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A paixão confessional do grande empresário pelo chinês
(Escrito seguindo o estilo de Boris Nerval)
Na empresa, o comandante geral mente senta-se no lugar do morto, sendo hábil mente conduzido pelas mãos no volantinho de pau do secretário honorário. Como em todo o bom mistério, o qual se pretende manter por motivos tão absurdos como questões de segurança nacional, serei daqui em diante denominado de «o passageiro do banco de trás». Aliás este nominalismo é quebrado, às vezes e sempre, quando espero debaixo do candeeiro de luz pública chinesa para ser recolhido breves minutos depois pelo nosso honorável secretário honorário e me sentar no lugar do morto. Esta excepção à regra será daqui em diante arquivada num ficheiro com o título de «o geral comandante está em lua-de-pré-mel em Veneza». Vai dar no mesmo se esta ficção estórica classificar Veneza e gongoricamente diluí-la em sal. Tudo se resume em denominar substitutos e trocar gôndolas por moliceiros. No entanto, a lua de mel permite ao comandante geral depositar três milhões de zmbs na banca do mendigo mais próximo da catedral de Rijeka, sendo este nominalismo um pouco gongórico, um mero substituto e querendo na realidade definir o paraíso fiscal do Vaticano e o mendigo apenas alguém que apareceu enforcado na ponte com os bolsos rotos, santo para sempre. Quem se importa se ninguém perceber...
— Então paz!
— Então grande chefe! Está aprovado!
— E se calhar não lhe carregaste...
— De qualquer modo mesmo à minha maneira... está aprovado! E tu? Tudo careta?
— Faz-se por isso. Amanhã é dia de trabalho!
Assim sendo, o passageiro do banco de trás, que hoje se senta no lugar do morto porque o encarregado da obra não está e está a fazer os preparativos para ir curtir as vindimas num moliceiro em pleno são martinho, chega a casa em Derza e põe-se a ouvir a hammerklavier sonata vinte e nove opus cento e seis do Thöven B.
A chuva bate nas telhas e vejo na pequena clarabóia desta torre de controlo rádio a chuva a escorrer tijolo vidro abaixo. Ouço agora Ray Lema em sistema quadrifónico e este nominalismo quer na verdade dizer: eu estou a ouvir duas fontes sonoras em estéreo, Ray Lema e também Glenn Gould a interpretar uma sonata do Thöven B.. Há já algum tempo aludira a um enquadramento desta grandeza, deu até origem a um texto denominado «The blues», que foi incorporado no capítulo das bicicletas estacionadas em postes de candeeiros ainda não parcerias públicas chinesas mas com graffitis certificados com a marca de qualidade fdp dizendo: Procura-se. A este farto de procurar trabalho junta-se a minha devoção em part-time voluntário na associação Jesus Salva, onde a minha maior realização é disfarçar-me de gaja e seleccionar uma passagem escolhida do mais útil dos autores alemães e conseguir com este recurso estilístico roubar um beijo à fantástica devoção platónica tornada uma rocha rugosa, sendo aqui esta admiradora de cavaleiros de armadura assombrando a honra de donzelas denominada como «o busto da princesa rocha» tornada uma fotografia impressa num livro de arte egípcia, arrancada para fazer uma escultura em exposição na varanda do primeiro andar e depois o vento encarregando-se de o fazer desaparecer e entregar a um novo dono. Claro que neste ponto convém dizer: cada um tem a sua maneira de se fazer gente desde que cada um respeite o espaço do outro. No entanto, ainda hoje acabei de ler o texto Sylvie do Gérard e não deixo de pensar que se calhar a Adriana/Aurélia podia ser por mim transposta para a minha narrativa na personagem do busto da princesa. Vários pormenores nada aristocráticos me impedem assim de ficar na estória como inventor de uma ficção tão estropiada esta minha, lembro-me aliás das frases que escrevi como se alguém declamasse em gravação sonora: I have no right to my own copy riot! Sim!, não tenho, mas no entanto também acabaria por ter de haver uma sílvia e, claro que, em toda a literatura memética acaba por haver uma sílvia na vida de um tone, inspira aliás momentos zen no passageiro do banco de trás mas até esta nuance não é exactamente igual àquela história do Gérard. Eu não sou tão bom mas tal como ele, eu nada invento.
— Então, o empresário não veio?
— Ó!, nem me digas nada…
— Não deve ter vida social, não deve ter agenda livre.
— Nay, 'inda onte' teve no Pereira. Acho que vai dar em casório.
— Ei, era fixe, ficava garantido para toda a vida.
— Não sei, já nem sei que dizer… och och, olha, por falar nisso, fui contactado por um agricultor que quer distribuir o seu produto devidamente certificado pelo fdp. Estás nessa?
— Iá, até que 'tava com vontade de beber de um pouco desse verde, não seria possível fornecer um litro de amostra?
— É possível, terei que me informar junto do geral comandante… no entanto o lance mínimo são cem zmbs em paridade com a lira, tu sabes, o geral vai para Veneza…
— Sim compreendo, penso que não terei dificuldades em cumprir contratualmente. E para quando o grande jantar da empresa?
— Bem, segundo informação de último dia a vindima foi já efectivamente realizada, estando agora naquele estado entre o lagar e a pipa. Uma questão que pode demorar uma semana ou um mês.
— É claro que há todo um intervalo.
— Sim, a qualquer momento.
— Ok grande chefe. Amanhã é dia de trabalho.
— Sempre às ordens doutor.
É necessário expandir o ramo de actividade. Abrir horizontes, desbravar fentos e urtigas sem utilizar retroescavadoras, a maneira, aliás a seguir, denominada como a maneira do «careca chinês» que em breve deixará o amadorismo e com a rapidez de um cometa Tunguska se torna agora num verdadeiro palhaço profissional.
No entanto é assunto sério. É quase assunto de faca e alguidar, envolve a torradeira e toda a obra literária. O chinês acaba de ser informado, pela personagem daqui em diante denominada como «a moça de recados», que o poeta tem medo do chinês; pediu também à moça de recados que dissesse ao chinês para não usar a torradeira do poeta, aquela na qual o poeta quase torrou a obra dedicada à mulher dos seus futuros netos.
— Sabe… desde aquela vez que o chinês me agrediu… que…
O chinês, agradado quase honrado por hoje ser palhaço profissional, ainda pensou no éden daquele chinês que comete um crime para salvar a sua amada americana que levava porrada do marido, mas este chinês não fuma ópio e sabe que a polícia prendeu esse tal chinês que fumava ópio por matar o marido que dava porrada na Lillian Gish blablabla, e hoje nesta nuance de filme o chinês, ou seja eu, pergunta:
— O poeta pediu resposta?
— Sim. Responde a moça de recados.
— Diz ao poeta que o chinês lhe mandou dizer que ele poeta terá de vir falar directamente com o chinês para resolver o assunto relacionado com a utilização da torradeira.
— Também foi o que pensei.
— Diga que se for necessário e se ele tiver tomates de me dizer: Chinês, não te permito que uses a torradeira!, eu deixarei de a usar. Mas ele deve ter medo.
— Sim. Ele disse: desde que ele me agrediu…
Convém igualmente aqui dizer que esta estória do poeta dizer «o chinês agrediu-me» não é exactamente assim, aliás como dizia o João Pinto: «prognósticos só no final do jogo». Como este jogo não mostra só o lado heróico daqueles poetas que, em alguma altura, tiveram alguém ao seu serviço que os ajudasse a montar o cavalo enquanto eles, armados de binóculos, fiscalizavam a obra feita mulher feita sustento do lar e de boas condições de trabalho para a arte do poeta, mulher daqui em diante denominada de «leite de soja». E se esta cavalgadura é a corda sobre o abismo do poeta, então também não é minha intenção defender a honra da leite de soja nem perante o poeta, esposo marital, nem perante o benévolo e curioso leitor. Sinto-me quase honrado por o poeta ter medo do chinês, eu que só me salta a tampa se nela alguém fizer pressão. Por isso quando saio para ir apanhar o metro, quando fecho a porta do quarto e vejo o poeta na cozinha, ignoro que ele poderá ter arranjado tomates para uma conversa civilizada, uma espécie de mano a mano. O problema é que o poeta pensou que o chinês teria que ser o seu mandarim, oficial e pombo chinês para todo o serviço táxi, daqui em diante denominado de «ganza ao domicílio» e sem pagamento de despesas adicionais daqui em diante denominadas de «sola de borracha das botas». Nessa altura a capoeira matou o tiozinho poeta. O mandarim chinês deslocalizou-se e tomou posse da torre de controlo rádio de Labutes Tower. O poeta diz então ao de longe enquanto o chinês o ignora descendo pela escada interior para a porta da rua:
— Era só para passar a mensagem de que não…
O leitor saberá certamente que o final da frase é '«[não] podes usar a torradeira.» No entanto, a mensagem não passa porque eu desço a escadaria inteira dizendo ainda mais alto que o poeta:
— Agora não, tenho que sair, mais logo.
Fecho a porta da rua pensando com os meus botões: Fica registada a intenção do poeta, no entanto e porque parece que o poeta tem medo do chinês, serão necessárias duas testemunhas para selar o pátio de ódio não-agressivo, não será necessário sangue algum, eu escolho para minha testemunha a moça de recados, tu naturalmente escolherás a leite de soja dado que é a tua mulher.
Mas tudo isto não acontece efectivamente, não passa de um pensamento que obtenho depois de entrar no metro, aliás não sei se validei a entrada. Quando volto do compromisso nada me é revelado e também, paciente e curioso leitor, posso eu revelar que efectivamente se avançou no assunto complexo da torradeira versus ganza ao domicílio versus obra queimada em filme versus leite de soja contra o chinês. Devido a tudo isto eu próprio, o chinês, me tornei palhaço profissional. Tenho em mãos uma espécie de processo: a contracultura ressacada contra um hobo chinês. O Pierre Boulez no meio de jornalistas disse que reservava a sua opinião sobre a qualidade do Frank, e eu só estou à espera de acabar esta estórinha para do poeta só passar a dizer quando interpelado exactamente isso, mas agora tenho de ir nanar. É aliás provável que escreva mais umas quantas frases até virar esta página no meio da noite. No entanto se tudo é retórica e classificação e todo o pensamento é válido escrever, então que essa fugaz subliminaridade seja inscrita em papel e se torne por fossilização passível de acontecer por nuances. Tantas vezes que já aconteceu. Boa noite.
No dia seguinte:
— Então doutor…
— Então grande chefe, como passa?
— Então estamos aprovados? O produto nacional?
— Sim completamente. Há que apoiar o mercado interno!
— Olha, eu na quarta tive de pedir reforço. Aqui na zona está a ser um sucesso!
— Está aprovado! Na próxima vindima encomendo mais.
- E tens bebido sozinho…
— Quase tudo. Claro que partilhei o copo com algum pessoal, gostaram e até dispensei uma garrafa. No entanto, cada garrafa só dá três copos.
— Olha, e logo não queres ir beber um copo?
— Não, hoje não. Estou cansado. Mas se quiseres daqui a uma hora… vens cá ter e a gente vai lá baixo e curtimos a esplanada.
— Ah não agora não. Estou com uma chapada. A noite é mais fixe!
— Sim mas eu tenho de dormir.
— Ok, então ficamos conversados.
— Ok. Talvez no próximo fim de semana.
Dez minutos mais tarde, o suficiente para colocar os Mutantes s21 a spinar no gira-discos e começar a escrever este diálogo, o grande chefe volta a chamar:
— Então grande chefe, como passa?
— Sou eu outra vez… olha, aquilo lá em baixo abre a que horas?
— Cinco e meia, seis horas e abre. Queres ir lá?
— Iá, até que estava a pensar que era boa ideia.
— Sim, eu bebia um café. De qualquer modo e se não estiver aberto, há nas redondezas outros tascos.
— Ok, é isso!
— Que horas são? Ãahh… deixa ver, são quatro e dezassete. Vais com calma, relaxa, faz as cenas descansado e lá daqui a uma hora dás o toque e eu vou para a paragem.
— Ok, quando estiver na avenida dou o toque.
— Ok, grande chefe, até já!
E então enquanto uma longínqua canção árabe em Istambul às duas e quarenta e cinco da manhã… antes de receber o toque de convocatória envio mensagem ao grande chefe e levo o lixo para o ecoponto, sem guarda-chuva mas com a ajuda de Lá, de repente:
— Fazemos um cocteil no tasco, eu levo a broa e tu a garrafa.
Os dois turcos vão-se encontrar na twilight zone dentro de instantes e ajudarão a provar a peça de roupa a ser usada em Veneza pelo chefe da empresa, o empresário.
Derza, cais do muro. No sonho de mil e um fantasmas esperei que o grande chefe secretário me recolhesse no habitual poste de iluminação pública chinesa junto à igreja. Deu até para reparar na luz do fim de tarde deixando os taxistas permeáveis ao meu fumo em formato king moks. Táxi?
— Então paz! Qual o destino?
— Sempre em frente mai frango!
— Não estou habituado a esta luz. 'tou todo moca, almocei assado mas agora estou com fome. Tenho aqui uma garrafa.
— Não tens óculos de sol? Eu tenho aqui broa.
— Eu tenho, costumo usar durante o Verão.
— Iá mas ao fim da tarde é fixe. Às vezes, venho por aqui abaixo a pé… e a luz é da cona!
— Iá mas curto mais a noite.
— É outra onda. Cada qual com o seu modelo de negócio.
— E olha, a cona já está aberta?
— Talvez ainda não… mas temos alternativas.
— Eh pá, espera aí, tenho de mijar!
— Ei espera um bocado, mijas na casa de banho, não vais mijar aí como um cão. Há aqui muitos tascos, olha… vêem-se aqui muitas gajas fixes.
Ao fim da tarde não são minisaias a matar, estamos em pleno são martinho, são mais gorros fuscina e cachecóis azuis ciano.
— Eh pá, está fechado?!
— Vamos ali em frente, a segunda opção tu sabes…
— Iá!, até lá podíamos beber uma garrafa. Bem, desde a lei do tabaco é só wc, pelo que ao menos podes aliviar-te.
Fazemos horas e durante as horas vemos as turistas que passam e a luz findando no poente.
— Olha, parece que o empresário já não vai para Veneza… ihihih.
— Não me surpreende mas… vai ao menos para a ria de Aveiro?
— Eheheh nem isso! Parece que faz anos. Estivemos ok a beber uísque. 'tou com uma broa!
— Uma broa tenho eu aqui para o pessoal comer. É só fazer umas horas. Aguenta os cavalos.
— Vou mijar.
Antes de voltar a casa deu ainda para tentar enviar uma mensagem de parabéns ao empresário, que não pode vir por estar algures a celebrar eventualmente num boteco da estrada para Entre-os-Rios. No entanto, pedi-lhe por sms o número do inem, escrevi textualmente: o grande secretário não está em condições de ser conduzido de volta à zona. Foi pelo menos esta ideia que, depois da broa e da garrafa, tentei passar ao empresário de modo a tentar que ele viesse cá ter de mota para pagar a conta do jantar de aniversário e, claro, apoiar o produto, consumir nacional, apoiar o mercado interno, o tão pelos burocratas — solidário leitor — desprezado mercado interno. Que todos os agricultores escoem a sua produção!
Chego por fim à torre de controlo e volto a pôr Mão Morta e o lado 0 acaba de tocar. 'tou há vinte minutos a escrever o relato deste fim de tarde na já habitual reunião de empresa para balanço e acerto de contas. Vou agora levantar a caneta do caderno para ir pôr o lado 1 dos Mutantes s21 e beber mais meia garrafa de modo a me dar a fome e ir comer a sopa, talvez um bocado de massa. Haja saúde e eu serei o filho mais feliz do mundo.
Terminando o último gole da garrafa e completada com o groove de electrostática mutante s21 girando em sistema estéreo, em nada comparável ao sistema quintifónico se contarmos com o subwoofer potente que o grande secretário comprou em alta promoção na reciclagem — mais um alto vale de desconto passado pelo empresário do grande produto nacional — venho por este meio concluir o relato da última garrafa do dia. Irei de seguida descer da torre de rádio e jantar, tentarei ver as notícias da guerra do dia-a-dia, depois um banho rápido e fazer a barba porque lá para as onze será tempo de ir nanar, amanhã lá para as sete da morningue terei de me fazer à bida. Foi isto que tentei explicar ao empresário quando este ainda agora me queria convocar finalmente para o jantar de celebração. Recusei até a dedicada moça saindo do bolo. Dado que durante a semana estou empenhado em ser um profissional competente e reunir mais do que o necessário para conseguir garantir alegria dentro em breve e por não querer misturar o pessoal com o profissional com o comunitário, abster-me-ei de abordar a estória durante a semana mas… para que a estória continue em registo coloquial e, na melhor tradição de encher chouriços para o esfomeado leitor no talho da dona Maria, e roubando alguma da técnica burroughsiana, será inserido a seguir um triálogo real e nada inventado. Existe até filmagem em vídeo digital mas irreproduzível a imagem devido a questões jurídicas.
Ainda antes de transcrever parte deste áudio, posso deixar em última mão a minha convocatória por parte do grande secretário a ser efectivada após o toque habitual de passagem diante da porta. Serão outros joviais velórios.
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