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Que os indiferentes ou os meus inimigos sejam moços, belos, ricos, que me importa? Mas que aqueles que vivem comigo sejam mais felizes do que eu, tenham mais talento, calquem a minha vaidade a todos os minutos e me venham contar, para eu me alegrar, os estúpidos!, como são felizes, enraivece-me e faz-me sofrer. Quem eu odeio são os meus amigos -- se triunfam...
E isto obriga-me a pensar nos desgraçados e nos grotescos, na dor dos impotentes, na miséria dos que têm de ser nulos toda a vida; neste roer de inveja, que enche de rugas, que entorna fel na alma e faz das noites um monologar contínuo, cortado de ilusões e de quedas, e da vida um desespero. Que livro, o livro dum incompleto, que narrasse a sua ambição e os seus ódios, que estatelasse com orgulho a sua alma, para que os outros se rissem da sua impotência! Revoltante e humano, surpreenderia pelos encantos inéditos de alma, se dissesse toda a amargura reles, mas que faz sofrer e despedaça muito mais do que as grandes desgraças, que na sua grandeza têm quase uma compensação, e que não deixam para toda a vida os vestígios saburrentos destas misérias irritantes. Esse esguiço de lama daria talvez a sensação de riso e arrepio dum clown enforcado num ramo de azinheiro, em sítio ermo e bravio...
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Raul Brandão em A morte do palhaço, página 70
edição Livros RTP
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