sábado, 7 de novembro de 2020

Mark Fisher: 2 transcrições do seu livro «Realismo Capitalista»

 Mark Fisher

''Realismo Capitalista, Não Haverá Alternativa?''

tradução Vasco Gato

edição VS. 2020


página 35 - 36:

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Porém, as questões ecológicas são já uma zona disputada, um território onde se luta pela politização. Assim, gostaria de realçar duas outras aporias no realismo capitalista, que estão longe ainda de se encontrarem politizadas no mesmo grau. A primeira é a saúde mental. Na verdade, a saúde mental é um caso paradigmático do funcionamento do realismo capitalista. O realismo capitalista teima em tratar a saúde mental como se esta fosse um acto natural, como a metereologia (embora, uma vez mais, a metereologia já não seja um facto natural, mas, sim, um efeito político-económico). Nas décadas de 1960 e 1970, a teoria e a política radicais (Laing, Foucault, Deleuze e Guattari, etc.) consolidaram-se em torno de condições mentais extremas, como a esquizofrenia, sustentando, por exemplo, que a loucura não era uma categoria natural, mas, sim, política. Todavia, o que é necessário agora é uma politização de um número muito maior de distúrbios vulgares. Aliás, a questão é mesmo a sua própria vulgaridade: na Grã-Bretanha, a depressão é hoje a doença que o Serviço Nacional de Saúde mais trata. No seu livro The Selfish Capitalist, Oliver James postulou de forma convincente uma correlação entre as taxas cada vez maiores de problemas mentais e o modo neoliberal do capitalismo que é praticado em países como a Grã-Bretanha, os EUA e a Austrália. Na linha do que James defende, gostaria de argumentar que é necessário reenquadrar o problema cada vez maior do stresse (e da angústia) nas sociedades capitalistas. Em vez de se tratar esta questão como cabendo aos indivíduos a solução das suas próprias angústias psicológicas, ou seja, em vez de se aceitar a imensa privatização do stress que teve lugar nos últimos 30 anos, há que fazer a pergunta: como é que se tornou aceitável que tanta gente, e sobretudo tantos jovens, esteja doente? O «flagelo da saúde mental» nas sociedades capitalistas levar-nos-ia a dizer que, em vez de ser o único sistema social que resulta, o capitalismo é intrinsecamente disfuncional e o custo do seu aparente funcionamento é elevadíssimo.

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página 107:

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Em Tarrying with the Negative, Zizek faz a afirmação célebre de que um certo espinosismo é a ideologia do capitalismo tardio. Zizek acredita que a rejeição da deontologia por Espinosa em prol de uma ética baseada em torno do conceito de saúde equivale supostamente à engenharia afectiva amoral do capitalismo. O exemplo famoso disso mesmo é a leitura que Espinosa faz do mito da Queda e da fundação da Lei. Na visão de Espinosa, Deus não condena Adão por ser uma acção errada ter comido a maçã; diz-lhe que ele não deve consumir a maçã porque esta irá envenená-lo. Para Zizek, trata-se da dramatização do fim da função do Pai. Um acto é errado não porque o Papá diz que é; o Papá apenas diz que é «errado» porque a realização desse acto é prejudicial para nós. Na perspectiva de Zizek, a jogada de Espinosa destitui a fundamentação da lei num acto sádico de cisão (o corte cruel da castração) ao mesmo tempo que recusa o postulado infundado da vontade própria num acto de pura volição, em que o sujeito assume a responsabilidade por tudo. Na realidade, Espinosa oferece imensos recursos para se analisar o regime afectivo do capitalismo tardio, o aparelho de controlo do tipo Videodrome descrito por Burroughs, Philip K. Dick e David Cronenberg, em que a vontade se dissolve numa névoa fantasmagórica de inebriantes psicológicos e físicos. Tal como Burroughs, Espinosa mostra que, longe de ser uma doença aberrante, o vício é o estado normal dos seres humanos, os quais são habitualmente escravizados por imagens paradas (deles próprios e do mundo) com vista a adoptarem comportamentos reactivos e repetitivos. A liberdade, mostra-nos Espinosa, é algo que só pode ser alcançado se conseguirmos apreender as causas reais das nossas acções, se pudermos pôr de lado as «tristes paixões» que nos inebriam e arrebatam.

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