sábado, 4 de dezembro de 2021

Código de conduta

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Acaba de tocar à campaínha o novo hóspede, um cliente antigo chamado J, abro-lhe a porta e, lembrando-me do comentário quase desabafo da dona A na noite anterior, digo:
-- Sr. J, se o senhor a meio da noite ou a qualquer hora quiser beber uma cerveja e eu estiver a dormir... o senhor chame por mim, não há-de ser por eu estar dormitando que você não vai beber, chame por mim, eu atendo-o e vendo-lhe a cerveja, ok?
-- Ah, sr. Ru, obrigado, ainda ontem... devia ser meia-noite... estava sem sono e apeteceu-me... mas depois pensei: o sr. Ru deve estar a dormir...
-- Oh, sabe como é, são muitas horas, a gente encosta a cabeça, os olhos fecham, passo pelas brasas. Mas eu estou aqui para trabalhar, dormir durmo quando saio e chego a casa.
-- O sr. mora aonde?
-- Agora voltei para casa dos meus pais, morei dez anos em Derza em quartos, cansei-me das rendas e da solidão...
-- E então... e a mulher?
-- Não, mulher não tenho, o mais parecido com namorada é uma amiga especial que eu tenho...
-- Filhos tem?
-- Nenhum, sou livre!
-- O senhor sabe inglês?
-- Sei.
-- Vá-se embora daqui!
Eu percebo que ele quer dizer que eu sou sobre qualificado para este trabalho e digo: -- Não! Eu estou bem aqui, há dias falou das condições fracas do meu descanso, o sofá, o frio e tal, não se preocupe, eu estou aqui bem!
-- Olhe, eu há dois anos estava em Inglaterra e desde então... já me divorciei, já namorei, já casei, já fui ao Brasil... quando lá vou fico no hotel do money, aquilo é que é, tem prái 100 quartos, bons pequenos-almoços, foi em Fevereiro, telefonei de lá para a dona A pedindo um quarto e depois cheguei a Lisboa, não tinha telefone mas tinha a reserva...
-- Por isso lhe digo, sr. J, e já aconteceu antes: o sr. chegou, fez um pouco de barulho e eu acordei e servi-lhe a cerveja... por isso, se precisar, pode até... não, claro que não, ignore a minha sugestão de me dar um pontapé, chame por mim: sr. Ru, se eu não ouvir chame de novo e eu acordo, ok?
-- Estava em Inglaterra e a mulher disse que me ia deixar e eu disse tá bem que sa foda vai-te embora, não havia trabalho, veio a pandemia e eu disse: vou visitar a família, estive aqui dois meses, depois arranjei uma namorada da Covilhã mas ela já pensava em casar e coisa e tal, até que estava numa garagem maior que este hotel, numa festa em casa da minha irmã, cerca de vinte homens a dizer asneiras e eu disse que sa foda, vim fumar um cigarro e encontrei-a, casei, ela até já dormiu aqui e tudo.
-- O sr. sempre vai querer uma cerveja?
-- Sim, quer uma para si?
-- Não, obrigado, mas não bebo em serviço.
-- Se eu lhe pagar a cerveja, isso não significa que vou dizer ao patrão...
-- Claro que não, mas a gente tem de ter duas caras, aqui no trabalho não bebo, lá fora é outra coisa, é o meu código de conduta.
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Claudio y

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