domingo, 30 de novembro de 2025

Depois do 25 de Abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas.
tornámo-nos democratas por medo.
e até ao fim da revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas.
Fomos democratas por cobardia, tínhamos pânico de que nos acusassem comos os pides

 "

Sentado no banco incómodo do carro, com Ourique ao longe, o amontoado de casas de Ourique que o calor refractava, lembrei-me que nós, os psiquiatras, nos assemelhamos todos ao noivo, tão ridículos e apavorados como ele, arrastando uma mala repleta de pastilhas, de ampolas, de conceitos e de interpretações, o enxoval de uma ciência inútil no braço. Lembrei-me do nosso ridículo, do nosso pavor, da miséria da nossa pompa e comecei-me a rir. Ria um riso ao mesmo tempo podre e alegre, o riso podre e alegre dos carrascos. Ria dos que manejavam os aparelhos electrochoques nas clínicas da periferia de Lisboa destinadas aos ricos, em que as camisas de dormir cheiravam melhor e não havia pó nas secretárias, das clínicas rodeadas de jardins tristes da periferia de Lisboa, onde os quartos se aparentam a jazigos habitados por cadáveres sonâmbulos, nos quais os psiquiatras instalam a esperança postiça das pílulas. Ria-me dos médicos bem vestidos, bem alimentados, solenes, comedidos, competentes, majestosos, ria-me da sua falsa segurança, do seu falso interesse, da sua falsa ternura, e o riso soava desfigurado e humilde aos meus ouvidos, soava como a queixa dos bois doentes quando se aproximam deles para os matarem, os bois que levantam os olhos moles para o braço que os assassina, numa ternura insuportável. Ria com Ourique ao longe no sossego da tarde, na paz da tarde do Alentejo cheia de rolas bravas e silêncio, ria dos psicanalistas detentores da verdade a jogarem xadrez na cabeça das pessoas com o seio da mãe e o pénis do pai, e o seio do pai e o pénis da mãe, e o seio do pénis e a mãe do pai, e o peio do seis e o pãe do mai, ria dos que curam homossexuais com diapositivos de rapazes nus e descargas eléctricas, dos que tratam o receio das aranhas com aranhas de arame parecidas com insectos de carnaval, dos que se juntam em círculo para dissertar sobre a angústia e cujas mãos tremem como folhas de olaia, brandidas pela zanga do vento. Ria-me de pensar que éramos os modernos, os sofisticados polícias de agora, e também um pouco os padres, os confessores, o Santo Ofício de agora, ria-me de pensar nos oleosos psiquiatras obesos que impingiam sessões musicais aos seus pacientes em nome de técnicas obscuras, dos barrigudos, desonestos, assexuados psiquiatras obesos, dos budas repelentes seguidos de uma corte de feios discípulos extasiados, de barbicha de bode e de cabelo sujo, segregando-se na orelha inanidades convictas.

Depois do 25 de Abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas. Não nos tornámos democratas por acreditarmos na democracia, por odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a simples proibição de raciocinar: tornámo-nos democratas por medo, medo dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o tempo de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos atenciosamente com as famílias, preocupámo-nos com os internados, protestámos contra a alimentação, os percevejos, a humidade, os sanitários, a falta de higiene. Fomos democratas, Joana, por cobardia, pensou ele vendo um bando de rolas poisar num olival, agitar a tranquilidade do olival com o reboliço do seu voo, tínhamos pânico de que nos acusassem comos os pides, nos prendessem, nos apontassem na rua, pusessem os nossos nomes no jornal. E demorámos a entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a respeitar-nos como respeitam os abades nas aldeias, continuam a ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana, porque haviam abolido a guilhotina.

"

António Lobo Antunes em 

Conhecimento do Inferno, pág 99 -- 101

edição Vega

sexta-feira, 28 de novembro de 2025

Manitas de Plata -- 3 songs from Guitares en Fete

3 songs from side B of the LP: Guitares en Fête by Manitas de Plata B1: Hermanitos del Albacin (solo: Manitas) B3: Campanitas de Camarga (solo: Manitas) B5: Gitanitos Rumberos (guitares: Manitas, Fernand, Bambo, Nino de Suerto, Nanasso, Manero voix: Manero) 1986 CBS Disques

sábado, 22 de novembro de 2025

Um livro para o dia

As Edições Mortas

acabam de editar

"Até que a morte nos separe" por Claudio Mur,

um livro de poemas dedicado a Sanea Vallis.

Está disponível para já na livraria Utopia e livraria Térmita no Porto

ou contactando o grande Oliveira através do email: oliveiraeditor21@gmail.com

100 páginas, PVP 15



sábado, 15 de novembro de 2025

Haitian Fight Song

 


Azul de terra (versão)

 

-- Olá, estás aí? Não te vi entrar...

-- Sou invisível!

-- És nada! O que vais tomar?

-- Um café.

As imagens que são pessoas vivas passam da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, em frente à porta do bar das oito pontas azuis. Eu observo e bebo o meu café. Um amigo entra e senta-se no balcão a meu lado. O seu discurso é um pouco mais incoerente que o meu. Tem problemas derivados do consumo de pastilhas e esteve em Lá. É meu amigo.

-- Nós lá... desenhávamos o tempo.

-- E caminhávamos como se fôssemos santos e víssemos a quimera.

-- Dá-me um cigarro. Para este peixinho.

-- Para seguir no comboio e ir ver as pirâmides?

-- E ver também os elefantes e as mulheres abelha e os cães danados de três cabeças e os pintaínhos azuis...

O dono do bar para quem nós não somos invisíveis, ri-se. O meu amigo sorri. Eu também.

Fumámos o peixinho a dois. Repetímos o pecado segunda vez. Somos sonhadores.

 

Agora, levanto-me e venho até à porta, sento-me na soleira. Começo a sentir arrepios de frio. Volto para dentro e sento-me novamente ao lado do amigo.

Agora, sinto-me uma imagem com o frio a subir-lhe à cabeça. Começo a sentir-me perto dum apagão. Se fechar os olhos apago-me. Ainda não paguei, tenho de pagar antes que me apague, antes que me transforme em estátua.

Olho em frente para o espelho e vejo-me a abrir a carteira e a tirar vinte euros para pagar. Pouso a nota no balcão, por baixo da carteira e com a mão por cima. Olho o dono.

Sinto o sangue a ferver e o frio a subir à cabeça e a dar voltas no estômago. Tento controlar e vejo no espelho a imagem a controlar. Baixo a mão à cintura e sinto tonturas e dificuldades em me conservar sentado neste banco de pé alto. Olho para o espelho e estou a controlar.

Os meus ouvidos num túnel, os meus olhos a apagarem-se. A casa a explodir.

 

(E nesta interrupção, as imagens surgem de dentro como um desejo de síntese.)

-- Olha, deixaste cair ao chão a...

Acordo do apagão e olho para terra. Azul. Vejo a nota no chão. Azul de terra. Apanho-a e agradeço. Volto a sentar-me. Era a última nota do mês. Faço sinal e pago.

Afinal, correu tudo bem e os amigos ajudaram. Levanto-me e venho sentar-me na esplanada.

Sou agora uma imagem fora de tela, sou ahah um unicórnio de um milhão que ia ficar a dever. Sou uma estátua com a cabeça encostada à parede e que olha para cima, para o céu e não pode fechar os olhos. Porque as imagens não deixam, elas querem ajudar.

Preciso agora de respirar pausadamente e bloquear a agonia do estômago. O pior já passou. A estátua respira e beija com carinho a imagem que ajudou a estátua.

O filme está a terminar e já só falta um pu. Mais um arroto. Já está.

A boa acção terminou. Cumprimentei um amigo de Lá e com ele fumei um intensificador de sonhos. E vi imagens que são pessoas vivas e estátuas que são pessoas mortas e agora vou desenhá-las.

Levanto-me agora da esplanada e vou para casa renovado. Vou pelo caminho dos pescadores. Um deles recolhe agora mesmo um robalo. Sorri de contente.

Eu sorrio com ele e digo: -- Olha, um dia vendi um quadro e nunca mais lá voltei. Disseram que era ciência rara. Que haja peixe, irmão, que haja peixe!

Ele ri-se achando tudo absurdo. Mas não faz mal. Ele não sabe que acabei de parafrasear Manuel da Fonseca. Estou em paz. Não preciso de mais nada hoje. Uma sopinha e dormir feliz ao ouvir a «haitian fight song» do Charles Mingus.