domingo, 29 de novembro de 2020

O reflexo imaginário tornará possível a realidade

O Capítulo minus V

Einstuerzende Neubauten: Keine schoenheit ohne gefahr


Porque será sempre difícil acreditar haver beleza sem perigo.

Existe um símbolo presente em memória desde que os gatos passaram a miar abrigados pois os lobos costumam andar à solta por alturas de Outubro na cidade vermelha. Repete-se ciclicamente de dois em dois anos. O dito amor existe em memória, é aquele que está depois da paixão física que termina quando as pessoas se cansam de cheirar o corpo alheio e decidem seguir em frente para a eternidade. Este amor está portanto escondido da realidade pela troca de álbuns que compilam reflexos fotográficos, apenas reais na altura em que a imaginação atinge o cio.

Durante os meus mais violentos acessos de humildade, que geralmente só concedo quando o meu ego se revela uma fonte inesgotável, dou seis meses para concluir uma história de amor. Sim! Quero fazer as coisas com calma. Para que a minha ela sonhada se possa tornar real. Ah Icata! A poesia é tão linda! Sim! Ah Icata, a poesia é linda mas o teu corpo não quer o meu.

Como numa profecia, Icata aparecerá, saindo da crisálida, quando acontecer o meu eclipse solar e a lua ficar sozinha sem ninguém que a ilumine. É esse perigo que deverei procurar. Alguém com quem cultivar jardins zen. Aí, já serei uma prioridade na sua vida. Para encontrar quem não procura o sol e vive na lua, eu deverei transfigurar-me de sol em lua, alterar ligeiramente a minha identidade em breves momentos para que possa aprender o momento em que poderei por fim encontrar-te e para que o meu vazio seja preenchido pela tua força, a força da ela real. Preciso que me esvaziem o escroto. Esvazia-me, vá lá. Como sei que não tens interesse nisso, então castigo-te com a caneta. Evacuo a caneta. Para sublimar resolvo escrever, como sabem dedico-me frequentemente ao abjeccionismo que me traz desencantamento mas também liberdade.

Vem-me à memória que tudo é uma questão de tempo. Quando? Poderá demorar uma hora, poderá ser um dia, um mês, seis meses. Será uma questão temporal até te ter nos meus braços. A sério? Porque não acredito que consigas resistir a ti própria e à tentação de me possuir. Eu sei que sou narciso e que penso que a minha beleza é irresistível. Sonho com a Ela que me derrube, que me faça sentir acabado e careta, seria sinal de que vivi. Por isso, agora escrevo para ti, escrevo um poema chamado Aqaaismja: 

Anseio por te ver, tenho saudades tuas, quero tocar-te, quero sentir, dar-te prazer, as responsabilidades os compromissos não permitem no entanto, aspiro o perfume, inebrias-me o cérebro, estou totalmente fora, nada mais faz sentido, minimal é a chave, não digo coisa com coisa, se calhar nunca disse, chegará o momento onde não serão precisas mais palavras. Mas faço amor contigo nos meus sonhos e poemas brancos: 

Se eu te pintasse minha linda rainha africana, em África onde? Hmm… talvez na do Sul... se eu te pintasse minha linda rainha animal, colocaria a tua alma dentro de uma gatinha, e tu sabes que não és inha, tu sabes que és ona, és cativante, estonteante, a tua cor será sempre castanho-laranja, e usarás o chapéu preto, o símbolo do amor de teu avô. És branca?, ages como uma branca quando estás no quadro de ardósia admirando as crianças de deus, essa beleza? Qual é a linguagem com que me falas nos meus sonhos verdes de lua lua? Alguma vez te falei dos verdes campos do sonho? Confessa.

Icata, começas por ser uma felina egípcia que se transformará numa esfinge e hoje és grega e tens asas, o teu chapéu é o chapéu de Sabina do Kundera, começas por ser a Sabina com quem eu vejo filmes em vídeo e falamos sobre literatura, hoje és muito bonita, tento conquistar-te com o intelecto. Sou correspondido ao nível platónico. Somos amigos sem a parte sexual, embora certamente pensemos nisso quando, por exemplo, vens e eu te mostro o que escrevo e te cozinho um esparguete com costeletas e tu te lembras dos malmequeres que te ofereci. Tento a minha sorte sexual. Repeles-me sem qualquer explicação pronunciada, dizes apenas não desapareças, e eu desapareço sem to dizer e voo sobre o oceano, venho a saber que me telefonas para casa de meus pais e envias cartas, parece que afinal eu te faço falta. Transformo-te num mistério, numa espécie de musadeusa, tento que a memória possa voltar ao tempo presente, penso que posso matar um amor antigo recorrendo a mulher não nova mas antiga, e apego-me à sensação de bem-estar que havia tido no passado. Por isso, faço agora o que me havias feito: escrevo-te cartas correspondidas, chegamos a fazer planos de viagem mas... tudo interrompido porque paralelamente sou internado aqui no CReEA, estou em depressão pós-internamento.

Mas eis que voltas a comunicar. Continuas bonita mas eu sinto que já não te acompanho, falas-me de escritores croatas e eu nada sei, não tenho novidades, não tenho coisas boas para contar, as palavras trocadas tornam-se raras. E eu acabo por ter um momento desagradável: despeitado por as tuas respostas já não serem rápidas como antigamente, escrevo-te palavras às quais respondes com firmeza. A distância de segurança que introduzes entre nós mantém-se inalterada, não há simplesmente contacto.

Tu já não respondes às cartas e eu perdi o teu número de telemóvel, pedi-te em aflição para não me esqueceres e tu já há muito que não te interessas por mim, sou carta jogada ao lixo. Nunca foste minha e eu deixei de ser trêndi. És o símbolo da Ela que me derruba por abandono ao silêncio. Mas isto te digo: se quando acordares todos os dias, de manhã, não sentires que negas os teus impulsos mas, mesmo assim, continuares à procura de um ponto limite, não te assustes. Como poderá haver limites? Porque não atingir esse limite onde provavelmente tudo se desmanchará e o jogo cairá dos céus semeando a destruição da cidade? Porque não viver sem a necessidade de encontrar o limite?, sem a necessidade do elemento Tempo nem a procura do Espaço, porque não deixar o tempo correr sem o medo de arrasar, porque não compreender que isso será uma consequência do medo de arrasar ainda mais? Que fazer? Deixar-te em paz... mas se for obrigado a desistir para deixarmos de nos encontrar... um de nós terá de se mudar para outra cidade por necessidade de ter espaço por um momento, meses ou qualquer outra unidade temporal. Eu diria mesmo nunca mais. Digo-te no entanto que um íman de nós virá inconscientemente procurar o outro. Lembrá-lo-á na memória de quando tudo parecia virgem e por descobrir, e, depois, começar a desistir. Se desistires por alguma destas razões ou qualquer outra realidade cultural, como diz Ondjaki, tu afirmas, minha Ela sonhada, que perderás e, por isso, galopante aumentará o número de dias em que acordas triste, o fogo será arrasador. Perderás porque nunca quiseste. Proponho-te, minha Ela sonhada, proponho que te decidas entre perder o teu tempo para sempre e eu te procurar para sempre. Não conseguirei mesmo falar de qualquer coisa e será necessário descobrir outras formas humanas para te esquecer.

Tão doce a inocência de um apaixonado, diz Id continuando, o amor é tétrico. Ela nunca me dará a chave do seu botão, eu gostaria de dizer sim.

O erro é pensar que Icata é uma cristalização do passado, esqueço-me que as pessoas evoluem e fazem escolhas, ela fez a escolha de me ignorar, não é a primeira mulher a fazer-me isto. Da minha parte, não pretendo pedir mais desculpas a pessoas que já não querem mais a minha presença. Chego à conclusão que não preciso mais de mendigar carinho ou atenção. Todos me ignoram, sou apenas um número a quem dizem: olha a geleia, é feita de amoras. Vou dormir, que o dilúvio venha e me desentupa a merda na canalização cerebral.

Hmm... amanhã será um novo dia.

Agora, na verdade estou na cozinha dos meus pais em Triza com este quadro na memória.

A minha mamã, que repara no meu olhar ausente, diz: olha filhinho, não te posso arranjar uma moça, olha... vou-te oferecer uma pequena caixa de Pandora com chave e cadeado para tu guardares o teu livro. Deste modo, não precisas mais de saltar a fogueira de S. João enquanto os balões sobem na atmosfera e tu deixas a disquete cair.

O meu papá adiciona: bem filho, eu digo-te filho, existem uma data de agências matrimoniais filho, podes obter um contrato de três anos lá filho, filho...

Respondo estúpido e inocente tal e qual o Bart Simpson dentro da tevê de plástico PH: eh... na verdade, prefiro procurar uma agência funerária e pensar na cor do caixão, depois, receber o telefonema de confirmação de emprego com um copo de vinho na mão.

As minhas irmãs riem-se. Nasceram na estrela sortuda enquanto eu sou o desajustado guna, o bode negro.


Sem comentários:

Enviar um comentário