segunda-feira, 3 de janeiro de 2022

A gente tem de ter advogados para se defender dos advogados

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No dia seguinte fui ao médico, um psiquiatra amigo meu. Ele ouviu a minha história.
-- Essa doença está acabando comigo, está me arruinando -- eu disse.
-- Não conheço remédio para isso -- ele disse. -- Aliás, nenhum laboratório está interessado em fazer um remédio desses. Não ia vender.
-- Já tomei tudo que é tranquilizante. Aqueles que alertam na bula que um dos efeitos colaterais é diminuir a libido.
-- Isso é coisa do departamento jurídico dos laboratórios. É para o caso de algum espertinho impotente, instruído por um advogado safado, accionar o laboratório. O advogado do laboratório, causídico do mesmo naipe, alega no tribunal que a bula alertava para esse possível efeito, ou seja, o pilantra tomou o remédio sabendo disso. A gente tem que ter advogados para se defender dos advogados. Agora a coisa é assim. Você conhece aquela piada do advogado que foi para o céu?
-- Quer dizer que a minha doença não tem remédio?
-- Pelo que me lembro, você já era assim no ginásio. E você está se arruinando porquê? Você disse que não dá dinheiro para as mulheres, que elas não custam nada.
-- Eu não posso chegar para uma mulher e dizer, sem mais nem menos, vamos para a cama. Elas vão sempre, mas é preciso usar tácticas, estratégias, uma mão-de-obra danada. Fico sem tempo para fazer o meu trabalho. E se não trabalho, não ganho dinheiro.
-- Não dá para conciliar? Equilibrar as coisas?
-- Como? Eu quero foder todas as mulheres que encontro.
-- Todas?
-- As bonitas. Mas só existe mulher bonita.
-- O mundo está cheio de mulheres feias.
-- Mas eu não as vejo, elas não aparecem para mim, as feias.
-- E você acredita que é politicamente incorrecto querer comer todas as mulheres?
-- Eu li que isso é uma doença. Não existe uma doença chamada satiríase?
-- Toda excitação sexual tem alguma coisa de mórbido. No mundo de hoje os homens estão cada vez com menos tesão, têm que tomar pílulas para isso, e os que sentem tesão são considerados doentes. Essa é mais uma invenção das feministas americanas. Certamente você andou lendo bobagens num desses livros produzidos na terra do Tio Sam. Viva a sua vida, mas não se esqueça de que a hipocrisia e o sofisma são padrões socialmente aceitos nos dias de hoje.
-- Devo fingir que sou o que não sou?
-- Eu não disse isso.
-- O que foi que você disse?
-- Por enquanto, nada. Foi uma frase de efeito.
-- Puta merda, eu vim ao psiquiatra errado. Ou o problema é sermos velhos amigos?
-- Talvez. Mas o seu caso é complicado. Não devia ser, e não é, mas você mesmo o complicou.
-- Então não há nada a fazer? Só me resta ouvir um tango argentino, como o sujeito do pneumotórax do Manuel Bandeira?
-- Bons tempos aqueles, do colégio. Éramos inocentes, líamos os poetas. Engraçado, você desencavar esse troço.
-- Quer dizer que estou ferrado?
-- Procura um psicanalista. Às vezes funciona.
-- Não vou procurar porra de psicanalista nenhum.
-- Ou então o DASA -- Dependente de Amor e Sexo Anónimo. Uma espécie de AA para sátiros e ninfos. Realizam reuniões diariamente, em vários locais da cidade. Às vezes...
Cortei a frase dele no meio.
-- Comigo não funciona. Detesto confissões privadas e mais ainda as públicas.
Na saída dei o meu cartão para a recepcionista, uma mulher linda.
-- Liga para mim, tenho a mais fascinante colecção de asas de borboleta do mundo.
Ela sorriu e botou o cartão no bolso do uniforme branco que vestia.
Estou puto comigo mesmo. Não sei o que fazer. Vou morrer doente, dirigindo um carro velho?
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 Páginas 83 - 85

Rubem Fonseca
em "Pequenas Criaturas"
edição Campo das Letras

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