quinta-feira, 12 de novembro de 2020

No ano 2000 em Angola era assim.
E nós por cá: cumué?

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Por toda a Angola se consome e vive como se o mundo fosse acabar amanhã, se calhar vai mesmo, e não há que reservar seja o que for para um improvável mais tarde. Ou não tirar rendimento imediato possível do que se tem à mão. Também ali ia ser assim e todavia não era por razões de crise. Angola é grande e enganosa até inscrever no panorama geral da sua crise expressões de sofreguidão que afinal são antes de cultura e de sistema. Estávamos no tempo da carne e no meio de uma sociedade pastoril, em que ela só se consome, deliberadamente, quando o gado está gordo e é o tempo dos cultos, das festas e da ostentação distributiva dos mais prósperos, promotora de disputas, reciprocidades, alianças e produção de clientelas, e por isso a concentração de gente ali, naquela noite, era enorme, acorrida de todos os quadrantes ao encontro da pletórica fartura que o poder económico da linhagem do finado Luhuna garantia e a já proverbial generosidade do Nungunu, seu filho, anunciava. Desde que os bois tinham começado a ser abatidos, e a carne a ser cozida segundo as regras da sua divisão, da sequência do seu consumo e do acesso estatutário às partes, o chão tremia com as danças que muitos homens adultos e mulheres sobretudo mais-velhas não largavam. Os rapazes das famílias anfitriãs permaneciam, por dever de função, à volta da carne, a dividi-la e a cozê-la, enquanto as mulheres não paravam de trazer água e lenha, hieráticas silhuetas de braços erguidos e passo pesado a fluir e a refluir em filas e a dar corpo e voz às torrentes do crepúsculo.

Aquela era uma noite de Junho, era mesmo a noite do solstício de Junho, quando o Sol inverte a marcha dos seus lugares de nascer e pôr-se, eu via o fogo, os fogos, havia fogos por todo o lado, e não podia deixar de evocar fogos, fogueiras, solstícios por toda a parte do mundo, por todos os hemisférios, evocações que hei-de encontrar em casa, voltando a Luanda, certamente em Eliade e Caillois, sobre o sagrado, sobre a festa, orgias, saturnais, e num belo texto qualquer coisa que eu sei que há, de Yourcenar, e outro nos Diários com Leuco, de Pavese, de que Jean-Marie Straub extraiu um daqueles límpidos episódios, talhados em pedra branca, do La Nuée et la Résistance... O Biloa, ou um dos outros meus mais próximos do convívio no Vitivi, saía de vez em quando das arenas da dança para vir puxar uma fumaça dos cigarros sucessivos que eu, sentado na beira da minha desmantelada cadeira articulada, acendia, e o aturdimento daquilo tudo arrastava-me, sem que eu resistisse, para essas perigosas zonas da reflexão que, em certas alturas, tornam o antropólogo suspeito até perante si mesmo. Quadros míticos, neolíticos românticos. Que antropólogo honesto negará ter cedido por vezes ao fascínio de impossíveis mundos destes? E ali estava eu agora perante uma dessas sociedades onde se preservam matrizes assim. Presentes, meios e procedimentos afins a outras complexidades, a outras complexificações de actuação e de entendimento do mundo, mas o modelo das relações, as práticas de relação, são as que se atêm a um muito restrito apetrechamento tecnológico, o bastante, apenas, para extrair o rendimento máximo da água e do verde, da flor e do fruto, sem ir além da acção de uma elementar lâmina de catana ou de um gume de machado, e é todo o aço.

Da sorte, do destino até mesmo mais imediato, destas «comunidades»? Entrarão no século XXI sem que as dinâmicas de uma economia fundamentada na gestão dos equilíbrios se tenha alterado profundamente. Mas o fenómeno maior dos séculos XIX e XX, do ponto de vista social, terá, em meu entender, sido a chamada de todo o espaço planetário à aceitação, com resistência ou sem ela, à adopção vital perante toda a ordem de pressões, dos modelos ocidentais de prática e configuração ideológica da vida.



Terrenos perigosos. Ninguém hoje mais ou menos tributário do senso comum consegue deixar de associar despojamento tecnológico a miséria. Pôr isso em causa seria confrontar a redenção igualizante da ideologia do progresso, do crescimento económico e da acumulação de capitais financeiros, ao elogio, politicamente retrógrado, de uma prosperidade possível nos terrenos do equilíbrio e da redistribuição. De uma imputação deste tipo até os ecologistas cuidam em defender-se. Mas quem era eu para estar com estas coisas se, para meu uso pessoal e íntimo, quase, tinha apenas cinicamente passado da ideia sedimentada de evolução à de complexificação, substituindo Teillard de Chardin a Darwin? Ninguém fala hoje de darwinismo, é certo. Mas o iluminismo e o evolucionismo estão implícitos em toda a produção ideológica e intelectual que vigora e ainda e sempre omnipresente e dominantes, cientes já dos seus maiores pecados do passado, na aferição da qualidade dos homens segundo escalas físicas, primeiro, e depois segundo uma hierarquização das culturas, mas a fundamentar o mesmo espírito de império, ainda quando disfarçados de um igualmente abjecto paternalismo que confere a uns o direito de decidir, benemérita e providencialmente, pelos outros e em nome dos outros, os ignorantes e os atrasados, os coitados. E esses uns e outros somos todos nós, uns para os outros e por aí fora e sempre em função do ganho do outro.

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página 114 - 117

«Os papéis do Inglês»

Ruy Duarte de Carvalho

Edição Círculo de Leitores


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