quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Hombres, hampones e ómes

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«Hum. A vossa causa parece-me justa, deixem aí a petição na recepção que eu assinarei de manhã, antes de me meter a caminho. Desculpem não descer agora, já estou despido e estou bastante cansado...»

«Muito obrigado, e desculpe a maçada.»

«Deixem aí o documento, por favor...»

«Muito obrigado e sucessos em Espanha.»

«Serão entregues...»

Só depois de fechar o telefone é que notou o absurdo da sua frase final. Entregaria pessoalmente no dia seguinte os sucessos devidos à sua imagem no espelho, não havia dúvidas.

A Tomás Gonzaga não é nada indiferente o desenrolar político do mundo. Com vinte anos, depois do malogro da sua experiência em Sevilha, aonde fora tentar a sorte como bandarilheiro, refugiou-se numa conversão política que fez dele o quadro de célula de um partido de esquerda, tendo então enjeitado o mundo da tauromaquia como um universo burguês e decadente, a evitar. Voltou para Mora e entregou-se à militância política com a benignidade do touro que cresce nos pastos: de forma inconsciente, movendo-se sem ser exposto a dúvidas, com a generosidade de quem rumina sem cálculos.

Foi provocatoriamente que amigos lhe emprestaram o vídeo do filme Good Bye Lenine e o livro Má Memória de Herberto Padilla, embora sem maldade. O filme deslocou-o para o epicentro de um pequeno sismo de que nunca se recomporia, desalinhando-o das respostas dogmáticas. As leituras, a contragosto, de outras obras sobre o estalinismo, despertaram-no para certos vícios de relação dos camaradas, que sempre relevara. Para lhe ser menos doloroso o distanciamento, decidiu ir viver para Lisboa, e aí arranjou emprego na agência mortuária L'Avenir, ironia de um comunista mítico já falecido e que deixara uma casa próspera ao seu filho, mais conservador, o qual olhava para a esfera política do pai como uma ideologia vencida, ainda que guardasse, dizia, um imenso respeito por ruínas. Neste ambiente, Gonzaga habituou-se a militar mais em causas pontuais que no pacote indiscriminado da crença partidária, e, tendo aprendido, por experiência, que as estruturas partidárias -- fossem quais fossem os quadrantes -- se imbuíam dos mesmos erros, mentiras, ambições camufladas e canalhices próprias ao humano, acabara por se reaproximar do seu primeiro amor, da tauromaquia.

Ademais, se o toureio a cavalo configurava definitivamente uma expressão classista, comparava o toureio a pé à rebeldia operária, que só depende da coragem pessoal e da nobreza de carácter. Para além de que o eventual ajuste da dinâmica social no palco das lutas de classe, parecia-lhe agora, não esgostava o desenho da dignidade humana; ao invés, um indivíduo enfrentar a sua própria cobardia numa arena sem recuo, diante de um touro de quinhentos quilos acrescentava brilho ao desassossego da sua fatuidade. E Tomás, alheio à superficial questão dos louros ou da glória, não deixava de citar a evidência física de que tantos matadores, que se escanhoam quinze minutos antes de subirem à arena, cheguem depois da faena aos camarins com uma barba de três dias.

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página 38 - 39

"Fotografar contra o vento"

António Cabrita

Edição Editora Exclamação


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(para ser subtil não linco a dedicatória ao senhor X, esse senhor herdeiro de Borges, com quem aprendo boas maneiras à boa maneira vitoriana, e que mesmo não parecendo lhe agradeço os recados. 

mas não esqueçamos que o «governo de hombres e não de hampones» que Borges apoiou em certa altura da história argentina, era ao que parece um governo de ditadores. e então, estes não seriam hombres nem hampones, seriam apenas ómes.


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