sábado, 23 de dezembro de 2017

Então Guma começa a chorar e ele mesmo não sabe se é por ter encontrado sua mãe, se é por ter perdido a mulher que esperava.

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Por volta das nove horas Guma chegou com o saveiro, que era o Valente. Parou no pequeno cais, botou as mãos em torno da boca e gritou:
-- Tio! Ó tio!...
-- Já vou lá...
Guma ouviu as vozes que se aproximavam. Alguém vinha com seu tio, um desconhecido, porque ele conhecia as vozes de longe. Mestre Manuel gritou do seu saveiro:
-- Vem visita pra você, menino.
Quem seria que vinha com seu tio? Era uma mulher, pela voz. Seria que seu tio trazia uma mulher para dormir com ele? Já há algum tempo Francisco e outros homens do cais haviam começado com indirectas, negócios de mulher, e o tio ameaçava trazer uma para deixar com ele sozinha no saveiro no meio do mar...
-- Só quero ver o que você vai fazer, sua besta...
Os homens todos riam em gargalhadas, piscavam os olhos uns para os outros.
-- Já tá um homem o Guma -- dizia Antonico, mestre do Fé em Deus, que parecia não saber dizer outra coisa.
-- Precisa provar -- e Raimundo batia as mãos uma na outra, rindo interminavelmente. -- Meu Jacques já comeu da fruta...
Guma sabia que se tratava de dormir com uma mulher, de satisfazer aqueles desejos que o penetravam nos sonhos e o deixavam como se houvesse tomado uma surra. Muitas vezes nas cidadezinhas onde paravam ele passara naquelas rua das mulheres-damas, porém sempre lhe faltara coragem para entrar. Ninguém lhe daria menos de quinze anos, apesar de ele só ter onze. Por esse lado não tinha o que temer. Mas um receio de não sei o quê, o impedia de entrar. Tinha certeza que ficaria morto de vergonha quando a mulher visse que era a primeira vez. E tinha medo que a mulher não o aceitasse, o tratasse como uma criança, um filho sem pai que se perdeu na rua. Ela não iria adivinhar que ele já conduzia um saveiro e levantava um saco de farinha. Talvez se risse dele. E nunca entrou. Agora seu tio trazia a mulher prometida. Ele ia ficar encabulado diante dela. Com certeza Francisco já dissera que ele nunca conhecera mulher, que era uma besta, um medroso, apesar da faca no cinto. ele ficaria sem jeito diante da mulher. E se o tio quisesse assistir, só para rir, para gozar o mal ajeitado dele, então ele iria embora, fugiria do cais com vergonha, não navegaria mais naquelas águas. E é com verdadeiro pavor que Guma ouve as vozes que se aproximam. Seu corpo treme, e no entanto ele deseja que venham mais depressa porque ele quer ser homem quanto antes e atravessar sozinho com o Valente todos os rios, todos os portos, todos os canais.
As vozes se aproximam. É uma mulher, sim. Seu tio vem cumprir a promessa. Sem dúvida já anda envergonhado do sobrinho que ainda não é homem, que não conhece mulher. E como Guma não tem coragem de entrar na casa de uma delas, o tio vem trazer como se leva comida para cego, como se dá água na boca de um aleijado. É bem uma humilhação, mas ele não quer pensar nisso agora. Pensa que em breve terá a seu lado um corpo de mulher, um corpo que sabe todos o segredos. Pedirá ao tio que vá embora, que o deixe só com ela, e levará o saveiro para o meio da baía. Do forte velho ou de outro saveiro virá uma música. Ele amará, sentirá o mistério de tudo, e então poderá levar sozinho o seu saveiro pelas terras do Recôncavo, poderá, quando seu dia chegar, ver sem susto o rosto de Iemanjá e poderá amá-la porque já aprendeu aqueles segredos em que os homens tanto falam. Por isso está até com frio, se bem que a noite seja morna e o vento que passa esteja quente, uma brisa que quase nem balança o saveiro. A verdade é que tem medo. As vozes estão cada vez mais próximas. Ele já ouve o que conversam:
-- É ainda um menino, mas já tem cara de homem feito...
É seu tio quem fala. Naturalmente a mulher pergunta como ele é. Quer saber como o há-de tratar. Mas ele mostrará que é um homem forte, a apertará até que ela chore, até que diga que ele é mesmo igual a um homem dos que ela conheceu na sua vida. Agora, ouve a voz da mulher:
-- Quero que seja um homem bonito e valente...
O coração de Guma se enche de felicidade. ele já ama essa mulher que ainda não conhece, que seu tio traz para a sua cama (...). Ouve a voz de Francisco:
-- Guma!
-- Tou aqui...
O aveiro está bem perto do cais. (...) A mulher sorri. Guma olha os dois e o seu riso é de inteira satisfação. a mulher pergunta:
-- Você tá me conhecendo?
Ele a conhece, sim. Há muito que ele a espera. Ele a procurou nas ruas de mulheres perdidas, na beira do cais, em todas as mulheres que olharam para ele. Agora a encontrou. Ela é sua mulher. Ele a conhece de há muito, desde que os desejos penetraram seus nervos, perturbaram seus sonhos.
Francisco fala:
-- É tua mãe, Guma.
E o desejo não fugiu. Não era possível que fosse sua mãe, aquela mãe em quem ninguém nunca lhe falara, mãe em quem nunca pensara. Uma pilhéria de seu tio, com certeza. Aquela que estava ali era mulher de rua que viera para dormir com ele. Francisco não devia tê-la comparado com sua mãe, que seria boa e suave, muito longe daquelas coisas em que pensava. Mas a mulher se aproxima dele e o beija como devem beijar as mães. As mulheres da vida beijam de maneira diferente, sem dúvida. A voz da mulher é pura:
-- Te deixei há tanto tempo... Nunca mais te deixo...
Então Guma começa a chorar e ele mesmo não sabe se é por ter encontrado sua mãe, se é por ter perdido a mulher que esperava.
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, páginas 31- 34

'Mar morto'
Jorge amado
edição Círculo de Leitores

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