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«Pois essas divertidas e caprichosas cenas, tão exóticas como pueris, que, enrodilhadas e com feia catadura, têm devorado páginas e páginas em frases de todos os tamanhos, terão alguma coisa de comum com a suave e desafectada narração dum prometido conto não só verdadeiro, mas até elegante? Um conto! Chama-se isto um conto! Dos que se dizem nos serões de inverno com pasmo das imaginações rudes ou infantis, poderá ser. Mas conto para gente fina e séria, para gente, que sabe de cor Edgar Poe e Hoffmann! Oh, oh!
Sobretudo imperdoável é o desaire, com que o demónio do escrevinhador deixa transluzir das combinações do seu espantoso embróglio o presunçoso intento de fazer um romance, que lhe dê azo a fingir-se modesto, chamando conto ao que, no juízo dele, vale bem um romance. Ora, meu senhor, se queria rabiscar coisa como romance, sofreasse um tanto os ímpetos com que os seus esfalfados heróis se precipitam no epílogo; demorasse as situações com peripécias, episódios e tudo o que lhe lembrasse, capaz de aumentar o interesse e aperfeiçoar o lavor artístico da obra. Não basta encadear dois dissaboridos diálogos e alguns ditinhos simplórios e afectados. Diálogos! Nada mais fácil. Duas pessoas, que falam, uma depois da outra, com intermédio de pausas e reticências... Se queria fazer-se notado saísse a campo com seis, oito, vinte palradores, prendesse-os a uma geral conversação em que falassem todos, alternados e simultâneamente, em grita e com moderação. Então sim. Aí encontraria oportunidade de desvendar a sua mestria nas dificuldades da arte. Mestria essa, que ninguém ousaria contestar uma vez que alcançasse meios de se esquivar a mostrar-nos, pela extravagância da algaravia, de que fabuloso modo se digerem bojudas vasilhas de álcool.
Nesse caso não nos opunhamos a que se levantasse um estátua de barro em paga da sua Estátua viva. Apenas se atreveu, porém, com a parte mais plebeia e chilra deste género de literatura -- o diálogo, coisa que hoje nem os dois mais triviais interlocutores quereriam alimentar; embora iluda um tanto a paradoxal aparência da proposição. Quanto ao visconde de Aveleda é ele, diga-se a verdade, a mais simpática criação, qiue pode deduzir-se de inexperto cinzel.
Porém, que destino! A astúcia deprevada do autor faz que o vejamos na parte luminosa do quadro; que nos ganhe, não direi simpatia, mas um pouco de benevolência...
Depois acende um fogão monstro e de particular estrutura que estava preparado de encomenda para receber um homem inteiro, e lança-o, com bastante pena nossa, ao meio das chamas, e assa-o, não sei bem se com tenção de o comer. Palpita-me que o vai comer. Isto não se faz em país civilizado e liberal! Enfim, seja como for, já gastámos mais cera do que é de lei com ruins defuntos. Oxalá que, aproveitando-lhe a lição, venha a convencer-se de que não sobra quem se empenhe nos progressos práticos da agricultura, e deixe de andar tresmalhado nestes difíceis caminhos, que nunca pés mazorros logram percorrer sem sangue.»
São assim, pouco mais ou menos, as sibilantes expressões da maledicência, que eu desprezo, sem que, todavia, deixe de vir a indignação das grandes almas ofendidas inflamar-me as nacaradas bochechas.
Crítica cordata e justa escutei-a sempre respeitoso. Insolências, à laia das supraditas, não são lanças, que façam saltar da sela cavaleiros do meu jaez, nem hão-de ser em tempo algum admoestações, que corrijam defeitos. A minha generosa indignação não me deixa responder, como pedia o caso, se bem me está borbulhando a ideia de confundir os linguareiros por meio duma digressão ideológica, em que podia patentear os tesouros, que tenho amontoados no meu celeiro. Não quero fazer escândalo. É o que lhes vale. Em desforra, apenas prometo esmerar-me a fim de ser mais natural e correcto no seguimento do conto, que prossegue do seguinte modo:
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Álvaro do Carvalhal em ''Os canibais''
páginas 162-164
na «Antologia do conto fantástico português»
edição Arte Mágica editores, Lisboa 2003
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