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Sentado no banco incómodo do carro, com Ourique ao longe, o amontoado de casas de Ourique que o calor refractava, lembrei-me que nós, os psiquiatras, nos assemelhamos todos ao noivo, tão ridículos e apavorados como ele, arrastando uma mala repleta de pastilhas, de ampolas, de conceitos e de interpretações, o enxoval de uma ciência inútil no braço. Lembrei-me do nosso ridículo, do nosso pavor, da miséria da nossa pompa e comecei-me a rir. Ria um riso ao mesmo tempo podre e alegre, o riso podre e alegre dos carrascos. Ria dos que manejavam os aparelhos electrochoques nas clínicas da periferia de Lisboa destinadas aos ricos, em que as camisas de dormir cheiravam melhor e não havia pó nas secretárias, das clínicas rodeadas de jardins tristes da periferia de Lisboa, onde os quartos se aparentam a jazigos habitados por cadáveres sonâmbulos, nos quais os psiquiatras instalam a esperança postiça das pílulas. Ria-me dos médicos bem vestidos, bem alimentados, solenes, comedidos, competentes, majestosos, ria-me da sua falsa segurança, do seu falso interesse, da sua falsa ternura, e o riso soava desfigurado e humilde aos meus ouvidos, soava como a queixa dos bois doentes quando se aproximam deles para os matarem, os bois que levantam os olhos moles para o braço que os assassina, numa ternura insuportável. Ria com Ourique ao longe no sossego da tarde, na paz da tarde do Alentejo cheia de rolas bravas e silêncio, ria dos psicanalistas detentores da verdade a jogarem xadrez na cabeça das pessoas com o seio da mãe e o pénis do pai, e o seio do pai e o pénis da mãe, e o seio do pénis e a mãe do pai, e o peio do seis e o pãe do mai, ria dos que curam homossexuais com diapositivos de rapazes nus e descargas eléctricas, dos que tratam o receio das aranhas com aranhas de arame parecidas com insectos de carnaval, dos que se juntam em círculo para dissertar sobre a angústia e cujas mãos tremem como folhas de olaia, brandidas pela zanga do vento. Ria-me de pensar que éramos os modernos, os sofisticados polícias de agora, e também um pouco os padres, os confessores, o Santo Ofício de agora, ria-me de pensar nos oleosos psiquiatras obesos que impingiam sessões musicais aos seus pacientes em nome de técnicas obscuras, dos barrigudos, desonestos, assexuados psiquiatras obesos, dos budas repelentes seguidos de uma corte de feios discípulos extasiados, de barbicha de bode e de cabelo sujo, segregando-se na orelha inanidades convictas.
Depois do 25 de Abril, por exemplo, tornámo-nos todos democratas. Não nos tornámos democratas por acreditarmos na democracia, por odiarmos a guerra colonial, a polícia política, a censura, a simples proibição de raciocinar: tornámo-nos democratas por medo, medo dos doentes, do pessoal menor, dos enfermeiros, medo do nosso estatuto de carrascos, e até ao fim da revolução, até 76, fomos indefectíveis democratas, fomos socialistas, diminuímos o tempo de espera nas consultas, chegámos a horas, conversámos atenciosamente com as famílias, preocupámo-nos com os internados, protestámos contra a alimentação, os percevejos, a humidade, os sanitários, a falta de higiene. Fomos democratas, Joana, por cobardia, pensou ele vendo um bando de rolas poisar num olival, agitar a tranquilidade do olival com o reboliço do seu voo, tínhamos pânico de que nos acusassem comos os pides, nos prendessem, nos apontassem na rua, pusessem os nossos nomes no jornal. E demorámos a entender que mesmo em 74, em 75, em 76, as pessoas continuavam a respeitar-nos como respeitam os abades nas aldeias, continuam a ver em nós o único auxílio possível contra a solidão. E sossegámos. E passámos a trazer dobrados no sovaco jornais de direita. E sorríamos de sarcasmo ao escutar a palavra socialismo, a palavra democracia, a palavra povo. Sorríamos de sarcasmo, Joana, porque haviam abolido a guilhotina.
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António Lobo Antunes em
Conhecimento do Inferno, pág 99 -- 101
edição Vega

