quarta-feira, 6 de julho de 2022

Ou seja, lambi umas botas para não dormir na rua

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Citação de um programa da rádio Antena 2: Questões de moral, da autoria de Joel Costa, salvo erro:

«Gosto do que me acontece mas não gosto muito de mim mesmo. Recordar é inventar os pequenos milagres que se gostaria de ter vivido. Esquecer é querer se convencer de que se é independente. Tornar-se um homem é querer-se ser inteligente. Amar uma mulher é acreditar que se é um poeta.»


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Estou no café.

Leio o jornal da casa, na página de cartas do leitor vem um texto não-assinado, curioso e compacto e com o título «Freedom zijn zmb zijn», um texto que decido transcrever para o caderno por causa do seu carácter sincronístico:

«O miúdo de quatro anos leva com o chinelo quando corre para o pai, com saudades, pedindo carinho e após ouvir o pai subir as escadas vindo do hospital. 

O miúdo vai à janela que se abre para a rua no quarto em frente ao seu e é posto fora desse quarto aos berros porque o pai está nu. Meia hora depois, abre a porta e vê a mãe de robe. 

O miúdo deseja comer a irmã. 

O miúdo decide intervalar o tempo de estar à mesa durante o jantar e vai para o quarto, despe-se e olha a sua primeira erecção, volta à cozinha com receio de alguém o ter visto. 

O adolescente está na cozinha à beira da mãe e pergunta com alguma inocência se as pernas são tortas e ela diz «Isso é coisa de maricas», deixando-o a pensar que talvez também seja maricas por fazer a pergunta das pernas tortas. 

O adolescente leva no pelo ao fim da tarde na escola. 

O adolescente vê a paixoneta do liceu ser comida numa tarde de festa de carnaval ao som da sua música favorita. O adolescente vê as meninas belas, que encontra, olharem para ele à espera que ele vá atrás delas. Como ele não mexe uma palha, outros vão por ele. 

O quase-adulto come a primeira gaja numa festa de fim de liceu, combina um encontro para a semana seguinte e, nesse dia e nesse encontro, agarra-lhe as mamas como um criminoso mudo, ela tem medo e ele vem embora sem qualquer palavra de futuro.

O amor é uma granada defeituosa.»

Fico a pensar: a verdade é que este texto anónimo poderia ter sido escrito por mm, provoca explosões nas minhas sinapses, está calor, estamos em pleno Agosto, estou a morar numa pensão, preciso de contar os últimos dias, estava escrito que não duraria o meu conto de vida em conjunto com Sanea Vallis, ela não queria casar comigo, aliás ela ainda estava em processo de divórcio, eu também não queria casar com ela. Queria apenas viver junto, trabalhar, chegar a casa e fazer amor com ela, jantar, ir tomar café, fazer amor de novo e depois dormir que amanhã é dia de trabalho. Mas se ela não queria casar, queria ainda assim ter um «papel» meu, algo que legalmente a garantisse com direitos adquiridos semelhantes aos do matrimónio, no limite quereria uma pensão de alimentos.

O problema é que ela, vendo a facilidade com que eu largava o meu dinheiro, e se não fosse eu seria a minha mãe que sucumbiria ao choradinho e lhe daria o graveto... o problema é que ela se tinha tornado feia, tinha engordado à vontade trinta quilos, tinha passado por uma pseudo-gravidez para que eu não a mandasse passear antes, tinha-se ela transformado de ninfa em elefante, e já só me chamava assobiando como se assobia a um cão, para ela eu já era um cão, o cão que a sustentava mesmo não tendo papel. 

Até que eu disse: -- Vou arranjar uma velha rica!

Foi o fim. Levada pelos ciúmes fez trombas, refugiou-se em casas de velhas tias, ouviu os conselhos das teias de aranha e só voltou ao fim da noite, disse que eu tinha de sair no dia seguinte. Feriado, dia quinze. Para onde iria eu? Eu disse que não saía porque também contrribuía para a renda, e ela fez chinfrim à meia-noite, choro irado, baba e ranho, foi chamar o senhorio que morava no andar de baixo, como eu era novo no prédio e ela fazia limpeza no apartamento e biscates ao senhorio, ele tomou o partido dela, disse que eu tinha de sair, eu dizer-lhe que era um esquizofrénico e que não tinha para onde ir, só lhe fez ter um pouco de receio e respeito com medo que, durante a noite, algo sangrento pudesse acontecer:

-- Não lhe vai fazer mal nenhum, pois não?

Claro que não. Passei a noite a arrumar as minhas coisas. Voltar pra casa dos pais estava fora de questão, decidi ir morar em Derza. 

Dirigi-me de manhã a uma associação comunitária onde pedi ajuda. Disseram-me que podia trazer as minhas coisas e quanto a dormir, depois logo se veria. Liguei ao André, um amigo da minha zona de infância e ele veio ter comigo a um café às duas da tarde onde eu acabara de almoçar, onde comprava o fabuloso Origenes, um tabaco de enrolar que nunca vi à venda em mais lado nenhum, um café onde nestas férias laborais, passei as tardes a ler Wilhem Reich de cujas palavras intuí que o tipo de carácter psicológico da Sanea, por ela ter uma obsessão com a limpeza, se enquadraria no tipo histérico. Expliquei ao André o que se passava e trouxemos as minhas coisas de carro até à associação em Derza, deixei deste modo para sempre Vallis Longus. 

Na associação era dia de obras e limpezas na casa, eu, para tentar garantir que me dariam um local na casa para dormir, ofereci-me para literalmente demolir uma anexo de tijolo nas traseiras, estavam lá dezenas de simpatizantes e voluntários e eu causei-lhes impressão, reparei que alguém filmou o modo quase neurótico como eu empunhava a marreta e tijolo a tijolo o anexo veio abaixo, terminado este serviço andei a varrer os interiores acompanhado de um dos maiores da associação e também fiz tudo isto admito para que se falasse de mim na reunião comunitária da noite, ou seja, lambi umas botas para que não dormisse na rua, recebi uma mensagem da Sanea dizendo ela que eu tinha lá deixado umas sapatilhas xungosas que ela me tinha comprado nos anos e das quais eu não gostei, varri mais aqui e mais ali, acartei umas pedras, fumei uns charros comunitários e chegou o fim da tarde, na cozinha já estavam a preparar o jantar vegetariano para todos, comprei ganza a um sócio e outro sócio disse que talvez tivesse um colchão para mim em casa dele, fiquei contente, estava cansado porque mal tinha dormido no dia anterior e pensei que apesar de tudo os meus esforços para não cair na merda tinham sido recompensados: não ia dormir na rua.

O problema é que tive de andar colado até às sete da manhã a este sócio e seu grupo de amigos que nunca me dirigiram a palavra durante a noite, foi uma seca, eles eram todos neo-hippies burgueses com ocupações artísticas à custa dos papás e eu era o proletário do empregado de armazém gozando as suas férias laborais que agora se via perdido e abandonado na metrópole de Derza.

Quando finalmente chegamos a sua casa eram sete e meia, deram-me um quarto de arrumos sem janela e com um colchão no chão, pedi um cinzeiro para poder fumar um charro, tinha combinado com o Adolfo na associação às nove e meia da manhã, pelo que quase não dormi, acordei às nove, fiz um charro e saí daquele apartamento, fui ter à associação, continuava com o assunto por resolver, comprei o jornal, li os anúncios nos postes de iluminação pública, fui a um hostel e eles disseram que a duração máxima da estadia seriam três dias, para mim não dava, eu quereria de longa duração, encontrei finalmente um quarto numa pensão por quinze dias, cento e cinquenta euros, daqui a uma semana volto ao trabalho em Tintus Rius, a Sanea é agora passado, até ao fim do mês arranjarei um quarto numa casa partilhada em Derza. Ufa!

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Claudio Mur 

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