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-- Eh!, pá, deixa-te disso! Entras tu que estás prático em palmar galinhas. A propósito, as gajas não fazem cagaçal? -- perguntou o Cabeçudo.
-- Não -- disse Tomás -- se estiverem no escuro não fazem barulho. Só se se acender uma luz. Às escuras fazem có có có, muito baixo. E além disso se são galinhas cristãs, católicas, devem portar-se decentemente. Não te parece?
O Macaco encafuou-se lá dentro, roçando a barriga pelo buraco. Tomás seguiu-lhe o exemplo e foi-lhe no encalço.
Acenderam a pilha quando se viram dentro do galinheiro. Este estava cheio de palha e via-se ainda um par de cestos rotos, uma gaiola, mas de galinhas nem o cheiro.
-- Parece-me que estão na outra divisão. Não tás a ouvir?
-- Raios te partam! -- refilou Tomás. -- Também antes as ouvias!
Arrombaram a vedação e passaram para o outro lado. Havia ali, dentro de uma divisão de rede, apenas uma galinha.
Tornaram a acender a pilha e descobriram um ovo dentro de uma cesta. Tomás fez-lhe um furo e bebeu-o num gole.
O Macaco procurou interrompê-lo:
-- Porra, dá-me um m'cado! -- disse, raivoso.
Tomás apontou-lhe a galinha e aconselhou:
-- Olha, pá, mete-lhe o dedo no cu e vê se tem outro lá dentro!
Aproximou-se e abafou a galinha, que, no escuro se deixou apanhar, fazendo có có có, muito baixinho. Tomás torceu-lhe o pescoço com tanta força que quase ficou com a cabeça dela na mão.
-- Ó artolas, porqu'é ca mataste? -- protestou o Macaco. -- Nessa pegava eu, punha-a no jardim e tinha um ovo todas as manhãs!
Tomás estava tão furioso que preferiu não dar resposta.
O cancelo daquela divisória estava aberto, não havia necessidade de se arrombar a parede para se passar para lá.
O Macaco acorreu, todo contente:
-- Eh pá, as galinhas estão deste lado! -- disse, empurrando o cancelo.
Passaram para a terceira divisão e encontraram ali quatro galinhas. Agarraram-nas e tiraram-lhes o chiadoiro.
-- Vamos arrombar esta parede! Mas para onde raio terão ido as galinhas? -- disse o Macaco, desiludido por só terem encontrado quatro.
-- Vamos masé imora! -- atalhou Tomás, furioso -- , porque daqui a um m'cado começam os padres a dizer a missa.
Saíram do galinheiro e o Cabeçudo já não estava no sítio onde o tinham deixado.
-- Toca a andar! -- comandou o Macaco. -- Mas onde se terá metido aquele paneleiro do Cabeçudo?
Começaram a meter tudo dentro do colchão, a ferramenta mais as galinhas, quando o outro sócio apareceu.
-- Nada -- disse ele ao aproximar-se. -- Tinha visto um tipo passar e fui ver pronde ia. Então as galinhas? -- perguntou depois quase sem cor, por via da desilusão ao ver o saco que tinham trazido para as levar.
-- Mas onde é que estão as galinhas? -- repetiu, o desespero estampado nos olhos.
Respondeu-lhe Tomás, num ataque nervoso que lhe punha tremidos na voz:
-- Mas quais galinhas, qual carapuça, se nem borboletas havia lá dentro?
O Cabeçudo não tirava os olhos do Macaco, ocupado em arrumar a tralha.
-- Mas como é? -- perguntou, voltado para ele, não conseguindo resignar-se, antes pelo contrário, cada vez mais agitado. -- Então tu dizias que era coisa para umas duzentas a trezentas e onde quelas estão? Parece que vihas pràpanhar anos de prisa em vez de galinhas, é o que é!
(...)
-- Ouve lá, porqué qu'havemos de dar todas as galinhas ò Macaco? Ó pá, comemos uma cada um e com uma galinha no buxo quem passa a Páscoa melhor ca gente?
(...)
Chegaram diante da casa do Macaco e chamaram por ele. Estava a dormir, como tinha uma miúda em Ponte Mammolo e ela mais a futura sogra eram mesmo católicas das antigas, tivera de se levantar cedo e ir à missa co elas, morto de sono.
Voltara a casa, tornara a deitar-se, adormecendo num instante.
Tomás e o Cabeçudo despertaram-no:
-- Então as galinhas, pá? Não nos passas as nossas?
-- Dei duas à m'nha mãe -- explicou o Macaco, estremunhado, com uma cara esquisita, acizentada -- e deixei as outras duas lá na rua Casal del Pazi.
Mirou-os um momento com o rabinho dos olhos, uns olhos que lhe começaram a rir, a rir.
-- A propósito -- estoirou a rir como um perdido --, a propósito, vocês querem saber o que disse o padre lá na missa?
E toca de novo na risada, sem conseguir acrescentar palavra.
Os outros sabiam muito bem que ele costumava ir à missa mesmo no sítio onde tinham dado o golpe, três horas antes. Por isso olhavam para ele, já todos satisfeitos, à espera da piada que dali saíria.
-- Pois o padre -- começou o Macaco a contar logo que conseguiu acalmar-se um bocado -- disse que esta noite lhe tinham roubado trinta galinhas, que ladrões sacrílegos se tinham metido no galinheiro e aquelas almas perdidas lhe tinham roubado trinta galinhas, a ele, que vive da caridade! Trinta galinhas, foi o que disse aquele filho da mãe!
Os olhos do Tomás e de Cabeçudo brilhavam de puro gozo por terem sido falados durante a missa e diante daquela gente toda.
-- Ó Tomás, tás óvir? -- disse o Cabeçudo. -- Nós somos piores qu'o Tinela!
-- Olha lá -- propôs Tomás -- queres ir à missa pra ouvir o que diz o gajo?
Foram a butes até Ponte Mammolo e não se contentaram a ouvir a prédica da segunda missa. Assistiram também à última, a do meio-dia.
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páginas 115 - 120
«Uma vida violenta»
Pier Paolo Pasolini
tradução de José Manuel Calafate, com a colaboração de João da Fonseca Amaral
edição Portugália
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