sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Navegação e floresta

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Ainda fica por apontar a possibilidade de um erro -- estamos a pensar na confiança na imaginação pura. Conceda-se que ela conduz à vitória espiritual. Mas isso não pode depender da fundação de escolas de yoga. E, no entanto, é essa a ideia não só de numerosas seitas, como também de uma espécie de nihilismo cristão, que dá a coisa de barato. Não, podemos, contudo limitar-nos a reconhecer o verdadeiro e o bom nos andares superiores, enquanto na cave a pele é arrancada ao próximo. E também não o podemos fazer, quando nos encontramos espiritualmente não só em posição mais segura, como também numa posição superior, e isso porque o sofrimento inaudito de milhões de escravizados brada aos céus. O fumo das cabanas dos algozes ainda está no ar. Coisas destas não se encobrem com farsas.
Não nos é dado, por conseguinte, demorarmo-nos na imaginação, mesmo que seja ela a dar a energia fundamental às acções. Uma uniformização das imagens e uma decadência das imagens precede a luta pelo poder. Esta é a razão pela qual nos instruímos com os poetas. Eles iniciam a subversão e também a queda dos Titãs. A imaginação, e com ela o canto, pertencem ao passo da floresta.
Vamos regressar à segunda das imagens por nós irmanadas. Quanto ao mundo histórico em que nos encontramos, ele compara-se a um veículo que se move rapidamente e que ora mostra sinais de conforto, ora sinais de horror. Umas vezes é o <Titanic>, outras o Leviatã. E é porque aquele que é movido é enganado pelos olhos que, para a maior parte dos passageiros do barco, continua a ser um segredo pertenceram ao mesmo tempo a um outro reino, no qual prevalece a tranquilidade perfeita. O segundo destes reinos é tão superior que conteria em si o primeiro à maneira de um brinquedo, como um daqueles casos cujo número é infinito. O segundo reino é porto, é terra natal, é paz e segurança, que cada um traz em si. Chamamos-lhe a floresta.
Navegação e floresta -- pode parecer difícil unir numa imagem duas coisas tão longínquas. A oposição é mais familiar no mito, assim Dioniso, raptado pelos barcos tirrénicos, faz as videiras e a hera cativar os remos e brotar pelos mastros acima. Da sua mata espessa irrompeu o tigre, que despedaçou os raptores.
O mito não é uma pré-história; é uma realidade intemporal, que se repete na história. Conta-se entre os bons prenúncios o facto de o nosso século encontrar de novo sentido no mito. Também hoje o ser humano é arrastado por vigorosas potências até ao alto-mar, até ao fundo do deserto e do seu mundo de máscaras. A viagem perderá o seu carácter ameaçador, se ele se lembrar da sua força divina.
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Ernst Jünger
em 'O passo da floresta", páginas 50 - 51
Tradução de Maria Filomena Molder
Edição BCF Editores

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