quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Fiufiu é um escovinha

 Periodicamente no seu dia de descanso, Rogério costuma ir tomar café com um canário (como diria Jorge Fallorca) no fim do almoço familiar. Enquanto o canário Fiufiu conduz, Rogério comenta:

-- Gostei do frango assado do mercadona, é melhor que o churrasco do grelhador. O do grelhador é assado na brasa e fica muito torrado quase negro e seco; o do mercadona também é assado na hora mas num espeto e depois colocado em embalagens. Hoje, a minha irmã foi lá e trouxe, olha!, tostado como se fosse assado no forno, gostei.

Mas Fiufiu estava mais interessado em conversas existenciais, dizia ele:

-- Afinal, não vou comprar a mota, era um bom objectivo para ter na vida, mas iam ser sete anos a pagar o crédito, cem euros todos os meses e depois dois mil e tal euros só de juros... e eu tenho já uma moto.

-- E não era só isso, o acordo com a tua mãe incluía deixar de fumar, ias privar-te de um prazer...

-- Ó, até que não era mau e deixar de beber também, limitar-me à meia caneca, que até dá quatro copos, tenho de deixar-me disso, ainda esta semana no escritório, menu completo por sete euros mas depois vi um doce no mostrador, nem sei que era, nem sei ao que sabia, era gelado, nem sei quanto custava, mas comi dois, tinha vinte euros na carteira, não quis saber, soube-me pela vida. 

-- Iá.

-- Mas não é isso o que eu te ia contar, é daqueles casos em que me lembrei de ti Rogério e do teu caso com o Manco e os vinte euros que ele não te pagou. quando eu lhe falei disso, o Manco respondeu: Já que tenho a fama fico com o proveito. E eu pergunto-te como conseguiste lidar tão bem com isso, porque olha lá no escritório um tipo veio falar-me que a companhia de electricidade lhe havia reduzido unilateralmente a potência contratada de energia e que ele nem sequer reclamou com eles porque tem duas facturas em atraso e está com medo de lhe cortarem a luz. Eu devia ter feito como todos, ouvir o caso, dar uma, duas palmadinhas nas costas, um afago no ombro, pôr um sorriso a iludir esperança e dizer: Vá lá, tu vais conseguir o dinheiro para pagar a luz... Mas não, eu disse-lhe: Dá cá as facturas, vou ver o que posso fazer. E assim, eu trouxe as facturas, fui ao multibanco e paguei-lhe os oitenta euros, no dia seguinte entreguei-lhas pagas e combinamos ele pagar esta sexta e nada, fui comido, quis ajudar e fui comido, é certo que ele não me pediu nada, como conseguiste tu com o Manco ficar tão calmo?

-- Bem, no meu caso com o Manco, foram só vinte euros, não fiquei pobre, foi menos um disco que eu comprei, e ele deixou-me em casa uns discos dele, na maioria merda mas um fixe do Nelson Ned, e ainda umas cápsulas de café e eu nada tinha pedido, e depois não tenho que ver o Manco todos os dias, não tenho de levar com ele e as merdas dele, por isso, olha, foi ela por ela.

-- Tou a ver, o problema é que o gajo é o meu chefe, e está-se bem, é um gajo fixe e tudo, não há problemas no trabalho com ele, só que isto, entrou no escritório e nem uma palavra, nada de quando vai pagar.

-- Ah... emprestaste dinheiro ao teu chefe que até ganha mais do que tu.

-- Eu devia era vender a dívida a um ressacado da Pasteleira, e depois ele ia-lhe bater à porta de casa, mas era muito estrondo...

Aqui Rogério começa a ficar cauteloso com o que diz, Fiufiu tem conhecimentos do submundo, aliás Fiufiu é uma espécie de broeiro que quer ser rico mas não estudou para isso, tem apenas o sétimo ano, na ânsia de ser rico mata-se a trabalhar, mas depois zanga-se que o Estado lhe cobra quase a totalidade das horas extraordinárias. Fiufiu é um iludido do capitalismo, ele quer subir porque vê os outros subir e não consegue ver que não sobe porque não tem capacidade pessoal de subir, é vê-lo como se comporta na fila para pagar o café, abre tantos os braços que Rogério fica com medo que alguém leve uma cotovelada, fala tão sem filtro e tão alto que parece um bandido. Por isso, Rogério diz apenas:

-- Não te metas nisso.

-- Não, mas é o que ele merecia, eu até já tenho o dinheiro, a minha mãe para me calar deu-me o dinheiro.

No final do café e de volta a casa, Rogério grafitou no seu caderno: Fiufiu é um escovinha.


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