quinta-feira, 4 de maio de 2017

Eu começava a pensar na minha própria morte. Com quem iria eu morrer, e em que papel -- psicopata, neurasténico, criminoso foragido?

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Penso agora nas outras colisões que imaginávamos, nas mortes absurdas dos feridos, dos mutilados e dos enlouquecidos. Penso nas colisões dos psicopatas, acidentes implausíveis levados a cabo com perfídia e nojo de si mesmo, ferozes choques múltiplos arquitectados ao volante de carros roubados rolando de noite em auto-estradas no meio de empregados de escritório exaustos. Penso nas colisões absurdas de donas-de-casa neurasténicas regressando das suas consultas de venerologia, chocando com carros estacionados nas ruas dum qualquer subúrbio. Penso nas colisões de esquizofrénicos excitados, embatendo de frente em carrinhas de lavandaria avariadas em ruas de sentido único; penso em doentes maníaco-depressivos esmagados ao fazerem despropositadas inversões de marcha nos acessos a auto-estradas; penso em paranóicos azarados acelarando sem parar em direcção ao muro de tijolo no fundo dum beco sinalizado; penso em enfermeiras-chefes sádicas decapitadas nos seus automóveis virados em complexos nós rodoviários; penso em gerentes de supermercado lésbicas morrendo carbonizadas dentro da carcaça irreconhecível dos seus carros anões, sob o olhar estóico de bombeiros de meia-idade; penso em crianças autistas esmagadas em colisões com a traseira de outros veículos, os seus olhos menos feridos na morte do que em vida; penso em deficientes mentais presos dentro dum autocarro que se afunda numa vala de drenagem junto à estrada, no coração duma zona industrial.
Muito antes de Vaughan ter morrido, eu começava a pensar na minha própria morte. Com quem iria eu morrer, e em que papel -- psicopata, neurasténico, criminoso foragido? Vaughan sonhava constantemente com as mortes de pessoas famosas, inventando acidentes imaginários para elas. Em torno das mortes de James Dean e Albert Camus, Jayne Mansfield e John Kennedy, ele tecera uma teia de fantasias complexas e elaboradas. A sua imaginação era uma enorme galeria de vítimas onde figuravam actrizes de cinema, políticos, magnatas dos negócios e executivos de televisão. Vaughan seguia-os para toda a parte com a sua máquina fotográfica, observando-os através da sua lente zoom a partir do terraço do Oceanic Terminal, das varandas de quartos de hotel e dos parques de estacionamento dos estúdios cinematográficos. Para cada um deles, Vaughan concebera uma automorte óptima. Onassis e a sua mulher morreriam numa recriação do assassinato da Dealey Plaza. Quanto a Reagan, ele imaginava-o envolvido numa complexa colisão com a traseira de outro carro, sucumbindo a uma morte estilizada que era o espelho da obsessão de Vaughan pelos orgãos genitais de Reagan, só comparável à sua obsessão pelos movimentos delicados do púbis das actrizes de cinema sobre o forro de vinil dos assentos de limusinas alugadas.
Depois da sua última tentativa para matar Catherine, a minha mulher, percebi que Vaughan se alheara finalmente de tudo o que o rodeava. Neste mundo iluminado pela violência e pela tecnologia, ele estava agora a guiar para sempre a cento e sessenta à hora numa auto-estrada vazia, deixando para trás estações de serviço desertas na orla de vastos campos, esperando por um único carro vindo ao seu encontro. No seu espírito, Vaughan via o mundo inteiro a perecer num desastre de automóvel simultâneo, milhões de veículos precipitando-se uns contra os outros numa cópula definitiva, que culminaria num esguicho de esperma e refrigerante de motores.
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, páginas 35-37
"Crash"
J. G. Ballard
tradução de Paulo Faria
edição Planeta deAgostini 2002

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