sábado, 14 de março de 2015

Azul!, afinal o Jesus é azul!

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«Azul -- diz o jovem padre com a maior das sinceridades. -- Tudo hoje indica, minha filha, que Nosso Senhor Jesus Cristo era azul, um azul belíssimo, como o azul do céu.»
A jovem, do outro lado do confessionário, mergulha no silêncio. Um silêncio de angústia e reflexão. E diz logo a seguir: «Mas como é que pode ser, padre? As pessoas não são azuis. Não há no mundo pessoas azuis.»
O espanto da jovem só pode ser igualado pela perplexidade do padre... porque nunca se poderia supor que ela fosse reagir assim... O bispo tinha dito: «Problemas que os recém-convertidos colocam... quando fazem perguntas sobre a cor são geralmente recém-convertidos... é importante estender uma ponte, meu filho... Lembra-te de que Deus é amor (tinha dito o bispo) e o deus hindu do amor, Krishna, é sempre pintado com a pele azul; será uma espécie de ponte entre as crenças; é preciso um certo tacto, compreendes; além do mais, o azul é a modos que uma cor neutra, o que evita problemas de cores, o ideal é não falar de branco e de negro. Não tenho dúvidas de que devemos optar pela cor azul.» Até os bispos erram, diz de si para si o jovem padre, embaraçado, porque a jovem não se dá por convencida e censura-o severamente através das grades do confessionário: «Como é que pode ser azul, padre, quem é que pode acreditar numa coisa dessas? O melhor era escrever ao Padre Santo de Roma, que ele diria toda a verdade; mas não é preciso ser papa para se saber que não há homens azuis!» O jovem padre fecha os olhos; respira fundo; contra-ataca: «Há os que pintam a pele de azul -- diz, hesitante. -- Os pictos; os árabes nómadas do deserto são azuis; com os benefícios da educação, minha filha, vais ver...» Mas ergue-se do confessionário um grito, uma espécie de desafio: «O quê, padre? Comparas Nosso Senhor aos selvagens do deserto? Meu Deus! Tenho de tapar os ouvidos diante de tanta confusão!»
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,página 97
"Os filhos da meia-noite"
Salman Rushdie
Edição: biblioteca Sábado

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