quarta-feira, 11 de setembro de 2024

O escravo voluntário diz: este trabalho caiu do céu

 

Segunda noite de folga hoje. significa que completei duas semanas de trabalho. Está a correr bem. Sinto-me adaptado às tarefas e às colegas. Além de mim e o chefe-patrão só tenho colegas mulheres. Logo não há invejas nem competição destrutiva. Todos nos ajudamos uns aos outros. dizem-me que trabalho muitas horas por um salário pequeno mas eu não acho que seja um mau emprego. E se trabalhar para um patrão nos coloca na situação de escravo, eu, neste momento considero-me um escravo voluntário. Porque há dez anos que não tinha um patrão e um salário todos os meses, porque gosto deste trabalho e é totalmente diferente de tudo o resto que já fiz. Há dez anos seria incapaz de o executar porque exige boa aparência, calma nas palavras e sorriso para com quem falamos.

Afinal: entro às nove da noite recebendo as indicações do trabalho para a noite. A minha principal função é receber os novos hóspedes, registá-los no checkin e encaminhá-los para um quarto dando-lhes dormida por uma ou várias noites, a troco de um valor acrescido da taxa turística que segue para o município. Esta é a minha principal função: ser recepcionista de hotel, hostel, residencial, pensão blablabla mas... se fosse só esta as minhas tarefas, seria tudo uma grande seca e o tempo de permanência no local de trabalho demoraria a passar. Por isso, tenho outras tarefas e consistem em ajudar a completar o trabalho das minhas colegas do turno de dia: levantar lençóis das camas e toalhas dos quartos de banho e pôr a lavar a sessenta graus na máquina, depois estender na corda se der tempo de ela secar durante a noite ou então pôr a secar na máquina no programa Algodão. A seguir, dobrar e arrumar no armário. Esta é outra tarefa: tratar da roupa de quarto durante a noite para que de manhã seja só preciso a colega passar a ferro tendo já a roupa preparada. Outra tarefa está relacionada com a alimentação dos hóspedes, alguns pedem pequeno-almoço e eu tenho de levantar a louça lavada e arrumá-la, preparar as mesas para o pequeno-almoço que às vezes ainda cai no meu horário visto ser entre as sete e trinta até às dez da manhã, chego ainda a serví-lo. Aí, tenho de aquecer leite, torrar pão, descongelar as manteigas, preparar os pratos de queijo e fiambre.

Há dias, serví-o a um senhor trabalhador das obras às sete da manhã, recordo: meia-de-leite clarinha, um pão com queijo e fiambre e um copo com água para tomar a medicação. Frugal, não é?, sim, porque são reservas de preço económico. Mas para hóspedes de reservas online é diferente: para cada pessoa vai para a mesa um croissant, dois pães, quatro fatias de queijo e quatro de fiambre, meias-de-leite ou café solo, ainda chá se for pedido e se houver ninos a desayunar, o chefe às seis da manhã compra para eles um bolinho quentinho acabado de sair do forno da pastelaria e eu orgulhoso da casa direi em portunhol: esto és por la ninha.

Dito isto, este é o meu serviço. Termina quando a dona-chefa chega às nove da manhã e eu acabei de ir despejar o lixo e lhe passo as contas da caixa que o chefe-patrão conferiu comigo duas horas antes.

Ao fim de duas semanas de trabalho, reparo que termino as tarefas por volta da meia-noite ou uma e que até quase às seis da manhã posso repousar ou mesmo dormir. Claro que não é um sono dos justos pois não descanso numa cama e estou sempre atento ou sou acordado pela campainha tocada por um hóspede ou um potencial novo hóspede. Outras vezes, é o telefone que toca. É por isso um sonus interruptus em que acordo estremunhado do sofá às vezes a pensar se fiz isto ou aquilo bem. Mas o certo é que descanso durante as doze horas de trabalho quase quatro horas, e quase que não durmo ou tenho dificuldade em dormir quando chego de manhã a casa.

Logo, consigo ganhar dinheiro aproveitando a noite, descanso um pouco durante a noite e de manhã e, depois do almoço, ainda tenho tempo de continuar com a minha pintura e o que mais houver. Este trabalho caiu do céu.

Ontem, virei-me para o meu pai e disse: Pai, é a diferença entre trabalhar porque se precisa de ganhar dinheiro e trabalhar por paixão e amor à camisola, vá!, quando a gente gosta verdadeiramente do que faz e não o faz odiando a necessidade de o fazer, o tempo corre muito mais rápido e os milagres podem acontecer.

Falo-lhe da minha amiga que toma conta de uma senhora de oitenta e tal anos. Ganha mal e porcamente mas ama o seu trabalho e faz milagres. Conseguiu pôr a idosa que habitualmente passa os dias entre a cama e cadeira de rodas... conseguiu pô-la a andar pelo próprio pé. Apenas com o carinho. Shivana ama quem cuida. A idosa vivia deprimida e Shivana com o carinho e o incentivo das suas palavras, devolveram a coragem e a vontade à senhora. Tenho provas: mostrou-me um vídeo gravado com o espertafone, mostrando a senhora a andar, mostrando a senhora até a desapertar os botões da camisa. Ela já estava dependente de tudo, da cuidadora para a higiene e alimentação e dos fármacos para a alegria de viver. Hoje com o cuidar da Shivana, ganhou autonomia e vontade. Shivana fez mais que qualquer outra auxiliar de geriatria. Shivana vai ser aumentada e vai ser gabada no psiquiatra, na fisioterapia e na família da idosa. Shivana vai ser aumentada e a sua perna vai ficar grande, ou como ela diz corrigindo: vou ficar cheia de perna.

 

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