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Hoje acordei às 06h30 da manhã. Regresso das férias ao trabalho às 08h30. Todos os meus colegas apareceram. Chegou também o Júlio Tremidinho, o sócio-patrão. Disse-me que tinha umas folhas para eu assinar.
Da parte da tarde chamou-me ao escritório. Repetiu que tinha as folhas para eu assinar, as mesmas que queria que eu assinasse antes das férias. Perguntei-lhe pelo subsídio de férias. Ele respondeu: «Depois a A– paga-lhe.» As folhas para assinar eram da segurança social, para oficializar a minha inscrição pela C– na segurança social. Eu respondi-lhe que antes de assinar qualquer coisa que se referisse a uma transferência de posto de trabalho da empresa A– para a empresa C–, queria falar também com o senhor A., o sócio conjunto das duas empresas. O Júlio Tremidinho diz-me que só falarei com ele próprio e mais ninguém. Depois tentei dizer-lhe que precisava de uma declaração ou novo contrato de trabalho em que se especificasse que os meus direitos laborais, créditos e antiguidade na empresa A– fossem transferidos para a empresa C–, dado que era isso que se tratava, uma transferência de uma empresa para a outra tendo estas em comum o mesmo sócio, o senhor A.. Ele não me deixou acabar de dizer isto, disse apenas: «Ou assina ou faz a trouxa.» Eu como funcionário da empresa A– e tendo estado emprestado pelo sócio comum à empresa C– nos últimos meses, saí do armazém após esta conversa, virei à esquerda, caminhei trinta metros e entrei no armazém da empresa A–. Pedi para falar com os patrões. Telefonou-se para eles, expliquei o que se passava e eles disseram que os meus colegas não tinham pedido essa declaração (os três colegas que assinaram os papéis de transferência de empregador na segurança social), por fim disseram: «Ou termina o dia na C– ou venha cá amanhã às onze horas.» Vim-me embora e fui à loja do cidadão, ao Idict e eles disseram que não me podem despedir, o meu contrato actual é com a empresa A–, confirmam que tenho razão quando peço um novo contrato, quando me posso recusar a ser emprestado entre empresas. Dizem-me que eu posso tentar amanhã às onze dizer-lhes entre linhas: «Se chamo a inspecção das condições de trabalho vocês entram pela madeira dentro.»
Agora são oito horas da noite, estou no quarto da pensão, acabei de fazer o resumo do meu primeiro dia de trabalho após três semanas de férias, não recebi ainda o subsídio, querem mudar-me de empresa sem me pagarem os direitos laborais por ano e meio de trabalho na empresa A–. Mas a autoridade para as condições de trabalho dá-me razão. Ameaçam despedir-me se eu não assinar à força umas folhas que me prejudicam. Estou agora mais calmo, acabei de fumar um charro, já tomei café, decido começar a escrever neste caderno uma epístola (longe vão os tempos das cartas-bomba) à gerência da empresa A–:
«Dona A., antes de mais quero dizer que preciso deste trabalho, não quero ser despedido nem me quero despedir. Se estou bem tanto a nível psicológico como a nível económico (é claro que sou modesto) é devido a este trabalho, é devido à oportunidade que me deram. Dito isto, sempre fui, acho eu, um bom trabalhador, um trabalhador que suplantou a sua falta de experiência com motivação, entrega e perfeição, nunca causei problemas a ninguém, nem alinhei nos «contos e ditos» que se praticam entre os colegas de trabalho e a secretária da direcção que depois lhe espeta a si todos esses contos e ditos nas suas orelhas quentes. Fui bem tratado por todos até ao momento de entrada em cena do Tremidinho. Confio na sua palavra mas não confio na palavra do Tremidinho. É preciso lembrar que quando me pagaram o salário de Julho, o sócio conjunto disse que a C– podia fechar ou então o Tremidinho passar a ser o único sócio. Não vejo qualquer problema em ser transferido dado que um papel seja assinado em que me garantam os meus direitos, mas se o Tremidinho não quer assinar esse papel é porque de algum modo me quer empurrar para a porta de saída sem nunca pagar nada. Junta-se a isso que os meus colegas que assinaram a transferência e a eles coisas de boca lhes foram prometidas e ainda nada obtiveram. Não vejo como comigo seria diferente. Peço por isso a minha integração, o meu regresso à empresa A- pois não acho que possa haver justa causa para rescisão nem motivo para processo disciplinar, peço portanto que me dêem o meu trabalho de volta.»
Termino a epístola. Agora vou fumar mais um charro, ler um pouco e adormecer.
Amanhã às onze a guerra pelo emprego tem nova batalha no armazém A.
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Hoje de manhã em Tintus Rius, onze horas nas instalações da empresa A–:
«Estou sob contrato há 18 meses, o contrato foi renovado automaticamente por mais seis meses. Só por extinção do posto de trabalho me podem agora legalmente despedir.»
Civilizadamente o acordo chega: «Vai gozar o seu restante período de férias e volta ao serviço dia seis.»
Quando saio da reunião por volta do meio-dia, dou por mim a pensar que o mais provável é cumprir os próximos seis meses e o contrato, a termo certo, não ser mais renovado, pois não aceitei a transferência para a empresa C–. É possível igualmente que me encostem a varrer o chão durante esse período, algo que cumprirei com rigor. Não lhes quero dar desculpas para despedimento selvagem.
Tenho contas de escravo para pagar, sou um escravo, não sou um patrão, não me posso dar ao luxo de ser sempre insolente perante a gerência mesmo quando tenho razão, e vendo o lado positivo: estas quase duas semanas-extra de férias vão-me dar tempo de me organizar, de encontrar um quarto mais barato e que me garanta uma cozinha. Nesta pensão onde estou é insustentável ficar a longo prazo.
Esta história «adiei o desemprego, adiarei a queda na rua!» iniciou-se quando previ um possível momento de apocalipse, o título de «quarenta e nove koans em Derza» transfigurou-se neste caderno de capa preta em «quarenta e nove conas em Derza» porque se um koan é um enigma, uma cona é um enigma também, Sanea pôs-me fora de casa, quis que eu saísse e ao dar a ordem talvez quisesse que eu fizesse por ficar, que lhe pedisse desculpa, lhe beijasse as mãos, lhe comprasse um anel de esmeralda, lhe prometesse umas férias na República Dominicana, lhe dissesse e mostrasse que ainda gostava dela. Mas como eu apenas quis ficar para não ficar na rua, foi sinal de que já não gostava dela. Foi este meu modo de ver a situação que lhe provocou o ataque de choro histérico naquela noite porque, dividida entre os conselhos das velhas teias de aranha e a vontade de que eu ficasse, mandou-me embora mas queria que eu voltasse para casa dos meus pais, para como era habitual daí a duas semanas fazermos mais uma vez a paz. Troquei-lhe as voltas, não volto como derrotado conjugal para casa da mãezinha, vou sim fazer por sobreviver na grande metrópole. Finito.
Caminho agora para a paragem e, antes de decidir em que autocarro entrar e destino sair, ligo para o número da Sandra com quem tinha apalavrado um quarto. Uma contrariedade surge: os outros ocupantes da casa querem conhecer-me. Digo a Sandra: «É natural que assim seja mas deixaram-me todo este tempo pendurado na promessa de um quarto que pode já não ser certo.»
Ela dá-me o contacto telefónico dos outros residentes, desligo e entro no autocarro para o centro da cidade e, enquanto olho a paisagem, penso: «quero ver se ainda esta tarde resolvo o assunto, estou ansioso e em caso de resposta definitiva e negativa tenho de procurar alternativas. Esta tarde os meus planos não passam por fumar, hoje não haverá lazer. Tenho telefonemas para fazer, anúncios para pesquisar.»
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As consequências de esta tarde não ter havido nem lazer nem ócio fazem-se sentir agora à meia-noite, continuo sem dormir.
Muitas vezes fiz listas de bandas, álbuns a comprar, as melhores músicas para ouvir em modo aleatório nos auscultadores enquanto pedalava, eram tempos em que ignorava o perigo de me alhear no trânsito, era um jovem sem medo e com bicicleta. Nesta altura cheguei a considerar Van Der Graaf como a melhor banda dos anos setenta, Sonic Youth dos oitenta e Coil dos noventa. Hoje pela sua substância psicológica Virgin Prunes é a melhor banda de sempre: «O here we go, round and round again, down the memory lane.»
Agora em noite de insónia ouço Virgin Prunes. A insónia — um produto da ansiedade, não durmo porque estou ansioso, estou ansioso porque amanhã vou ver um quarto-sala mobilado com acesso a cozinha e máquina de lavar por duzentos e trinta euros, água e luz incluído. Vou tentar baixar o preço mas se gostar, aceito de qualquer maneira.
Estou ansioso porque as coisas correram mal, a Sandra vai deixar o quarto e o seu quarto ficaria para mim, foi o que estava apalavrado, mas agora a Célia e o Raimundo parece que precisam da autorização da prima… foda-se podiam ter dito mais cedo!
Quarto riscado da lista, hoje em dia as listas que faço já não são de discos mas listas de quartos para alugar.
Tem o seu quê de piada suburbana. Ora vejamos, falei com o Joaquim e esse quarto já está ocupado. Vi outro quarto por cento e oitenta euros mais água e luz mas não me agradou, muito pequeno. Hum, se amanhã não correr bem, bem… se amanhã às onze em Coñejo Latino não correr bem continuo aqui na pensão até ao fim do mês, não me posso deixar cair em pensamentos negativos, não tenho agora que pensar no que fazer após um apocalipse que, se eu pensar positivo pode nunca ocorrer o negativo mas nem tudo depende de mim, se eu pensar positivo... se eu contar carneiros adormeço agora e daqui a algumas horas já estou a morar num palácio! Ah, quando andava de bicicleta tinha pouco dinheiro para listas de compras e hoje se não tivesse o dinheiro possível de dezoito meses de trabalho, a ganhar o salário mínimo, estava a morar na rua em cima de cartão, é nisso que tenho de pensar para adormecer, não preciso de pensar agora que não sobreviveria se fosse um sem-abrigo, afinal consegui segurar o trabalho por mais seis meses, nem tudo é mau na minha vida.
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Vou ficar à patrão por 230 euros.
Já comecei a mudar as coisas. O quarto até salamandra tem.
Já estou a festejar e posso anunciar o plano: às duas mudo o resto das minhas coisas e para isso terei de pagar mais cinco aérios ao taxista. Depois vou a forno town e volto já para aqui ou vou de imediato fechar o quarto na pensão. Janto no rapide e vejo o porto contra o barcelona. Depois vou à stray kat coffee shop ver um filme. Durmo na pensão. Amanhã faço trabalho comunitário na associação. À noite por três euros vou ver Minda gap. Domingo espero ir visitar o local mítico da metrópole embora desconfie que esteja entaipado de vez. Conto mudar-me de vez na segunda, com o trabalho adiado e contando que recebo subsídio em atraso e o ordenado para a semana não ficarei mal, terminarei projectos e conclusões. Não caibo em mim de contente. O sino acaba de tocar doze vezes. Vou fazer turismo.
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Acordei às 08h30m, saí da cama às 9h e na rua encontrei a empregada da pensão e disse-lhe que saía daí a meia-hora. Fui ao café de sempre e comi um bolo de arroz juntamente com o café. Não fumei. Li o jornal. Depois de deixar as chaves na pensão e já a caminho do autocarro, encontrei o senhorio. Agradeci-lhe por tudo. Pus-me a fumar e o autocarro chegou. Entrei definitivamente em Coñejo Latino às dez da manhã. Subi no elevador, abri a porta, liguei a televisão, pus a rádio nas notícias, descarreguei o saco. Fumei. Fui tomar café à cozinha, fiz um desenho e falei com um inquilino que acaba de sair para ir ao centro social tomar o pequeno-almoço. Já fiz a primeira lista de compras e o plano das despesas. Agora ouço Meurglyss III, o blues branco. Não não, eu hoje não falo só com plantas e cães, hoje partilho botijas de gás em troca da paz de estômago, pretendo sentir-me um simples operário na multidão, aquele que se perde de vista e deixa um rasto sem nome, sem mágoas futuras no éter.
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O lobo erra e erra até encontrar a toca que o aceita, mas já não tem paciência e é normal sucumbir à loucura porque não aceita a sublimação solitária.
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