seu cremoso e ela disse já a caminho da estação do metro: -- Gosto mais quando é você que escreve.
-- É natural. Afinal eu leio todo o dia e escrevo de vez em quando enquanto que você gosta mais de ver os seus filmes de terror no tubo. Mas eu gostei do que você escreveu. Pelo menos é autêntico, Vê-se que foste tu a escrever e o que tu escreveste pode fazer com que te perdoem a multa. Eu escreveria outras frases, outras palavras, mais finas, mas não seriam verdadeiras, nunca me lembraria de escrever a palavra humildade e sei que fiz errado. Eu já te escrevi para uma candidatura a um anúncio na net e escrevi e só depois de enviar reparei: obrigado por uma oportunidade. Compreendes? Uma mulher diz obrigada e não obrigado. E eles ou elas ao lerem a tua candidatura podem ter achado estranho e te ter posto de lado.
Ela olhou para mim e penso que concordou comigo. Ela nunca precisou de preencher um formulário para o que fosse. O marido na altura fazia tudo por ela, divertia-a com luxo e cerveja e nem sequer a deixava conhecer mundo e arranjar um emprego como qualquer mulher que quer ter dinheiro seu e ser minimamente independente. Tirou-a de uma padaria porque o patrão quis abusar dela, passar a mão na bunda dela, e o marido não tem mais nada, em vez de dar dois tabefes no infeliz, foi buscá-la de carro e lhe deu cartão bancário e a transformou em esposa-amásia. Banca de luxo.
Eu sou diferente, eu não lhe dou nada e dou-lhe tudo, partilho o que tenho com ela, arroz, massa, frango, sardinha, tabaco, mortalha, ganza, ela dá-me um pouco de dinheiro para suportar o aumento de renda que o senhorio impôs, e ele foi bom para nós, ele chegou a dizer que eu ter posto alguém a morar em casa sem o seu conhecimento era motivo para despejo, eu sei eu sei, disse-lhe eu com quase olhos a chegar à lágrima, foi traição mas não havia outro jeito, arrombaram-lhe a porta às três da manhã, ela ligou-me às quatro e eu fiz que não ouvi ou era tarde para atender, e ela esperou até eu acordar e às nove da manhã me ligou.
-- Eu até posso acreditar em vocês, mas diga-me lá senhor Ru, vocês fazem vida de cama, são um casal?
-- Já fizemos essa vida, não digo que não viremos a novamente fazer, mas agora somos apenas amigos, quase como irmãos.
-- Ela está aqui há quanto tempo?
-- Há três dias.
Digo eu mentindo mas ele aceita as minhas palavras, a minha sorte é que nunca lhe dei problemas, pago-lhe as contas que chegam, entrego-lhe o seu correio, informo-o das novidades. Aumenta-nos a renda. Ele gostou da Je.
Agora estamos a caminho do metro, ela tem de ir ao balcão da estação entregar a carta de pedido de perdão da multa. Bem no final do prazo de quinze dias para reclamação. E até ao fim de semana, a multa é de sessenta euros. Depois duplica. O bilhete de multa até referência multibanco tem. Uma eficiência. Onde vai ela arranjar dinheiro para pagar? Só espero que se ela precisar de tirar o passe não lhe exijam o valor da multa já liquidado.
-- Paga-me um café.
-- Não tenho troco.
-- Destroca.
-- Não tenho notas e mostro-te, olha. Vamos ali ao multibanco, olha podemos depois tomar aqui o café.
- Está bem.
Sentmo-nos. Pedimos os cafés e tomamos. Depois levo-a ao metro.
-- Cuidado com os picas. Entra sempre no fim da plataforma e depois lá dentro vai caminhando para o início do comboio. E sai em cada estação só para ver se eles entram...
-- Ó vou lá fazer isso. Assim toda a gente vai reparar.
-- Olha, já vi uma vez duas vintonas fazerem isso e não pareciam das que não tinham dinheiro, só não queriam pagar, elas entravam e saíam a cada paragem, e ficavam a falar junto à porta.
-- Sei lá, a gente ainda faz um telefonema e me delata.
-- Há chibos e bufos e aquilo que no Brasil vocês chamam, os xisnove, mas eu acho que neste caso... há um mínimo que as pessoas não fazem.
Ao chegarmos à plataforma do metro, caminhamos para o fundo e passamos pelos bancos. Reparo num senhor que tem um livro na mão mas não lhe consigo ler o título. Está sentado ao lado de um jovem que eu faço questão de ignorar, porque acho que o conheço, não tenho nada contra ele, ele é filho do Zé que morou comigo na casa do visconde aqui há quase oito anos, só não falo porque ele cresceu e nada sei desse pessoal, cortei com eles porque eles quiseram roubar a minha Sanea, e na altura tudo entre nós acabou. Agora este Nuno terá vinte e um, vinte e dois, vejo-o várias vezes na rua, ele também me conhece mas nada me diz, respeito de algum modo, ele sabe que eu fui bom com ele na altura em que o pai era meu colega, também ele uma criança já perturbada, já a tomar lorenin com treze anos, e bem depois da ritalina, problemas na escola, pai ex-tóxico, mãe ex-tóxica e seropositiva, não falo com o Nuno mas respeito. Espero que ele não vá anunciar que eu estou com a Je.
Ela entra no metro e eu venho para casa após pagar vinte e sete euros e cinquenta e cinco cêntimos de água e de luz. Ponho-me a restaurar a capa do livro do Jorge Amado que estou a acabar de ler. Tereza Batista, que mulher!, faço um charro, descanso um pouco a ouvir um lp de Carlos Casas e Je liga.
-- Oi, está em casa?
-- Sim.
-- Vou praí agora. Só amanhã vou à Vendana. Não me estou sentindo bem.
-- Passou-se alguma coisa. Onde estás?
-- Estou na fila do balcão. Depois eu ligo quando estiver a chegar.
Ela desliga e eu vou fazer o café da tarde. Olho-me ao espelho e decido fazer a barba. Ela chega.
-- Então, é tontura?
-- Não, eu já acordei mal-disposta, é um mal estar...
-- Barriga, cabeça?
-- Não sei te explicar, é um mal estar que se sente. Olha, nem com aliança!
Eu olho para ela que mostra os anéis e os retira.
-- Porquê? O que se passou?
-- Um sessenta anos me abordou e me disse você fica feia de máscara, devia tirar, não quer vir comigo. E eu disse: eu sou casada e você é mal educado e não está a dois metros de distância, ele estava sem máscara...
-- É o que eu digo: você agrada a novo, velho e até mulher, você é bonita por demais. Devia vender a aliança.
-- Eu gosto dela.
-- Era dinheiro fácil.
-- Eu não quero dinheiro fácil, se não ia fazer programa para a Fa!
-- Sim eu sei que não. Mas geralmente as mulheres divorciadas vendem a aliança, a ela está associado um homem e elas querem desfazer-se dessas recordações pessoais. Davam-te quarenta, cinquenta euros por ela.
-- Ah, ele pagou bem acima de duzentos.
-- Então é isso que recebes, o ouro está forte.
-- Mas eu não quero vender, pelo menos para já.
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Claudio Mur
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