sábado, 18 de dezembro de 2021

As camisas de dormir

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19h 38min

Acabo de jantar, tomei café de cápsula e quero escrever mas, hoje e agora, não tenho tempo, tenho de sair daqui a pouco para trabalhar, tenho de escrever um pouco sobre a cega dona A, ela não o será de nascença, terá cegado por causa dos diabetes, a cega vai-se embora, o quarto que lhe está prometido noutro lado fica vago no fim do mês, ela ameaçava sempre que se iria embora mas chegava ao início de um novo mês e renovava a mensalidade, desta feita, há três dias, o patrão da casa, senhor Ja, depois de eu entrar ao serviço, disse-nos para o acompanharmos e bateu à porta da dona A, disse-lhe e nós ouvimos: 
-- Dona A, os meus funcionários recusam-se a ajudá-la mais, a senhora tem-nos acusado injustamente, tem incomodado os outros hóspedes com a sua voz alta, tem feito queixa de nós à vizinhança... por isso, peço-lhe que a partir de amanhã procure um novo sítio para ficar e a gente devolve-lhe o dinheiro que já pagou.
-- Não posso sair amanhã, a senhora que me prometeu quarto diz que só depois do fim do ano, e não é verdade que eu tenha falado mal ontem: só queria que me tivessem ligado a televisão!

Aqui, precisaria do tempo, que agora não tenho porque tenho de sair e caminhar para a paragem do autocarro, para explicar como se chegou a uma expulsão a prazo e por mútuo acordo: 
Numa manhã, às seis horas fui acordá-la como habitualmente batendo-lhe à porta, ela respondeu-me num tom de voz agressivo, talvez tivesse dormido mal, pensei. Às oito na hora de lhe aquecer o leite com cevada, ela reclamou que estava frio e recusou que eu lho fosse reaquecer, disse que o ia deitar fora, recusou que eu lhe guardasse no esconderijo a cevada e disse-me para eu lha dar para a mão, ela própria a guardaria, depois repararei que ela nos estava a acusar de lhe termos roubado as camisas de dormir.
-- As camisas de dormir... ó dona A, quem lhe quereria as camisas de dormir?
Para ela foi o limite, já se havia queixado que lhe roubaram um casaco, e que lhe tentaram arrombar o cadeado de um saco, outras vezes queixava-se da falta de limpeza e pedia-me para eu lhe pôr lixívia na sanita, e se do saco se pode dizer que estava super cheio e que se estragara devido ao modo como nele pegam... do casaco nem sinal, nunca se soube se não seria um que ela lá tinha e estava a inventar um casaco roubado ou se ele estaria perdido num esconderijo qualquer, ninguém lhe quereria nem o casaco nem as camisas de dormir.
Contei o que se passou à senhora Ai quando ela chegou para me substituir, ela disse que a dona A teria de se ir embora, que já nenhuma pensão a aceitava. Fui para casa descansar e voltei à noite, fui ao seu quarto ver se ela precisava de alguma coisa, ela berrou Não, que tinha comido a sopa fria, berrou para que eu lhe apanhasse a roupa da corda e lha pusesse na janela. Como passava um hóspede no corredor, eu deixei-a a berrar sozinha, fechei-lhe a porta na cara e fui apanhar-lhe a roupa, ela queria como muitas vezes a porta aberta e ficou ainda mais fula, eu voltei com a roupa seca para lha entregar e ela não me abriu a porta, vingou-se e mandou-me colocar a roupa na janela do seu quarto que dá para as traseiras onde a roupa seca, sempre aos berros, aqui eu não disse nada, fiz o que ela mandou mas fiquei a pensar que ela é má, que não pode berrar aos funcionários nem aos outros hóspedes, que ela está a retaliar, a abusar da confiança que lhe dou: não a ajudo mais nem que esteja a morrer!, pensei. Voltei ao pouco serviço, terminado este sentei-me no sofá a ouvir rádio. 
Por volta da meia-noite, comecei a ouvi-la de novo aos berros, decidi ignorar mas o sr. Ju ligou para a recepção dizendo: sr. Ru, cale-me esta mulher. Obrigou-me a tomar uma atitude e eu fui calá-la, como estava fodido com ela, primeiro ameacei chamar o patrão e ela disse que ia fazer queixa na polícia, depois disse que ela não deixava os outros hóspedes dormir e ela disse que eu só dormia, até que só resultou à bruta: berrar mais alto que ela, sem a insultar calei-a, mas senti-me mal porque fui obrigado a ser autoritário.
( Depois continuo...)

21h 27min

Já estou ao serviço, estou sentado no novo sofá de descanso, hoje nada tenho para fazer além de eventualmente receber novos hóspedes, com a covid a casa está quase vazia, por isso tenho tempo para terminar o texto, ia no ponto em que recorri ao grito para calar a cega, ela dizia que o W é que era bom para ela e eu berrava o mantra: a senhora pode falar mais baixo!, ela dizia que eu dormia e eu repetia o mantra, ela abria a boca e eu berrava o mantra, até que ela desistiu e calou-se e deixou a casa em paz.
De manhã quando o chefe chegou para verificar as contas eu disse o que se havia passado, que não ajudaria mais a cega, que lhe havia dito: eu não sou seu criado.
-- O senhor disse isso? Fez muito bem, diga tudo à minha filha quando ela chegar. Foi o que fiz, ela falou que o W roubava o patrão, que a dona A teria que ir embora de vez, eu disse antes de sair do trabalho: a dona A é mal-agradecida, mal-educada e mentirosa.
À noite, o patrão foi ao quarto dela e falou-lhe, disse que ela tinha de sair, ela disse sim e defendeu-se dizendo que só bebe uma garrafa por noite, lá lhe chamaram à atenção sobre o efeito do vinho, ela disse que só tinha querido que lhe ligassem a televisão. 
Passaram-se três noites e não me senti muito bem comigo próprio, até comentei com o sr Ju que saio à minha mãe quando quero ajudar alguém mas que saio ao meu pai quando me zango. Não a ajudei mais, as minhas colegas de trabalho do turno do dia começaram a fazer alguma coisa mais pela cega e a não deixar tudo para à noite eu fazer, o patrão ia-me falando que era uma obra de caridade eu ajudá-la, até que ontem, a cega chama por mim às onze da noite.
Sem nada para fazer e para ela deixar os hóspedes descansar, fui ter com ela e ver o que ela queria. Ela estava a pedir para lhe ligar a televisão, falou baixinho, depois pediu que eu a voltasse a acordar de manhã e lhe levasse o leite e a levasse à rua pois ela tinha uma consulta. Lá fiz tudo isso, hoje até lhe fiz uma visita guiada: agora está a passar no coberto onde se põe a roupa quando chove, agora está a passar à frente da sua janela, a sua roupa fica sempre em frente da sua janela, o portão é agora, cuidado com o degrau, chegamos ao passeio, eu entrego os taparuéres, logo à noite voltarei para ver se precisa de alguma coisa.
Hoje à noite, disse à colega que eu substituo à noite: voltei a ajudar a ceguinha, ela falou de modo educado. Ao chefe e patrão sr Já disse: eu estava com um pouco de remorso. Ele respondeu: ela é mazinha, ela vai até onde a deixarem ir, não deixe que ela abuse.
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Claudio Mur

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