domingo, 29 de outubro de 2023

O Holocausto ''invisível''

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Sob domínio Nazi, todos aqueles que pudessem constituir uma ameaça à ordem do Estado alemão viram então o seu destino reservado a um fim de extermínio, numa ''maquinaria'' estatal excepcionalmente oleada e organizada para esta finalidade, retirando o máximo de eficácia e de rendimento do trabalho, das posses e da vida das pessoas, antes da sua morte. Se, para a ''questão judaica'', o nazismo tinha um plano concreto, para a ''questão cigana'', não havia algum em específico, mas apenas a ''necessidade'' ideológica de os eliminar. Foram visados somente no enquadramento das Leis de Nuremberga, em 1935, que englobavam as Leis para a Protecção do Sangue e Honra Alemães e a Lei da Cidadania do Reich, onde, entre outros decretos racistas, tornaram ofensa-crime o casamento e a união sexual entre pessoas ciganas e não-ciganas.

Tratou-se, nesta medida, de um genocídio tão organizado quanto desorganizado. Decorreu em diferentes intensidades e velocidades de acordo com as decisões das regiões e dos países ocupados. Por exemplo, algumas regiões dependiam da sobre-exploração da mão de obra cigana para a produção agrícola e não estavam dispostas a abrir mão da sua ''mais-valia''. Para além disto, inicialmente, não havia uma distinção racial concreta ou coerente dos vários grupos ciganos, pois, apesar de alguns já serem oficialmente considerados alemães arianos por parte do Estado, por já se encontrarem no país já há alguns séculos e não casarem com grupos exteriores, estes acabavam por sofrer o mesmo destino do que os restantes grupos, já que se encontravam à mercê das decisões das chefias locais das várias polícias que os capturavam. Ainda assim, apesar desta aparente desorganização, havia campos de concentração reservados apenas aos ciganos ou campos que incluíam secções dentre dos mesmos para as famílias, como o caso do ''Campo Cigano'' do campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau II. Após ordem de Heinrich Himmler, a partir de 16 de Dezembro de 1942, foi para este campo que todos os ciganos capturados ou detidos nos vários campos de concentração dos países ocupados, passaram a ser deportados para serem exterminados.

A escala e a dimensão dos campos de concentração eram grotescamente impressionantes e constituíam autênticas fábricas de morte. A título de ilustração desta magnitude -- a dado momento, para os Nazis, o problema não residia na forma em como poderiam exterminar milhões de pessoas em pouco tempo, mas em como lidar com os seus corpos. Apesar dos fuzilamentos ou dos assassinatos em massa por envenenamento com o fumo de tubos de escape para veículos (muitas vezes ainda antes de serem deportados para os campos) e do contínuo funcionamento das câmeras de gás e dos crematórios, as mortes mais comuns nos campos ciganos deviam-se à subnutrição e às doenças. Eram miseráveis as condições das pessoas nas barracas ou casernas onde se acumulavam centenas, dormindo nuas ou com um tecido apenas, sujeitas ao frio e à chuva. A este tratamento bárbaro, acrescenta-se a esterilização em massa de dezenas de milhares de mulheres e homens, assim como a realização de experiências com crianças gémeas e testes de estirilização através da ingestão forçada de água salgada ou da redução da sua temperatura corporal.

Mas ao longo de todo este massacre houve sempre uma forte resistência e resiliência por parte dos ciganos. Muitos daqueles que se encontravam em países ocupados, fugiram e migraram em massa para outros países e muitos outros juntaram-se a movimentos de resistência. O dia 16 de Maio de 1944 é o maior exemplo da sua resiliência. Conhecido como ''O Dia da Resistência Roma'', este dia ficou marcado pelo esforço heróico das famílias que se encontravam no ''Campo Cigano'' em Auschwitz-Birkenau II, ao obrigarem as SS a suspenderem a operação de desmantelamento e de liquidação do campo. Uns dias antes, alguns teriam ouvido rumores acerca da data da operação das SS e da sua finalidade e espalharam a notícia entre si. Assim, os seis mil que se encontravam no campo preveniram-se, ignorando as ordens para saírem das casernas e barricando-se nelas, munidos de todo o tipo de ferramentas, enxadas, talheres, pregos e instrumentos para se defenderem dos agentes armados com metralhadoras. A resistência foi tão forte que as SS foram forçadas a recuar e a abandonar o ''Campo Cigano'' durante três meses. Durante este período, no entanto, foi-lhes negado qualquer tipo de alimento.

Assim, durante a noite de 2 de Agosto do mesmo ano, conhecida como ''A Noite dos Ciganos'' ou como Samudaripen, genocídio em romanô, a operação foi restabelecida e o campo foi desmantelado com o esmagamento total da resistência. Nessa mesma noite, um total de 2986 pessoas foram enviadas para as câmeras de gás e incineradas num dos crematórios e numa vala junto ao seu exterior, devido ao seu elevado número. Apenas poucas centenas foram poupadas por ainda se encontrarem aptas para o trabalho.

Durante todo este período do Holocausto, dos quarenta mil ciganos registados na Alemanha e na Áustria, vinte cinco mil foram assassinados. Não é certo o número total de ciganos executados ao longo destes anos, pois muitos nunca chegaram a ser identificados ou registados aquando da sua entrada nos campos de concentração e a maioria foi executada ainda antes de chegar aos campos. No entanto, estima-se que o número se encontre entre meio milhão e um milhão de pessoas.

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página 28 - 32

em «Conhece-me antes de me odiares, Notas sobre a História e Cultura Cigana»

de Bruno Gonçalves

edição Ribaltambição -- Associação para a Igualdade de Género nas Comunidades Ciganas, Junho de 2023


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