Na Terça-feira da semana passada, precisei de ir comprar tinta à loja Sousa&Ribeiro na Baixa do Porto, e fi-lo a pé. Descendo a Rua Faria Guimarães, parei na montra da Livraria 50Kg (http://edicoes50kg.blogspot.com/), onde um mês e pouco antes havia comprado um livro facsimilado de Vergílio Ferreira de nome «Vagão J», um livro censurado pela Pide em 1946. Esta edição contém o auto de censura e apreensão de exemplares. Já o li. Cheguei a contar um dos episódios do livro aos meus pais, quando falávamos ao almoço de uma reportagem sobre a eutanásia que está a passar na televisão.
Disse eu qualquer coisa como: «Pois, o Chico Borralho era pobre mas trabalhador, mas não havia seguros de acidentes de trabalho na altura, ficou debaixo de uma pedra, amputaram-lhe uma perna mas deixaram o coto a pingar, e a família a queixar-se que o pai e o marido era um fardo, uma boca inválida que não pode trabalhar, e o filho chega com o cunhado e levam o Borralho ao médico em cima de um carro de bois e querem que o médico lhe dê um veneno para ele não sofrer mais nem mais fazer sofrer, mas o médico recusa e eles vêm embora. O pai Borralho ao corrente de tudo, são das ideias, há muito tempo a dar razão à família: sou um fardo. Aproxima-se na estrada uma camioneta e o Chico Borralho atira-se do carro de bois para as rodas da camioneta. Morre e resolve o problema a todos. E todos ficam como parvos a pensar no caso. Lágrimas zero.
Disse eu isto a meus pais porque acho que deve uma pessoa ter o direito de morrer com dignidade, tal como temos o direito de abortar com dignidade. São questões fracturantes para as quais os meus pais têm opiniões diversas da minha e onde a religião tem um papel principal.
Mas na semana passada parei na montra da livraria e vi um livro de Jean Giono. Uma edição antiga por cinco euros. Pensei em comprar logo no momento mas resolvi que melhor era ir primeiro fazer as despesas que me propusera e as outras: passar na tabacaria, comprar mortalhas, filtros e uma nova máquina de tabaco. Talvez na subida de volta a casa, pensei eu. Nã... a subida faço-a pela outra rua, pois ainda tenho de ir ao minipreço.
E assim foi. A semana passada não comprei o livro e eu não moro propriamente na zona, mas andei todo este tempo a pensar no livro de Jean Giono e se haveria de gastar mais dinheiro noutro livro, quando tenho tantos que ainda não li. Passou-se a feira do livro e nela, devido às regras anti-covid, estive dez minutos, comprei no stand da Editora Exclamação. Pelo que andei este tempo todo a pensar que podia investir mais cinco euros e ler o Jean Giono, afinal soube que ele foi recentemente editado pela Sistema Solar e muito me agradei desse facto, embora não tenha comprado esse livro. Andei o tempo todo a pensar até ontem.
Ontem, senti cinco euros seguros na carteira e decidi-me a dar um passeio até à livraria. Cheguei lá, mas o livro de Jean Giono já não estava na montra. Hesitei mas acabei por entrar. Dei uma vista de olhos pelas estantes, encontrei «Pétalas de Sangue» do mesmo autor de «Não chores menino». Vi um livro de Olivier Rolin que talvez... acabei por perguntar pelo livro de Jean Giono que estava na montra nem há quinze dias.
-- Ainda não foi vendido certamente... como se chama o livro?
-- Qualquer coisa como «Vai ficar tudo bem», disse eu e logo me apercebi que era um título ridículo e que a minha memória me estava a pregar uma partida, devia ser um título semelhante...
-- Não sabe a editora?
-- Não, não me lembro. Acho que a capa era verde.
O livreiro começa a procurar ele prórprio nas estantes, consulta o telemóvel e chega à conclusão que não se lembra. Eu digo «deixe lá» enquanto pesquiso mais uns livros e ele continua também à procura. Finalmente:
-- É este aqui.
E apresenta-me o livro: Jean Giono -- Que a paz seja connosco -- edição Porto Editora.
Eu pego no livro e tento folheá-lo, digo: -- Ainda está por abrir! Tens as folhas por cortar.
-- É, esse livro nunca foi lido.
-- Eu conheço, começo eu a dizer, Jean Giono dos anos 90, na altura ele tinha uma editora que editava discos do Burroughs e dele e doutros.
-- Era um beat portanto.
-- Sim, acho eu.
Acabo por comprar o livro e o «Pétalas de sangue» de Ngũgĩ wa Thiong'o. Venho para casa. Passo o resto da tarde e do serão a acabar de ler o Roberto Arlt. Depois, antes de me deitar, começo a cortar as primeiras páginas do livro de Jean Giono, para o começar a ler hoje. E começo a achar que algo não bate certo, este livro, este autor, numa edição sem data e com mais de cinquenta anos da Porto Editora, algo não bate certo. Reparo que o livro no original se chama «Que ma joie demeure» e vou à procura na internet, em inglês chama-se «Joy of man's desiring». Vejo a página inglesa da sua biografia (https://en.wikipedia.org/wiki/Jean_Giono) e penso: «algo está errado, eu conheço Giono da sua associação ao Burroughs e dos discos da Giono Poetry Systems dos quais recebia os catálogos de edição nos anos 90 em tempos pré-internet.»
A internet torna tudo mais fácil, vou ao discogs.com e procuro por Jean Giono e nada, nenhuma associação ao Burroughs, e afinal o Giono faleceu em 1970 e os discos dos quais me lembro são dos anos 80. «Deixa procurar na discografia do Burroughs»
E encontro, e a confusão fica desfeita. Existe Jean Giono, autor francês naturalista e pacifista com obra escrita a partir dos anos 20, 30 do século XX, e existe John Giorno, poeta americano (https://en.wikipedia.org/wiki/John_Giorno), fundador da Giorno Poetry Systems (https://www.discogs.com/label/16963-Giorno-Poetry-Systems) e que editou Burroughs, Laurie Anderson e outros.
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