segunda-feira, 28 de setembro de 2020

[Parental advisory] Mesmo a morte é melhor que esta vida inútil

Esta transcrição, em baixo, é dedicada ao poeta que escreve debaixo do nome Diogo Vaz Pinto. Os textos que ele escreve debaixo da etiqueta «modus operandi» no seu blog estão cada vez mais apelativos a que os meus neurónios trabalhem e não se deixem morrer como o corpo, eu estou morto há mais de vinte anos, mas a minha consciência ainda vai despertando de duas maneiras apenas: com o sorriso cúmplice de uma mulher madura ou com as palavras sensitivas de um ser humano onde vejo humanidade. Ele pode escrever com um machado e eu há muito tempo que usei um machado para cortar o meu próprio escalpe, metaforicamente claro, não se assustem em demasia. Os golpes são os únicos actos de amor que ainda me acordam. Tudo o resto é apenas higiene mental. Mas as palavras contam. Ele talvez me perceba mesmo que a linguagem e o estilo seja diferente: não sou teu igual nem te quero roer o coração nem o amor do teu coração, mas somos semelhantes, sou talvez o teu primo doente e distante, o teu coleguinha da primária que punha pióneses no pião para no chão este rodar mais bonito.


U Capítulo minus XIII

Joan LaBarbara: Sound paintings

Scanner: That’s ok

Swans: Greed/Holy Money

 

Acordei tarde hoje. Como o hoje era Sábado, levantei-me por volta das duas horas da tarde. Não acordei bem-disposto nem rápido. Esta atitude tem-se repetido ao longo das semanas. A culpa das olheiras penso ser da preguiça e de algumas pestanas queimadas. Quando finalmente saí da cama, fui directo ao espelho. Levei as mãos à cara e puxei com violência a pele para baixo, irradiando os meus olhos de sangue capilar.

Banho?, pensei eu.

Não. Tomo amanhã.

Dirigi-me à casa de banho, experimentei a nova espuma de barbear e as novas giletes. Quando pus a lâmina na cara, esta queixou-se: ai!, as da outra marca eram bem mais amáveis, bem mais gentis para comigo.

Levei a toalha à cara, e vi no espelho uma pequena incisão vermelha, abri a boca tentando encontrar as amígdalas mas não vi nenhuma, então respondi: pois é, tens razão, devia ter aberto o pacote e ter experimentado antes de o comprar.

Voltei ao quarto. Enrolei um Águia. A gaveta esperava que eu lhe tocasse. A sua virtude continha comprimidos para a memória e ampolas bebíveis para a boa disposição. Ao voltar ao espelho comecei a pensar: bem, agora vou sair e comprar o jornal, tomar um café e comer qualquer coisa, sim, preciso de comprar... preciso de comprar umas calças, preciso de tempo, preciso de escrever as palavras que o assassino de psiques me inspirou, Hipócratres nada percebia de prescrições psiquiátricas senão prenderia médicos, preciso de falar com os Coil, a sua loucura induzida por drogas, a droga como estímulo inspira-me. Hoje, acordei a lembrar-me da conversa de um colega que, ontem, me dizia: acho que quando terminar a licenciatura, vou para o Havai, acho que o meu futuro pode passar pela Internet. Vê só! Havai, ondas, surf, mulheres... e ele, aqui, baba-se como se fosse um lobo esfomeado! Iá, interrompi eu, uns coqueiros. Imaginei-me... imaginei-me logo eu, a minha personagem com um copo de waikiki na mão, a pensar... a pensar em quê? Ouve lá, sabes como se faz para apagar um ficheiro? Ele reponde um tanto assustado: mdel... e, a seguir, o nome do ficheiro. Pois!, eu devia saber uma coisa destas...

Começo a vestir-me, penso que, quanto muito, tirarei um dez no exame final do CReEA daqui a quatro meses, sou um ruqui em informática, os meus colegas são mais havai e gajas enquanto eu sou mais loucura e droga, estou-me a cagar para tudo, sinto-me condenado há muito tempo, quero música que me aliene deste mundo, desta sociedade, sou um zombie com vergonha de o ser, fujo com a música, há muita música para mortos vivos, toda a gente tem a fixação de associar a música ao músico, ou seja, todas as pessoas têm o hábito de caracterizar a música como sendo um reflexo instantâneo do modo de ser e agir do músico e, se a acham desagradável, dizem que eles deverão ser desagradáveis, uns merdosos, eu não espero que eles sejam boas pessoas, apenas espero que a sua música o seja. Já me chega. É suficiente, basta-me, além disso, a música sempre foi o mais importante, mais do que as famosas palavras... e, além do mais, os músicos podem ser os maiores merdosos e a sua música ser altamente. As drogas estão aí à mão de qualquer um. As pessoas são livres de fazerem o que quiserem, todos têm o direito de viver, de morrer, etc., o dia D já se foi. Eu só quero que o produto que adquiro seja bom e não me interessa o resto. Toda a gente tem o direito a consumir. Aliás, vivemos numa sociedade de consumo.

Mas aqui há uma questão que me azucrina: o que é mais importante, se a arte e a obra ou a vida e as opiniões de vida de um autor? Reparo em mim numa mudança de ponto de vista, agora que me sinto um nojo menor que zero, dou por mim a dar valor à vida que ainda quero viver, quero lutar por subir do grau zero, deixar a tona de água e subir no balde se alguém vier buscar água, quero olhar bem a lua no zénite e descobrir neste poço uns quaisquer degraus revelados nas reentrâncias do abismo em que estou como um náufrago, como o lobo enganado pela raposa que lhe oferecia o mais belo queijo. O que é mais importante? A arte ou a vida? Dou um exemlo, em duas partes.

A primeira: se a música for excelente e eu nada conhecer do músico, se a sua música me der epifanias e oportunidades de a lincar a memórias ou acontecimentos psicogeográficos... então tudo bem, respeito e aceito mesmo sem concordar com as opiniões e modos de vida do músico. Podem é eles passarem de moda para mim e eu desligar-me de conhecer novas obras devido às suas posições geralmente políticas com as quais não concordo.

A segunda: se eu conheço uma pessoa anónima na minha vida pessoal e a respeito pelo modo como vinga ou não na comunidade em que ambos vivemos... então tento partilhar o mais que puder com essa pessoa, e se essa pessoa se vier a revelar portador de qualquer actividade criativa que eu goste de seguir, torno-me quase incondicional no apoio a essa pessoa, compro mesmo a sua obra se ela estiver disponível, e posso ler ou ouvir ou apreciar a obra de arte ou colecção e não gostar ou não concordar e ter opiniões divergentes, mas não ofendo a pessoa, respeito a opinião artística contrária à minha e tento tanto não antagonizar como não evangelizar.

De maneira que... ah!, a sociedade de consumo e os filiados no partido dos desadaptados da sociedade de consumo, sim, estou a seguir a tua linha de pensamento, adorei a tua assertividade,´estás cada vez mais top, mas o que eu queria mesmo era falar-te dos sapatos, os meus sapatos comprados ontem dão-me um andar agradável, nunca pensei que o tamanho me servisse, não me posso esquecer de comprar... o que se põe nos sapatos?, é graxa não é?, é ridículo mas eu devia perguntar isto numa sapataria: olhe, por favor, enseba? Estou mesmo a ver o grande filme, um remake de uma produção obscura a preto e branco filmada em locais reais com o personagem, um adolescente de quinze anos entra numa papelaria obcecado por Ginas e Tânias e pergunta à empregada, ainda nova: olhe, tem foda? Não, não temos. E o adolescente volta para casa, vê o tonto do director do colégio de frades e muda de passeio, nunca gostou do grupo de jovens daquela paróquia, ainda assim, recorda as visitas de estudo, os gunas no castelo, as bolas de bilhar roubadas, as mamas da empregada do restaurante e como o patrão lhas cobria com os abraços e eu, nesse momento, pensava: descobre-lhe as mamas pra eu ver... hum, aqui não me estou a ver a trabalhar, por exemplo, num restaurante ou, então, sempre posso ganhar o totoloto. Bolas!, esqueci-me de o registar ontem.

Devias ser violado: Rasga a voz vindo pelas colunas da aparelhagem. Imagino um quarto, não... uma casa, a casa que compraria com muito impacto, muito requinte. Mas porquê uma casa e não um quarto? Oh, porque um quarto é sempre um espaço muito pequeno para todas as minhas coisas. Se eu for para fora, se emigrar terminados estes trinta meses de CReEA, deveria esquecer o meu passado? Para isso, teria talvez de fazer uma operação plástica e, mesmo assim, haveria sempre espelhos para mostrar a máscara, desmascarar quartos, quadros envelhecendo ao longo dos anos com as ampolas bebíveis para a boa disposição, mas porque raio tomo eu os comprimidos?, para aqui não esquecer o meu ser... e lá fora não me esqueceria, já não as tomava, é isso? Juro eu, em baixo assinado juro, juro nunca mais tocar em drogas, em bebida e em carne humana durante toda a minha vida. Ófcorse. Eu deveria esquecer o meu passado para só ter futuro e a casa estaria dividida em vários estúdios, imagino: um estúdio de gravação, um atelier de pintura, um escritório e, claro, um quarto, o choco. Tudo coisas que gosto de fazer e, tirando a alcova, tudo coisas que gosto de fazer sozinho embora não saiba como fazê-las. Nietzsche disse: Não quero que me tomem pelo que não sou, o que exige que não me tome pelo que não sou.

Então, esfaqueia-me: Rasga a voz na aparelhagem continuando a demolição da minha mente. Vai-se na rua, olha-se para as pessoas que se cruzam connosco e vê-se Zero, e vemo-nos a nós próprios e vemos menos que zero. Eles fazem ou sabem fazer algo. Nós não sabemos fazer nada. Não, minto. Nós zombies sabemos sempre olhar para os outros e dizer: que banalidade, sabemos dizer nada, nada nos interessa, não nos interessa chegar à beira de um desses ilustres espécimes humanos e perguntar com espírito de aluno: olha... sabes como se faz para regular a luz de uma máquina fotográfica?, é que eu estava interessado em tirar umas fotos, meti um rolo de trinta e seis fotografias na máquina e quem ma emprestou disse-me mas eu esqueci, sabes?, e estás a ver, não tenho vontade de lhe perguntar outra vez, podes dizer-me?

Pois é, nunca tenho vontade para perguntar outra vez. Digo que prefiro esquecer-me e, no entanto, tomo comprimidos para a memória e espero que o vizinho me ofereça uns cabos rca porque eu, embora tendo os duzentos escudos da despesa, não tenho cu para sair do sofá e os ir comprar porque estou à espera que tu mos ofereças. Por isso, como tu não mos vais dar, nada me interessa. Glória, ninguém me interessa. Glória mas preciso deles, de ti. Eles sabem, eu não, eu nunca sei. Sou menos que nada, eu sei que sim.

Vivemos. Ou talvez finjamos que vivemos. A minha definição é um Produto Desadaptado da Sociedade de Consumo, partido PDSC. Eheh, nem à geração rasca, geração X geração Sexo, tão badaladas e tão em voga, eu pertenço. Anos 90. Que fixe. O seu troco, volte sempre.

Quando se está maldisposto põe-se tudo em causa, tudo em dúvida, já não os porquês mas sim os para quês. De vez em quando atrofiamos mas isso faz parte do pão-nosso de cada dia chorado na igreja dos fiéis, chorado também por todos os não praticantes e por aqueles que dizem recusar a moralidade ocidental baseada na culpa, no sofrimento e na expiação de todos os pecados. Se calhar, dizem vocês ou digo eu: eu devo ser o maior cristão no bairro mas aqui fico na dúvida se não serei antes o maior anticristão, pois se assumo a minha culpa... e não no confessionário, sim, estender-me-ei ao comprido simulando cristo e gritando de raiva, implorarei que me atirem merda porque eu mereço, eu sou o culpado, desculpem-me, eu mereço, eu sou um servo.

Divido, assim, o meu atrofio em três grandes domínios:

... em casa sozinho: olho para o ponto mais próximo sem o fixar, mais precisamente olho o ponto focal de uma superfície côncava e ouço this is heaven, this is heaven surgindo das colunas de som, sendo que aquilo que fixo na realidade não existe, o meu pensamento gira ao longo dessa superfície e, de vez em quando, a minha boca fala sozinha e baixinho para que ninguém a oiça, ultimamente saem pequenos urros da minha garganta que só dizem carradas de disparates como: sou inútil, amo-te, quero que me dispares um tiro por favor.

... na rua sozinho: se for de dia, caminho pela rua de olhos bem levantados para observar com cuidado as banalidades, para admirar ou detestar a paisagem e a arquitectura da paisagem, o meu pensar vagueia pelas minhas frustrações e por todas paisagens, frases e flashes de certos filmes que vi e que me vêm à memória; se for de noite, geralmente olho para o chão e, de vez em quando, tremo, nem sempre de frio e ultimamente quando isso acontece olho em frente e começo a falar sozinho... não não, não estás errado, decidiste isso, está decidido, és o juiz de ti próprio, e, de vez em quando, tropeço mas não caio: sinto a tua dor, sou o teu único amigo.

... em público: permaneço desinteressado do grupo. É, aliás, raro falar e, por isso, imagino filmes e oiço aquilo que os outros dizem e, de vez em quando, digo qualquer coisa. Não!, minto de forma brutal, nunca digo nada.

Recordo o olhar apavorado da menina empregada do grande supermercado quando, ainda antes de ontem, lá fui comprar uma segunda garrafa de vodka, algo não habitual em mim. Não!, minto outra vez, têm-me de desculpar esta tendência, neste campo regista-se uma evolução, nestes dias tenho tentado dizer qualquer coisa mas parece que a minha boca parece grudada à rigidez do efeito daqueles comprimidos que o assassino me receitou, o problema é não conseguir dizer nada, ultimamente só tenho dito e feito asneiras em público, o pior é que as pessoas parecem notar, até me telefonam a perguntar como estou, bem obrigado.

Já viste?! As pessoas reparam que tu existes, afinal de contas, e que andas esquisito!

Pois é, nunca te tinhas apercebido, pois não?, tão formais que parecem e sentem, tão desinteressadas da tua personagem, elas reparam em algo, podem não saber a causa mas reconhecem o efeito: a loucura ou drogas mas... mas que tem as pessoas a ver com tudo isto ou contigo?, nada, elas nada tem a ver com... o problema é que o efeito é sempre o mais importante, é aquilo em que as pessoas parecem reparar, agora as consequências parecem ter mudado, agora perdeste o respeito dos outros, para já não falar do teu por ti próprio mas isso é outra história bem mais desagrádavel... e quem é o culpado?, nunca foste muito sociável ou foste e deixaste de o ser, as pessoas aprenderam a ver-te assim, calado e discreto, fazendo algumas asneiras discretamente com poucas pessoas a saberem, as pessoas aprenderam a esquecer-te e tu aprendeste a calar-te, a não revelar as tuas opiniões acerca do nada, e por isso te calaste!, no fundo aprendeste a não raciocinar logicamente, para fora de ti, bloqueaste ou, se calhar, são só as tuas posições que são incómodas, se calhar, dizes coisas que não são bem verdade, as coisas são um misto de ambiguidade de posições onde, às vezes, não se reflecte o efeito do amanhã, é uma máscara deslocada do seu contexto habitual. Ora deixa ver... se virar à esquerda vou dar ali. Sim, mas se virar à direita vou dar aonde? Desculpem-me, aonde quero ir? Merda, não sei!

Da discussão nasce a luz. Escondeste-te e agora que fazes bambino?, tentas recuperar o tempo perdido?, tentas recuperar o espaço perdido, conquistá-lo aos mouros?, e os amigos que nunca consideraste... é um pouco difícil eu sei, ultimamente tens vomitado tudo isso, gritando desesperado algo que nem pedidos de ajuda são, sim, ajuda é mesmo o termo: vomitar significa despejar e, no entanto, a minha consciência transladada no tempo diz-me e dirá às pessoas que só se aprende com os erros e com as escolhas erradas, mais um lugar comum.

Não percebo, não consigo perceber, sinto-me inútil.

Pois é, precisas de dormir, precisas de descansar, batatas para o trabalho que tens de entregar senão esgotas-te, tripas a tua cabeça, daqui a quinze dias voltas cá e falaremos da importância de uma mulher na vida de um homem em alturas de depressão, agora tenho de ir tirar o carro do estacionamento senão pago multa, e, depois, não tocarás mais o barco para a frente, começarás a tremer dos pés, ganharás incontinência e diarreia. As pessoas agora já não te olham como um menino-prodígio, já não te cumprimentam com aquele sorriso de intriga e estranheza por ti, se calhar, em certos ambientes baixaste de nível sem se saber, no fundo, não te importas de estar ao lado delas. No entanto, elas nunca poderão saber porque senão vão dizer: olha, mais um que pensa que é melhor que os outros, agora as pessoas conhecem e, se ainda te cumprimentam, é por motivos de etiqueta, mas vê lá tu, já nem disfarçam, alguns já nem estendem a mão, alguns dizem olá de longe e longe deles está o sorriso e a intrigante dúvida, outros são mais sinceros e dizem: tenho de ir ali; outros vem cumprimentar-te e perguntam coisas como: então tudo bem?, e tu bloqueias ou gemes ou desatas aos gritos histéricos e finos, esqueces os modos, a discrição, a amizade e a tua merda vai-se revelando ao público.

Então e que fazes tu ultimamente?

Na Quinta-feira tive um dia estranho, acordei às quatro da tarde. O despertador terá tocado em princípio às nove horas da manhã. Aparentemente não o ouvi e continuei a dormir. Por um lado fiz bem, pois era sinal de que estava muito cansado e só me fez bem... mas pelo contrário fiz mal pois ao abrir os olhos... encontrava-me visivelmente mal disposto, tudo quanto eu hoje tinha para fazer ficou para amanhã. Doutor, sempre que isto me acontece dá-me uma vontade abismal de me elevar a uma outra dimensão, a um outro local, a um outro desconhecido. Assim como estou, vivo sem prazer e sem interesse. A ambição que sempre foi uma das minhas regras está derrotada... só de lembrar o que por ela aguentei e pela qual cheguei até onde hoje me encontro, hoje ela parece-me bem distante, cessou vida. Assim, a única fuga para a frente que agora me resta será deixar-me elevar a uma outra dimensão, a um local desconhecido. Mas já nem nisso penso querer acreditar. A miséria acumula-se à minha volta, saio à rua, vou ao Dolphins beber um café e comer uma torrada porque são as horas que são e ainda não comeste nada hoje, no entanto, não te esqueças de comprar tabaco, e pagas um café ao teu novo amigo que está sem dinheiro. Meia dúzia de disparates para cá e para lá e ele diz que tem de ir beber o resto da garrafa de vodka, que lhe ofereci nos seus anos apenas porque eu não a consegui beber toda na noite em que a comprei, vai beber com a namorada, ex-namorada e amiga, ex-amiga, indiferença, curiosidade, aproximação, amiga e eu digo muito bem e penso que não me importava de estar na tua situação.

Então e que fizeste tu a seguir?

A seguir, quis pagar menos que a despesa realizada, por simples e honesto engano mas de qualquer modo não resultou. Então, saio e dirijo-me ao centro comercial, o destino adivinho-o agora é uma loja de discos. Não consigo deixar de reparar que, de vez em quando, me encosto perigosamente à parede e tropeço mas ainda não é noite. Eu sei porque procedo assim. É porque, quando saí em jejum de casa, engoli uma ampola embebida em água juntamente com um Lorenin e uma bomba chamada Normison. Além destes, só conheço o Dumirox e o Valium com vinho das castanhas e rum embora me digam que existem outros igualmente interessantes. Por isso, cambaleio e a minha voz é quase tão imperceptível e distante como a voz do Michael Gira a sussurrar descalço aos peixes e isto, penso ser apenas um meio fácil e rude de descrever o estado de stress funcional do meu cérebro pós-salto de comboio. O Id, doutor, mais que o dono, parece ausente, mais vazio, e, no entanto, até... me tenho alimentado melhor, até comprei uns sapatos que nunca pensei servirem, até comprei um par de calças minimamente ajustadas à magreza actual das minhas pernas. Na minha meninice, recordo usar números largos. Mas esqueci-me de comprar mais comida, esqueci-me, doutor, de ir ao CReEA resolver uns quantos problemas com os professores. Eu, o meu ser ressacado ressacado da vida ressacado de amor, digo que tudo me parece louco demais queimando lentamente o meu cérebro, eu me confesso culpado e mereço que me dispam, me tapem os olhos com uma venda e façam de mim o que quiserem. Ah sim, a loja de discos... é já noite, levo uma revista de alpinismo com umas excelentes fotografias e apetece-me tomar um café mas o salão de chá está já fechado. Vou então à loja de discos inaugurada recentemente, a primeira ideia afinal que tivera após sair do Dolphins, ela tem uma boa colecção de música clássica. Oiço e decido comprar Shostakovitch. É a minha grande acção do dia. Porquê Shostakovitch? Em parte, talvez por me recordar que de vez em quando costumava ouvir a Antena2 enquanto tomava banho, e de ter ouvido nessa altura pela primeira vez o nome e algo de Shostakovitch, algo como uma sonata para dois pianos tocados em timbres e tempos diferentes, algo que gostei muito, e em parte porque foi o primeiro disco que surgiu, não sei, a loja é gerida por duas moças que parecem irmãs e são bem giras e para as quais olho e não sei definir qual a expressão do meu olhar. Quer que mude de faixa?, ela pergunta... não, deixe correr, respondo. Ela vira-se para a irmã dizendo-lhe qualquer coisa que nem sequer ouço embora tivessem falado à minha frente em voz normal. Quando saio a limpar as paredes, resolvo por fim tomar café. Entro, peço, leio o jornal de relance com um peso nos olhos, fumo um cigarro com o cérebro comprimido, levo a mão à carteira e descubro que tenho dinheiro para gastar, pago, saio, e agora? Tudo isto no espaço de uma frase. Perguntei eu à minha personagem quando saí da consulta com o assassino naquele fim de tarde de Inverno: E agora?

Continuo no presente, este passado é o presente destes dias: Vou para casa. O meu quarto ainda é o único local que conheço à minha volta que me permite estar à vontade para fazer asneiras sem precisar me queixar ao público. Eu deveria estudar, deveria criar qualquer coisa mas só me apetece ligar o aquecedor, pegar num livro ao acaso e colocá-lo numa mesinha improvisada ao lado de tabaco, fósforos, isqueiros, água e Lorenin, e deitar-me por cima da cama a ouvir Shostakovitch. Tenho frio. Gosto de nomes russos terminados em itch, são dez horas da noite e acabo de adormecer. Sonhos brancos, pesados.

Acordo com frio por volta da meia-noite e o espaço parece-me irreal, espacial algures, olhos para os cantos... Van der Graf Generator e Meurglys III, a última solidão... Leonard Cohen e o desespero, o frio. There are only me and Meurglyss III. Deito-me por debaixo dos lençóis e tenho a sensação que forcas estranhas me estrangulam, forças estranhas me sugam o cérebro aos poucos. Tento defender-me empunhando uma mão fechada em direcção à força que suga.

E andamos, todos os eus, o Id foi à consulta dos ricos, o J não viu a namorada no Natal, o L escreveu o novo poema para o seu amor platónico, o C definitivamente estraçalhando-se pelas paredes da cidade, o A na sua ideia aluado pela B, o R pintando céus não académicos, o O julgando todos os nós das nozes, andamos nós todos nisto até acordarmos, numa onda de movimento pendular mas em aceleração uniforme até o sino da igreja assinalar a uma hora da manhã. Ouço o badalo e expludo porque não me recordo de nenhum dos meus eus, eles anularam-se todos, são todos ridículos, absurdos e boçais, parolos e pacóvios, nada pode ser assim tão bizarro, tão insuportável, tão absurdo. Se ao menos fosse um itch, se houvese glória na minha tragédia, se se ouvisse a lâmina vingando-se na pele, se o fio da lâmpada de tecto me arrancasse um erecção por asfixia... mas não há crimes de sangue nem cordas piedosas rompendo-se na história, é tudo inútil, a minha vida é inútil, a minha morte é um abutre alimentando-se de quem não atingiu o nível. Perdi as minhas noções de Tempo, Espaço, Responsabilidade por completo. Penso que hoje seja Sábado.

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Claudio Mur

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