segunda-feira, 16 de setembro de 2024

Pega num sininho e tilinta, pergunta: ouve assim? e assim?

 Lembro-me como se fosse hoje. Em 2014 começei a ouvir mal, um amigo disse: metes umas gotas e a cera puf!, mas eu quis ouvir a opinião de um especialista e fui ao médico, ou melhor, fui à urgência do hospital Santo António, esperei a minha vez, queixei-me e na triagem mandaram-me seguir para o consultório do otórrino, sentei-me no sofá à espera que o otorrino chamasse. Meia-hora depois, vejo passar uma bata branca e entrar na sala do otorrino e depois outra. Dez minutos mais tarde, chamam-me e eu entro e vejo que a bata branca que entrara era a otorrina que se tinha ausentado e agora está sentada na secretária em frente ao computador, a segunda bata branca diz-me para ir para um banco onde me vê a cera dos ouvidos e pega num sininho e tilinta, pergunta: ouve assim? e assim?, está bem, pode-se levantar. Saio do consultório hospitalar sem ouvir mas a médica nada fez nem a assistente dela. 

Resolvi a minha surdez quase dez anos depois quando resolvi ir ao centro de enfermagem local à minha residência actual. O enfermeiro viu que eu tinha cera, receitou-me umas gotas para colocar durante cinco dias e marcou consulta para a semana seguinte, quando me lavou o ouvido e tirou uma pedra de cera enorme do ouvido direito, tão grande que passei a ouvir em stereo e as vozes pareciam amplificadas. Paguei oito euros pelo serviço. No Santo António não paguei nada mas também não me puseram ouvir.

A médica e a assistente no hospital santo antónio não lavam orelhas e às vezes nem sequer estão no consultório. Mas o meu pai que tem cartão de saúde já foi ao hospital da trofa ter as orelhas lavadas por um médico.

Há aqui alguma coisa que não bate certo.

Hoje a minha mãe tinha uma consulta de diabetes no centro de saúde com a médica de família, a minha mãe já teve um avc e vários mini avcs que só foram posteriormente detectados e é crónica, toma medicação mas ainda não precisa de insulina, ultimamente tem tido os níveis de diabetes muito baixos e talvez fosse preciso rever a medicação. Mas isso não aconteceu porque a enfermeira não estava de serviço e a médica não pode fazer a picada no dedo para lhe medir os diabetes e eventualmente ajustar a medicação, então a minha mãe perdeu o seu tempo e ficou na mesma. 

E eu pergunto: se o meu pai não é médico nem enfermeiro e lhe pode medir os diabetes em casa, a médica não o pode fazer? Não é da sua competência? É da competência do enfermeiro? E se a mesma médica prestar serviço num hospital privado já se pode dar ao trabalho de medir os diabetes à minha mãe?


É claro que haverá certamente uma conferência de imprensa onde serão apontados responsáveis, demitidos e anunciado um inquérito de averiguações com resultados previstos para um século que há-de vir. Temo é que a minha mãe já lá não chegue.

FILHOS DA PUTA!



quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O escravo voluntário diz: este trabalho caiu do céu

 

Segunda noite de folga hoje. significa que completei duas semanas de trabalho. Está a correr bem. Sinto-me adaptado às tarefas e às colegas. Além de mim e o chefe-patrão só tenho colegas mulheres. Logo não há invejas nem competição destrutiva. Todos nos ajudamos uns aos outros. dizem-me que trabalho muitas horas por um salário pequeno mas eu não acho que seja um mau emprego. E se trabalhar para um patrão nos coloca na situação de escravo, eu, neste momento considero-me um escravo voluntário. Porque há dez anos que não tinha um patrão e um salário todos os meses, porque gosto deste trabalho e é totalmente diferente de tudo o resto que já fiz. Há dez anos seria incapaz de o executar porque exige boa aparência, calma nas palavras e sorriso para com quem falamos.

Afinal: entro às nove da noite recebendo as indicações do trabalho para a noite. A minha principal função é receber os novos hóspedes, registá-los no checkin e encaminhá-los para um quarto dando-lhes dormida por uma ou várias noites, a troco de um valor acrescido da taxa turística que segue para o município. Esta é a minha principal função: ser recepcionista de hotel, hostel, residencial, pensão blablabla mas... se fosse só esta as minhas tarefas, seria tudo uma grande seca e o tempo de permanência no local de trabalho demoraria a passar. Por isso, tenho outras tarefas e consistem em ajudar a completar o trabalho das minhas colegas do turno de dia: levantar lençóis das camas e toalhas dos quartos de banho e pôr a lavar a sessenta graus na máquina, depois estender na corda se der tempo de ela secar durante a noite ou então pôr a secar na máquina no programa Algodão. A seguir, dobrar e arrumar no armário. Esta é outra tarefa: tratar da roupa de quarto durante a noite para que de manhã seja só preciso a colega passar a ferro tendo já a roupa preparada. Outra tarefa está relacionada com a alimentação dos hóspedes, alguns pedem pequeno-almoço e eu tenho de levantar a louça lavada e arrumá-la, preparar as mesas para o pequeno-almoço que às vezes ainda cai no meu horário visto ser entre as sete e trinta até às dez da manhã, chego ainda a serví-lo. Aí, tenho de aquecer leite, torrar pão, descongelar as manteigas, preparar os pratos de queijo e fiambre.

Há dias, serví-o a um senhor trabalhador das obras às sete da manhã, recordo: meia-de-leite clarinha, um pão com queijo e fiambre e um copo com água para tomar a medicação. Frugal, não é?, sim, porque são reservas de preço económico. Mas para hóspedes de reservas online é diferente: para cada pessoa vai para a mesa um croissant, dois pães, quatro fatias de queijo e quatro de fiambre, meias-de-leite ou café solo, ainda chá se for pedido e se houver ninos a desayunar, o chefe às seis da manhã compra para eles um bolinho quentinho acabado de sair do forno da pastelaria e eu orgulhoso da casa direi em portunhol: esto és por la ninha.

Dito isto, este é o meu serviço. Termina quando a dona-chefa chega às nove da manhã e eu acabei de ir despejar o lixo e lhe passo as contas da caixa que o chefe-patrão conferiu comigo duas horas antes.

Ao fim de duas semanas de trabalho, reparo que termino as tarefas por volta da meia-noite ou uma e que até quase às seis da manhã posso repousar ou mesmo dormir. Claro que não é um sono dos justos pois não descanso numa cama e estou sempre atento ou sou acordado pela campainha tocada por um hóspede ou um potencial novo hóspede. Outras vezes, é o telefone que toca. É por isso um sonus interruptus em que acordo estremunhado do sofá às vezes a pensar se fiz isto ou aquilo bem. Mas o certo é que descanso durante as doze horas de trabalho quase quatro horas, e quase que não durmo ou tenho dificuldade em dormir quando chego de manhã a casa.

Logo, consigo ganhar dinheiro aproveitando a noite, descanso um pouco durante a noite e de manhã e, depois do almoço, ainda tenho tempo de continuar com a minha pintura e o que mais houver. Este trabalho caiu do céu.

Ontem, virei-me para o meu pai e disse: Pai, é a diferença entre trabalhar porque se precisa de ganhar dinheiro e trabalhar por paixão e amor à camisola, vá!, quando a gente gosta verdadeiramente do que faz e não o faz odiando a necessidade de o fazer, o tempo corre muito mais rápido e os milagres podem acontecer.

Falo-lhe da minha amiga que toma conta de uma senhora de oitenta e tal anos. Ganha mal e porcamente mas ama o seu trabalho e faz milagres. Conseguiu pôr a idosa que habitualmente passa os dias entre a cama e cadeira de rodas... conseguiu pô-la a andar pelo próprio pé. Apenas com o carinho. Shivana ama quem cuida. A idosa vivia deprimida e Shivana com o carinho e o incentivo das suas palavras, devolveram a coragem e a vontade à senhora. Tenho provas: mostrou-me um vídeo gravado com o espertafone, mostrando a senhora a andar, mostrando a senhora até a desapertar os botões da camisa. Ela já estava dependente de tudo, da cuidadora para a higiene e alimentação e dos fármacos para a alegria de viver. Hoje com o cuidar da Shivana, ganhou autonomia e vontade. Shivana fez mais que qualquer outra auxiliar de geriatria. Shivana vai ser aumentada e vai ser gabada no psiquiatra, na fisioterapia e na família da idosa. Shivana vai ser aumentada e a sua perna vai ficar grande, ou como ela diz corrigindo: vou ficar cheia de perna.

 

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Como a cegonha com o pescoço dentro do saco das compras.

 A minha amiga e eu, nós temos uma piada interna que consiste em chamar de inteligente alguém que faz algo que nós consideramos errado ou absurdo e que não podemos mudar. Então, a rir dizemos: Ená, saíste-me cá um inteligente!

Foi então natural que eu tivesse respondido do fundo do coração à dona Alexandra ontem, quando ela me perguntou se tinha compreendido todos os recados e eu disse que sim e ela retorquiu: Também você é inteligente, não é?, que inteligente é o que costuma chamar aos ótarios. Disse-o olhando para a agenda na secretária e depois ao olhar para ela, vi-lhe a cara de desagrado como se a tivesse ofendido, e ela retorquiu: Não se considera inteligente?

-- Não, considero-me mediano, há pessoas muito mais inteligentes que eu.

-- Também há muitos burros.

-- Sim, mas eu não sou nem melhor nem pior, sou mediano.

***

Inseri este breve apontamento em cima e mal sabia eu quando ele aconteceu que se haveria de ligar intuitivamente com o livro de ensaios de Benjamim Fondane que a VS editou.

Ainda só li o prefácio e o ensaio A segunda-feira existencial, mas li-os duas vezes para tentar e conseguir compreender o pensamento de Fondane bem como para o enquadrar em mim, para ver como ele justifica e predetermina as minhas acções, para descobrir a genealogia que adopto.

Ele diz completando Andre Gide: Não tem graça jogar num mundo onde toda a gente faz batota, começando por mim próprio.

Ele diz comentando Rimbaud: Se todos são uns porcos, eu que afirmo isto sou um porco também.

Diz que todo o Mal no Mundo: a guerra, a fome, etc, vem do facto de uns se acharem melhores do que os outros e com, é certo, esforço, propaganda, arregimentarem multidões em torno de uma ideia superior para eles e alguns dos seus, condenando todos os restantes ao sofrimento e ao estranhamento, dividindo o mundo em Uns e Outros, Bem e Mal, quando no fundo cada lado pensa o mesmo e quer aniquilar o outro querendo ser só Um. A bem de uma Totalidade aniquilam a Diferença.

Democracia e Ditadura tentam anular-se uma à outra, tornar-se uma só. E no fim, levam à destruição do mundo. E para o homem comum, tudo isto é incompreensível, não se compreende com em nome de um Bem comum superior para toda a Humanidade, os dois lados se matem um ao outro, e milhões de cidadãos escravos ovelhas soldados novos e velhos homens mulheres e crianças lutem ingloriamente e morram por um ideal absurdo que deixaram de compreender.

Camus afirmava que era necessário nascer um Sísifo que fosse feliz, e que o trabalho absurdo de todos os dias fosse uma luta, fosse em si mesmo a finalidade, o objectivo e a razão de Ser, sendo esses os Valores num mundo desprezando A religião.

Hegel disse que as guerras eram necessárias e que mesmo cansados do trabalho, os camponeses conseguiam divertir-se ao Domingo e ser feliz, resignando-se ao mundo ser como é. 

Nietzche disse no amor fati, que devemos aceitar o absurdo do mundo como um acto de fé, irmos alegres para a fogueira.

Fondane também não apresenta soluções, diz apenas o óbvio: ele, tal como eu que escrevo, tal como todo o cidadão e não cidadão, tal como todo o político e aspirante a político, perdemos o direito à nossa responsabilidade, porque não temos a humildade de admitir que na maior parte das vezes erramos com consquências nefastas (Guerra, o Mal).

Fondane é nihilista e diz apocalipticamente que estamos nas mãos de Deus e que de nós será dado o testemunho de um grito, um poema, fé ou suicídio.

Não há mais esperança neste mundo. A maior parte da gente nem repara nisso, vai-se andando simplesmente, como a cegonha com o pescoço dentro do saco das compras.


segunda-feira, 2 de setembro de 2024

Por isso, meus irmãos, uma vez que tendes de suar para nós podermos pagar as nossas viagens a Itália, suai e ide para o inferno

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Penso que a tendência automática para perpetuar os trabalhos sem sentido se deve, no fundo, simplesmente ao medo que as massas populares inspiram. A plebe -- pensam uns -- e formada por uma espécie animal tão vil que se torna perigosa se tiver tempo para isso; o melhor é conservar os seus membros permanentemente ocupados, de modo a não terem ocasião para pensar. Qualquer rico capaz de um mínimo de honestidade, se o interrogarmos acerca da melhoria das condições do trabalho, dirá mais ou menos o seguinte:

«Sabemos que a pobreza não é agradável; de facto, trata-se de um mundo tão afastado do nosso que chegamos a ter um certo prazer quando pensamos no horror que é ser pobre. Mas não podem esperar que façamos seja o que for para modificar as coisas. Lamentamos as classes inferiores como temos pena de um gato tinhoso, mas lutaremos implacavelmente contra qualquer melhoria das suas condições de existência. Achamos que é muito mais seguro que as coisas continuem a ser como são. É uma situação que nos convém, e não vamos correr o risco de deixar os pobres com uma hora suplementar de liberdade por dia. Por isso, meus irmãos, uma vez que tendes de suar para nós podermos pagar as nossas viagens a Itália, suai e ide para o inferno.»

Esta atitude é característica, sobretudo, das pessoas inteligentes e mais ou menos ilustradas; encontraremos a argumentação acima exposta, com pequenas variantes, em centenas de ensaios. Acontece, por outro lado, que são muito poucas as pessoas instruídas que têm menos, por exemplo, do que quatrocentas libras anuais; naturalmente, por isso, é do lado dos ricos que essas pessoas tendem a colocar-se, imaginando que qualquer liberdade concedida aos pobres é uma ameaça à sua própria liberdade. Supondo que a única alternativa para o estado de coisas actual é não se sabe que sinistra utopia marxista, as pessoas cultas preferem que tudo continue na mesma. É provável que não gostem especialmente dos ricos, mas supõem que mesmo o mais vulgar dos ricos é um inimigo menos perigoso dos seus prazeres do que o pobre, e assim defendem aquele contra este. É o medo de uma plebe sobre a qual projectaram todos os perigos imagináveis a razão que torna quase todos os espíritos cultos conservadores nas suas ideias e atitudes.

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George Orwell em

Na penúria em Paris e em Londres, páginas 111 - 112

Tradução de Miguel Serras Pereira

Edição Relógio d'água