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Moçambique, 2006. Estava a trabalhar num bairro de realojamento de vítimas das cheias, cujo terreno tinha sido cedido pelo Estado moçambicano e era tutelado por uma congregação religiosa. Alguns dias depois de eu ali ter chegado, as freiras convidaram-me para passar a almoçar com elas, no intervalo dos trabalhos -- como eu já tinha sido aceite pela comunidade, não haveria indecoro em deixar-me entrar nas suas instalações. Pensei que a abundância gastronómica que me foi apresentada nesse repasto fosse uma excepção, talvez apenas uma forma um pouco primária de cortesia para com a minha inédita presença. No dia seguinte, porém, entendi que aquele banquete faustoso era uma prática quotidiana, que estava nos antípodas da prosápia sobre o apoio aos desfavorecidos e sobre o amor lá do cristo. Nesse segundo almoço, conversava-se sobre a visita do prior, daí a uns dias, e definia-se o plano para ir a um sítio específico, na capital, comprar bacalhau, a peso de ouro, porque o senhor prior gostava muito de bacalhau. Aproveitei para perguntar como poderíamos financiar as refeições dos participantes na obra-escola que eu ali estava a coordenar, porque tinha chegado à conclusão de que os jovens vinham de casa, de manhã, quase sem comer e assim passavam o dia. A resposta foi uma brusca mudança de uma tese pro orgia-gastronómica (para o prior) para um rigor espartano no que diziam ser a «educação» dos jovens realojados, que tinham de aprender que não se lhes pode dar tudo, assim de mão beijada. Mesmo que o tudo fosse comida para a boca, que não tinham, para poderem trabalhar o dia inteiro.
Esta foi a minha última refeição com as freiras.
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MM
extraído do jornal A Batalha nº298 Mar / Ago 2023
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