sábado, 11 de novembro de 2017

Abraçar e chorar, beijos e lágrimas de perdão

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As mesmas ideias que todo o dia na rua o haviam perseguido amontovam-se-lhe agora no cérebro doente, sem lhe deixar um minuto de repouso. Reflectiu, reflectiu, e levou-lhe muito tempo a dormir.
«Se ele quis matar-me sem premeditação -- cismava --, o pensamento já lhe devia ter vindo à mente, pelo menos uma vez. Sonharia com isso nos seus dias maus?»
Respondeu a essa pergunta de maneira bastante estranha: «Sim, Pavel Pavlovich queria matá-lo, mas a ideia do assassínio nunca antes lhe acudira.» Isto é: «Pavel Pavlovich queria matar mas não sabia quem queria matar.» «Não faz sentido, mas é assim -- dizia consigo Velchaninov. -- Não foi por causa de Bagautov nem para obter a nomeação que veio a São Petersburgo, ainda que, tivesse corrido os ministérios e ido ver Bagautov; a morte deste enraiveceu-o; ele, porém, desprezava Bagautov como um insignificante. Foi por minha causa que veio a São Petersburgo e que trouxe Lisa...»
«E eu? Estava à espera que ele tentasse matar-me?» Concluiu que sim, precisamente a partir do momento em que o vira a acompanhar de carro o enterro de Bagautov. «Desde aí eu esperava qualquer coisa, mas sem saber que era isto; não esperava com certeza que ele me degolasse!»
«Será possível -- exclamou erguendo bruscamente a cabeça da almofada e abrindo os olhos -- que fosse sincero quando me declarava ontem a sua amizade, de queixo a tremer e mãos no peito?»
«Sim, era sincero -- deduziu levando mais longe a sua análise. Esse Quasimodo de T.... era bastante generoso e estúpido para se enamorar do amante da mulher cuja conduta, durante vinte anos, acreditara irrepreensível. Pelo espaço de nove anos respeitou-me e venerou a minha memória, guardando consigo as minhas «expressões». Deus meu! E eu que não suspeitava de nada! Ontem, ele não mentiu. Mas estimar-me-ia ao afirmar essa estima e ao dizer: «Saldemos as nossas contas?» Sim, estimava-me odiando, que é o amor mais forte...»
«Foi pois assim. Em T... produzi-lhe uma impressão verdadeiramente formidável e «benéfica». Não podia acontecer de outro modo com este Schiller desdobrado em Quasimodo. Julgou-me cem vezes maior do que aquilo que sou porque o impressionei na sua solidão filosófica... Seria curioso saber o que ao certo o impressionou. Talvez as minhas luvas claras ou a maneira de as calçar? Os Quasimodos apreciam muito a estética! As luvas são o bastante para certas almas muito generosas, sobretudo para os «eternos maridos». Quanto ao resto, exageram e batem-se por nós se for preciso. E como ele avalia os meus meios de sedução! Talves esses meios de sedução o conquistassem. E a sua exclamação de outro dia: «Se aquele foi também, em quem posso acreditar?» Depois de um tal desabafo, tornou-se selvagem...»
«Hum! Veio aqui para me abraçar e chorar, como ele próprio se exprimiu tão vilmente; o que quer dizer que veio a São Petersburgo para me cortar a garganta, embora julgasse que não era senão para me abraçar e chorar... E trouxe a Lisa. Se eu chorasse com ele talvez me perdoasse, porque ele desejava furiosamente perdoar!... E tudo, desde o primeiro encontro, resultou em esgares de bêbado, em gestos grotescos, em lamentos de mulher ofendida (e os cornos, os cornos de que se gabou?) Foi por isso que apareceu embriagado, para poder despejar o que ocultava na consciência. Se não estivesse bêbado, não ousaria falar... Muito ele gosta de caretas e de palhaçadas! E qual não foi a sua alegria quando por fim conseguiu que eu o beijasse! Não sabia ainda, no entanto, como tudo terminaria, se por beijos, se por facadas. Finalmente achou que o melhor seria beijar e matar. A solução mais natural. Sim, a vida não ama os monstros e desembaraça-se deles por meio de soluções naturais. O mais monstruoso dos monstros é o que tem sentimentos nobres. Sei-o por experiência, Pavel Pavlovich! A natureza não é mãe para os monstros, mas madrasta. A natureza produz um monstro, e em vez de ter pena dele, condena-o. E assim deve ser. Beijos e lágrimas de perdão não convêm sequer às pessoas honestas, na época em que vivemos, quanto mais a nós, Pavel Pavlovich!»
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, páginas 167-169

Dostoievski
em 'O eterno marido'
Edição Livros Unibolso
Tradução de Maria Ondina

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