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Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias da bexiga negra. Viu o director do posto de saúde, jovem doutor de Faculdade, fugir em tão desabalada fuga a ponto de tomar o trem errado, fazendo o trajecto para Aracaju via Bahia, pela bexiga expulso da cidade. A correria do fujão, descrita com detalhes pelo farmacêutico na noticiosa porta da botica, causou risos em meio ao choro pelos mortos. Onde vai assim com tanta pressa, oh doutorzinho? Vou a Aracaju pelas vacinas. Mas esse trem não vai, ele vem de Aracaju, vai pra Bahia. Me serve qualquer trem, qualquer caminho, o tempo urge. Mas as vacinas, doutorzinho, eu as trouxe, estão aqui comigo, estoque suficiente para vacinar de cabo a rabo o estado de Sergipe e ainda sobra. Pois que lhe façam bom proveito, fique também com os eleitores de Buquim e, se tem dinheiro e competência, com a rapariga, é de chupeta.
Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias de bexiga-de-canudo. Viu as putas de Muricapeba, singular e diminuto batalhão, sob o comando de Tereza Batista, espalhando-se pela cidade e pelas roças a aplicar vacinas. Boa Bunda, de colossal traseiro; a magra Maricota, para apreciadores do género esqueleto, muito em moda; Mão de Fada, nos tempos de donzela assim apelidada pelos namorados, até que um deles foi além da mão e lhe fez a caridade; Bolo Fofo, balofa, gordalhona, para os apreciadores do género jaca-mole ou colchão-de-carnes, há quem goste; a velha Gregória, com cinquenta anos de labuta, contemporânea do doutor Evaldo, pois chegaram os dois a Buquim na mesma data; a menina Cabrita, com catorze anos de idade e dois de ofício, um riso arisco. Quando Tereza as convidou, a velha disse não, quem é doida de se meter no meio da bexiga? Mas Cabrita disse sim, eu vou. foi brava a discussão, além da vida, que tinham elas a perder? E a vida de uma puta do sertão, morta de fome, que merda vale? Nem a bexiga quer vida tão barata, até a morte a enjeita. Gregória ainda não está farta de miséria? Foram as seis e aprenderam com Tereza, Maxi e com o farmacêutico a vacinar, rápido aprenderam -- para quem trabalha de rameira nada é difícil, acreditem. Recolheram bosta seca nos currais, lavaram roupa empesteada, lavaram enfermos com permanganato, furaram pústulas, cavaram covas, enterraram gente. As putas, elas sozinhas.
Viu o povo de Buquim coisas de assombrar naqueles dias da bexiga-mãe. Viu os bexiguentos andando nas estradas e nas ruas, postos fora das fazendas, buscando o lazareto, morrendo nos caminhos. Viu o povo fugindo, abandonando as casas no medo do contágio, sem rumo, sem destino -- quase deserto ficou o arruado de Muricapeba. Dois fugitivos foram pedir pouso no sítio de Clodô, este os recebeu de clavinote em punho, caiam fora, vãos pròs Infernos. Insistiram, choveu bala, um morreu logo, o outro penou, não sabia Clodô já estar contaminado; ele, a mulher, dois filhos e mais um de criação, não sobrou nenhum, todos no papo da bexiga.
Viu por fim o povo, num assombro, a citada Tereza Batista levantar na rua um bexiguento, com a ajuda de Gregória e de Cabrita metê-lo num saco de estopa e pô-lo ao ombro. Era Zacarias, mas nem a velha nem a menina reconheceu o frustrado freguês da outra noite -- expulsos da propriedade do coronel Simão Lamego, ele e mais três variolosos. Não queria o coronel contaminação em terras suas, fossem morrer na puta que os pariu e não ali ameaçando os demais trabalhadores e membros da família ilustre. Quando Zacarias e Tapioca caíram com bexiga, o coronel estava de viagem, por isso ali permaneceram os dois, sendo que Tapioca logo morreu, não sem contagiar mais três. Com a chegada do patrão acabou-se a pagodeira, o capataz recebeu ordens terminantes e os quatro enfermos, sob ameaça de revólver, arrastaram-se para loge da porteira. Três se internaram mata adentro, buscando onde morrer em paz, mas Zacarias tinha apego à vida. Nu, as chagas expostas, o rosto uma postema só, bexiga-de-canudo, visão do Inferno, por onde ia passando punha o povo em fuga. Sem forças foi cair na praça, em frente à igreja.
Tereza veio e, com o auxílio das duas putas -- pois nenhum homem da localidade, nem sequer Maxi das Negras, teve ânimo de tocar o corpo podre do trabalhador --, como um embrulho o enfiou no saco e o pôs ao ombro, carregando-o para o lazareto, onde já estavam, tendo ido pelos seus próprios pés, duas mulheres e um rapaz do campo, além de quatro outros procedentes de Muricapeba. Atravessando a aniagem, o pus de Zacarias vinha grudar-se no vestido de Tereza, escorria-lhe viscoso pelo corpo.
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páginas 240-242
'Tereza Batista cansada de guerra'
Jorge Amado
edição Círculo de Leitores
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