terça-feira, 28 de abril de 2015

«Vou sonhar com a minha cura.»

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-- Estou doente, mas não muito -- disse o tio de Catherine Tekakwitha.
-- Deixa-me baptizar-te -- disse o Vestido Negro.
-- Que nem uma gota da tua água me caia em cima. Já vi muitos morrerem depois de tu lhes teres tocado com essa água.
-- E agora estão no Paraíso.
-- O Paraíso é um sítio bom para os franceses, mas eu quero estar entre os índios, porque os franceses não me hão-de dar de comer quando eu lá chegar, e as francesas não se hão-de deitar connosco debaixo dos abetos frondosos.
-- Temos todos o mesmo Pai.
-- Ah, Vestido Negro, tivéssemos todos o mesmo Pai e nós havíamos de saber fazer facas e casacos tão bem como vocês.
-- Ouve, ancião, tenho, na cova da minha mão, uma gota mística que te pode salvar da eterna maldição.
-- E eles caçam no Paraíso, fazem a guerra, vão a banquetes?
-- Oh, não!
-- Então eu não vou. A preguiça não faz nada bem.
-- O fogo infernal e os demónios aguardam-te para te torturar.
-- Porque é que baptizaste os nossos inimigos Hurões? Hão-de chegar ao Paraíso antes de nós e correrem connosco quando lá chegarmos.
-- Há lugar para todos no Paraíso.
-- Se há assim tanto espaço, Vestido Negro, porque é que guardas a entrada tão ciosamente?
-- Já não nos resta muito tempo. Irás certamente para o Inferno.
-- Temos muito tempo, Vestido Negro. Nem que eu e tu falássemos até a doninha ser amiga do coelho, não havíamos de quebrar a corrente dos dias.
-- A tua lábia é diabólica. O fogo aguarda-te, ancião.
-- Sim, Vestido Negro, uma fogueira agradável, à roda da qual estão sentadas as sombras dos meus parentes e antepassados.
Quando o jesuíta o deixou, o tio chamou por Catherine Tekakwitha.
-- Senta-te ao pé de mim.
-- Sim, tio.
(...)
-- Escuta e olha. O que te vou dizer não pode ofender deus nenhum, nem o teu nem o meu, nem a Mãe da Barba nem a Grande Lebre.
-- Eu escuto-o.
-- Quando o vento me abandonar as narinas, o corpo do meu espírito vai iniciar uma longa viagem até casa. Olha para este corpo engelhado e curtido enquanto te falo. O belo corpo do meu espírito vai iniciar uma viagem difícil e perigosa. Muitos não chegam ao fim da viagem, mas eu sim. Vou atravessar um rio traiçoeiro em cima de um tronco, enfrentando os rápidos tumultuosos que procurarão atirar-me às rochas escarpadas e o cão que me vai morder os calcanhares. Depois, hei-de continuar por um estreito caminho, onde as pedras dançam umas contra as outras, e muitos serão esmagados, mas eu hei-de dançar com as pedras. Olha para este velho corpo Mohawk enquanto te falo, Catherine. À beira do caminho há uma cabana de madeira. Na cabana vive Oscotarach, o Fura-Cabeças. Inclinar-me-ei perante ele para que me separe o cérebro do crânio. Faz o mesmo a todos os crânios que por ele passam. É a preparação necessária para a Caçada Eterna. Olha para este corpo e escuta.
-- Sim, tio.
-- O que vês tu
-- Um velho corpo Mohawk.
-- Muito bem. Agora cobre-me. Não chores. Eu não vou morrer já. Vou sonhar com a minha cura.
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, página 128
"Belos vencidos"
Leonard Cohen
Traduçao de Margarida Vale de Gato
Edição Relógio d'Água, 1997




sábado, 25 de abril de 2015


'Praça da Ribeira - Porto'
também conhecida como Praça do Cubo

O desenho a caneta de preto não permanente foi realizado em 2013
A impressão digital do preto (gravura) em papel de aguarela
e posterior 'iluminação' com tinta de aguarela 
foi realizada em 2015

Tem a dimensão de uma folha A4

quarta-feira, 22 de abril de 2015

Manual de evasão LX94



http://alchemicalarchives.blogspot.co...

Manual Of Evasion LX94: 

Edgar Pêra's Dadaist film about Time.

Starring Terence McKenna, Robert Anton Wilson & Rudy Rucker.
Manuel João Vieira e outros

Este filme de Edgar Pêra foi encontrado aqui:
http://alchemicalarchives.blogspot.pt/2012/04/manual-of-evasion-lx94.html

terça-feira, 21 de abril de 2015

The mirror of the spirit


El Espejo del Espíritu / The Mirror of the Spirit from João Meirinhos on Vimeo.

This is a vimeo video which was shared with me.
It's about Ayahuasca.
I think it's worth of watching.
I copy and paste this video's vimeo notes below:

Official screenings at:
- Kibbutz Bardo (Taipei, TAIWAN)
- World Premiere at the World Ayahuasca Conference 2014 (Ibiza, SPAIN)
- Chapel Church (Manchester, ENGLAND)
- Roots Film Festival (Azores, PORTUGAL)
Ayahuasca is a psychedelic brew which has been used for divinatory and healing purposes since, at least, the 16th century. There are now more Westerners than ever traveling to South America in search of this shamanic experience. These are known as 'spiritual tourists'
'The Mirror of the Spirit' primarily follows the life of Don Ignacio, an old shaman from Puerto Maldonado, Sergio, an accidental tourist and Osman, a recovering drug addict seeking healing. They are like tributaries of the same river converging towards this ancient medicine for different personal reasons.
In Pucallpa we stay with Maestro Antonio Vasquez and his Shipibo-Conibo people at a community along the Ucayali River. And, in Iquitos, we are welcomed by David 'Slocum' Hewson at an holistic healing center mostly ran and visited by foreigners.
Starting out as an anthropological investigation, this chronological quest shows examples of mestizo, indigenous and western shamanic practices. It did not seek to document those already experts on the subject, but to give an unfiltered voice to others that came along its observational path of discovery; to better understand the mysteries of plant medicine, the business behind fake healers and the cross-cultural mimetic relationship between Amazonian natives and spiritual tourists.
With the technical support from the Granada Centre for Visual Anthropology / University of Manchester.
Many thanks to all the Kickstarter campaign backers, especially Associate Producer - Lily Spencer.
Dedicated to the inspiring memory of Terrence McKenna and Pablo Amaringo.
All sound and footage was recorded during fieldwork, no images added in post-production.
Spanish and English subtitles available.

domingo, 19 de abril de 2015

As aventuras laborais de Mr. Cool, parte 2

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Hoje de manhã em Tintus Rius, onze horas nas instalações da empresa A-: 
«Estou sob contrato há 18 meses, o contrato foi renovado automaticamente por mais seis meses. Só por extinção do posto de trabalho me podem agora legalmente despedir.» 
Civilizadamente o acordo chega: «Vai gozar o seu restante período de férias e volta ao serviço dia seis.» 
Quando saio da reunião por volta do meio-dia, dou por mim a pensar que o mais provável é cumprir os próximos seis meses e o contrato, a termo certo, não ser mais renovado, pois não aceitei a transferência para a empresa C-. É possível igualmente que me encostem a varrer o chão durante esse período, algo que cumprirei com rigor. Não lhes quero dar desculpas para despedimento selvagem. Tenho contas de escravo para pagar, sou um escravo não sou um patrão, não me posso dar ao luxo de ser sempre insolente perante a gerência mesmo quando tenho razão, e vendo o lado positivo... Estas quase duas semanas-extra de férias vão-me dar tempo de me organizar, de encontrar um quarto mais barato e que me garanta uma cozinha. Nesta pensão onde estou é insustentável ficar a longo prazo. Toda esta história dos quarenta e nove koans em Derza se iniciou neste caderno de capa preta a partir do momento em que eu previ um momento de possível apocalipse: «adiei o desemprego, adiarei a queda na rua!»
Caminho agora para a paragem e, antes de decidir em que autocarro e destino entrar, ligo para o número da Sandra com quem tinha apalavrado um quarto. Uma contrariedade surge: os outros ocupantes da casa querem conhecer-me. Digo a Sandra: «É natural que assim seja mas deixaram-me todo este tempo pendurado na promessa de um quarto que pode já não ser certo.» 
Ela dá-me o contacto telefónico dos outros residentes, desligo e entro no autocarro para o centro da cidade e, enquanto olho a paisagem, penso: «quero ver se ainda esta tarde resolvo o assunto, estou ansioso e em caso de resposta definitiva e negativa tenho de procurar alternativas. Esta tarde os meus planos não passam por fumar, hoje não haverá lazer. Tenho telefonemas para fazer, anúncios para pesquisar.»

As consequências de esta tarde não ter havido nem lazer nem ócio fazem-se sentir agora à meia-noite, em noite de insónia ouço Virgin Prunes.
Muitas vezes fiz listas de bandas, álbuns a comprar, as melhores músicas para ouvir em modo aleatório nos auscultadores enquanto pedalava, eram tempos em que ignorava o perigo de me alhear no trânsito, era um jovem sem medo e com bicicleta. Nesta altura cheguei a considerar Van Der Graaf como a melhor banda dos anos setenta, Sonic Youth dos oitenta e Coil dos noventa. Hoje pela sua substância psicológica Virgin Prunes é a melhor banda de sempre: «O here we go, round and round again, down the memory lane.»
Agora em noite de insónia ouço Virgin Prunes. A insónia – um produto da ansiedade, não durmo porque estou ansioso, estou ansioso porque amanhã vou ver um quarto-sala mobilado com acesso a cozinha e máquina de lavar por duzentos e trinta euros, água e luz incluído. Vou tentar baixar o preço mas se gostar, aceito de qualquer maneira. 
Estou ansioso porque as coisas correram mal, a Sandra vai deixar o quarto e o seu quarto ficaria para mim, foi o que estava apalavrado, mas agora a Célia e o Raimundo parece que precisam da autorização da prima... foda-se podiam ter dito mais cedo! 
Quarto riscado da lista, hoje em dia as listas que faço já não são de discos mas listas de quartos para alugar.
Tem o seu quê de piada suburbana. Ora vejamos, falei com o Joaquim e esse quarto já está ocupado. Vi outro quarto por cento e oitenta euros mais água e luz mas não me agradou, muito pequeno. Hum, se amanhã não correr bem, bem... se amanhã às onze em Coñejo Latino não correr bem continuo aqui na pensão até ao fim do mês, não me posso deixar cair em pensamentos negativos, não tenho agora que pensar no que fazer após um apocalipse que, se eu pensar positivo pode nunca ocorrer o negativo mas nem tudo depende de mim, se eu pensar positivo... se eu contar carneiros adormeço agora e daqui a algumas horas já estou a morar num palácio! Ah, quando andava de bicicleta tinha pouco dinheiro para listas de compras e hoje se não tivesse o dinheiro possível de dezoito meses de trabalho, a ganhar o salário mínimo, estava a morar na rua em cima de cartão, é nisso que tenho de pensar para adormecer, não preciso de pensar agora que não sobreviveria se fosse um sem-abrigo, afinal consegui segurar o trabalho por mais seis meses, nem tudo é mau na minha vida.
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Claudio Mur




sexta-feira, 17 de abril de 2015

Hamza El Din



Hamza El Din 
 1987-02-15 
Petaluma, CA 

http://soundcloud.com/hamza-el-din

Um músico descoberto no blog
A vez da Maria



Hamza el Din - Escalay: The Waterwheel - for String Quartet
Performed by: Berneck Quartet - January 2012 - Switzerland (Charity Concert)
Violin: Lyonel Schmit, Christop Brüggemann
Viola: David Quiggle Cello: Viturin Döring

Water Wheel is a complete description of the experience of the boy who keeps the water wheel going. He rises early, before dawn, and begins, sleepily, to hitch up the oxen, adjusting the tension so that both animals are pulling equal weight. As the wheel slowly begins to move, the huge wooden gears of the wheel creak and groan. Gradually, lulled by the warmth of the morning sun, the movement and the sound of the wheel, the boy tending the oxen begins to hum to himself. As the wheel turns more quickly and strongly, he begins singing more loudly, merging the sound of his own voice with that of the wooden gears. Eventually even his song is lost in the drone of the wheel. One gear, like one note, meshes with the other gears, and increasingly complex overtones develop like the movements of a great fugue. And the fugue grows, like waves from a pebble dropped into the water. The waves move out, touch the shore and return, making new waves until all the water is ruffled and moving. Soon the boy sitting on the water wheel becomes entranced, hypnotized by the insistent song of the wheel and he sits staring vacantly into space, only awakened from his trance by someone calling to him to keep the animals moving. In this work, Hamza El Din demonstrates clearly his mastery of the oud and his innovations in the use of this instrument. Note especially that while he plucks the bass string continually in one rhythm, he hammers with the left hand on two other strings, and uses alternatively the remaining strings to set the pattern of the melody against the other rhythms. This creates a harmonic whole, which describes perfectly in musical terms the hypnotic humming of the water wheel.


The Waterwheel :
https://www.youtube.com/watch?v=Oa_zc_M-2w8

quarta-feira, 15 de abril de 2015



Valentina Lisitsa plays Liszt's Hungarian Rhapsody No. 2.

Recorded live on May 22th, 2010 in Leiden, Holland

terça-feira, 14 de abril de 2015

As aventuras laborais de Mr.Cool

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Hoje acordei às 06h30 da manhã. Regresso ao trabalho às 08h30. Todos os meus colegas apareceram. Chegou também o Júlio Tremidinho, o sócio-patrão. Disse-me que tinha umas folhas para eu assinar.
Da parte da tarde chamou-me ao escritório. Repetiu que tinha as folhas para eu assinar, as mesmas que queria que eu assinasse antes das férias. Perguntei-lhe pelo subsídio de férias. Ele respondeu: «Depois a A- paga-lhe.» As folhas para assinar eram da segurança social, para oficializar a minha inscrição pela C- na segurança social. Eu respondi-lhe que antes de assinar qualquer coisa que se referisse a uma transferência de posto de trabalho da empresa A- para a empresa C-, queria falar também com o senhor A., o sócio conjunto das duas empresas. O Júlio Tremidinho diz-me que só falarei com ele próprio e mais ninguém. Depois tentei dizer-lhe que precisava de uma declaração ou novo contrato de trabalho em que se especificasse que os meus direitos laborais, créditos e antiguidade na empresa A- fossem transferidos para a empresa C-, dado que era isso que se tratava, uma transferência de uma empresa para a outra tendo estas em comum o mesmo sócio, o senhor A.. Ele não me deixou acabar de dizer isto, disse apenas: «Ou assina ou faz a trouxa.» Eu como funcionário da empresa A- e tendo estado emprestado pelo sócio comum à empresa C- nos últimos meses, saí do armazém após esta conversa, virei à esquerda, caminhei trinta metros e entrei no armazém da empresa A-. Pedi para falar com os patrões. Telefonou-se para eles, expliquei o que se passava e eles disseram que os meus colegas não tinham pedido essa declaração (os três colegas que assinaram os papéis de transferência de empregador na segurança social), por fim disseram: «Ou termina o dia na C- ou venha cá amanhã às onze horas.» Vim-me embora e fui à loja do cidadão, ao Idict e eles disseram que não me podem despedir, o meu contrato actual é com a empresa A-, confirmam que tenho razão quando peço um novo contrato, quando me posso recusar a ser emprestado entre empresas. Dizem-me que eu posso tentar amanhã às onze dizer-lhes entre linhas: «Se chamo a inspecção das condições de trabalho vocês entram pela madeira dentro.»
Agora são oito horas da noite, estou no quarto da pensão, acabei de fazer o resumo do meu primeiro dia de trabalho após três semanas de férias, não recebi ainda o subsídio, querem mudar-me de empresa sem me pagarem os direitos laborais por ano e meio de trabalho na empresa A-. Mas a autoridade para as condições de trabalho dá-me razão. Ameaçam despedir-me se eu não assinar à força umas folhas que me prejudicam. Estou agora mais calmo, acabei de fumar um charro, já tomei café, decido começar a escrever neste caderno uma epístola (longe vão os tempos das cartas-bomba) à gerência da empresa A-:
«Dona A., antes de mais quero dizer que preciso deste trabalho, não quero ser despedido nem me quero despedir. Se estou bem tanto a nível psicológico como a nível económico (é claro que sou modesto) é devido a este trabalho, é devido à oportunidade que me deram. Dito isto, sempre fui, acho eu, um bom trabalhador, um trabalhador que suplantou a sua falta de experiência com motivação, entrega e perfeição, nunca causei problemas a ninguém, nem alinhei nos 'contos e ditos' que se praticam entre os colegas de trabalho e a secretária da direcção que depois lhe espeta a si todos esses contos e ditos nas suas orelhas quentes. Fui bem tratado por todos até ao momento de entrada em cena do tremidinho. Confio na sua palavra mas não confio na palavra do tremidinho. É preciso lembrar que quando me pagaram o salário de Julho, o sócio conjunto disse que a C- podia fechar ou então o tremidinho passar a ser o único sócio. Não vejo qualquer problema em ser transferido dado que um papel seja assinado em que me garantam os meus direitos, mas se o tremidinho não quer assinar esse papel é porque de algum modo me quer empurrar para a porta de saída sem nunca pagar nada. Junta-se a isso que os meus colegas que assinaram a transferência e a eles coisas de boca lhes foram prometidas e ainda nada obtiveram. Não vejo como comigo seria diferente. Peço por isso a minha integração, o meu regresso à empresa A- pois não acho que possa haver justa causa para rescisão nem motivo para processo disciplinar, peço portanto que me dêem o meu trabalho de volta.»
Termino a epístola. Agora vou fumar mais um charro, ler um pouco e adormecer. 
Amanhã às onze a guerra pelo emprego tem nova batalha no armazém A. 
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Claudio Mur

sábado, 11 de abril de 2015

As bruxas voam, o polvo caminha


'As bruxas voam, o polvo caminha'
Técnica mista de caneta de preto permanente, lápis de cera e pastel de óleo 
sobre folha de papel a4
2015
ZMB

Esta semana a minha irmã festejou o aniversário com um jantar em sua casa
e não é que eu,
após brincar com capa e espada de plástico com o meu sobrinho de quatro anos,
resolvi assustá-lo quando ele perguntou «O que é isso?»
Eu respondi «È um polvo, na casa do tio há polvos!»
Ele olhou para o desenho e depois para mim assombrado mas nada disse.

Eheh, sou o tio a quem os sobrinhos na brincadeira puxam a mosca da cara!
Eles são a alegria das duas avós e de nós também.
São a cola que une as partes, o futuro será para eles.
Quando eles estão contentes todas as desavenças familiares se apaziguam.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Abominável homem das neves avistado a tentar serrar os cornos [para os esconder] de um yak

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Nunca o homem poderia desaparecer repentinamente de tal modo está aqui sentado na sua linda casa, que atrai à noite a escuridão das florestas e o preconceito dos seus habitantes. Fica-lhe mesmo bem! Esta mulher não precisa de piedade. Os poros do filho ainda são pequenos. A mulher vacila sob o fardo da sua pesada sorte. Com uma condução inteligente ainda se lhe pode abolir a prisão, mas não pode negar acolhimento ao marido. O prato rápido já devia estar a ser cozinhado nela. O simples facto de ele aqui estar, faz humidificar o seu orifício. Na maior parte das vezes, o fim das excursões de empresa é alegre e bem regado, o que está escondido palpita, quer lançar livremente as suas secreções. A vida consiste em grande parte no facto de nada querer ficar onde se encontra. Portanto, venha a mudança! Desta maneira cria-se o desassossego, e as pessoas visitam-se, mas têm sempre de carregar consigo próprias como se fossem um fardo. Criados cumpridores, apresentam-se com os seus chouriços sexuais, e com o talher sobre a mesa, para que lhe ofereçam rapidamente um buraco, apenas para, mais ávidos agora, aparecerem e oferecerem a sua hospitalidade a outros simplórios. Nem as secretárias querem admitir que se sentem expostas aos apalpões nas blusas. Riem-se. Há incrivelmente tanta gente, que nem todos conseguem ter a sua parte no deboche.
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, página 36
"Lust"
Elfriede Jelinek
Edição Editorial Estampa, 2ªedição 2005

sábado, 4 de abril de 2015

«Enriquece à vontade, mas se não chegar para mim não entras no clube.»


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O liberalismo diz: «enriquece à vontade, mas se não chegar para mim não entras no clube.» 

Os liberais ou adeptos do liberalismo escreveram nos seus princípios também o princípio da liberdade e dizia mais ou menos o seguinte: 
Os homens não podem ser forçados à liberdade, a liberdade não pode ser um presente chegado do exterior, os homens não podem esperar que lhes dêem ou tirem mais ou menos quantidade de liberdade como num regime totalitário, são os homens que devem agir para conquistar a liberdade. 
Mas este sentido de liberdade nunca teve como referência geral o homem comum mas sim o homem económico e religioso no poder da ordem social. 
Para o liberal o estado não deve intervir na economia, na criação de riqueza, dizem que o homem é livre de enriquecer e o estado apenas deve intervir na área social como formar e educar indivíduos e integrá-los como uma força de trabalho, incentivá-los a subir na escada social, mas só até certo ponto pois ele não poderá agitar as suas próprias ideias acerca da liberdade, acerca da repressão estatal, económica efectuada pela ordem instalada. Seja feito tal e os liberais dirão que o indivíduo deve ser castigado. 
Primeiro difamam-te, depois tiram-te o emprego, depois a mulher e os filhos, a casa e até o carro quando agora este te serve de residência, daí a pôr-te na cadeia por delitos de sobrevivência... É um pequeno passo. O liberalismo prega uma cartilha de valores morais, mas quando se chega à realidade vê-se que se algumas pessoas injustiçadas conseguem mesmo assim se tornar mais fortes, são essas apenas as poucas que conseguem sobreviver, as pessoas são forçadas a trocar a dignidade pela corrupção, pela hipocrisia, apenas essas sobrevivem, o liberalismo pode dizer que o tempo é de mudança, mas a direcção é a de um iluminismo para um absolutismo anti-histórico, uma regressão. 
Caminhamos para o totalitarismo liberal.
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Claudio Mur,
adaptando as ideias radiofónicas propostas por Joel Costa 
no seu extinto programa 'Questões de Moral'
na rádio  Antena 2 em 2011

Fortune presents gifts not according to the book



Dead Can Dance - 'Aion' - 1990

Fortune presents gifts
Not according to the book
Fortune presents gifts
Not according to the book

When you expect whistles it's flutes
When you expect flutes it's whistles

What various paths are followed
In distributing honours and possessions
She gives awards to some
And penitent's cloaks to others

When you expect whistles it's flutes
When you expect flutes it's whistles

Sometimes she robs the chief goatherd
Of his cottage and goat pen
And to whomever she fancies
The lamest goat has born two kids

When you expect whistles it's flutes
When you expect flutes it's whistles

Because in a village a poor lad
Has stolen one egg
He swings in the sun
And another gets away with a thousand crimes

When you expect whistles it's flutes
When you expect flutes it's whistles


quinta-feira, 2 de abril de 2015

Não há instinto de morte

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Um masoquista, tal como diz Wilhelm Reich, não é biologicamente causado por um instinto ou desejo de morte. Ele prefere um sofrimento mediano porque teme a destruição final. Não gosta de estar sozinho, não gosta de perder o contacto com a pele quente, esta alivia a tensão erótica e dá prazer. Não gosta de perder o contacto com o objecto amado, estar sozinho é estar frio como morto. Quando perde este contacto e fica sozinho no mundo, queixa-se, vitimiza-se, faz-se de importante, procura um novo contacto com o passado, ah se pudéssemos voltar... Mas o sujeito masoquista aproxima-se do passado por meios errados, provoca e tal, faz merda e escândalo e tudo o mais porque, ao ter medo de perder a pele e ao errar uma vez mais, aumenta a sua culpa e sofre por fazer sofrer e fazer afastar aquela pele tão quente. Por isso, escreve, escreveu «faz frio muito frio, viesse um asteróide incendiar tudo» a ver se aquecia, não há instinto de morte mas sim o contrário, um instinto de vida e digo tudo isto ao caderno de linhas, digo o passado, agora não [digo agora], agora estou estabilizado, tenho até calor de mais, sinto-me com metade da minha idade, sei gerir a ansiedade, o emprego, o perigo de a empresa fechar por falta de encomendas, depois de amanhã volto ao trabalho, sei gerir o problema da residência, sei onde me dirigir, até [vejam só!] encontrei uma lavandaria perto, tenho um plano com soluções previstas e actualizações diárias, não não penso ser compulsivo mas também não serei tecnicamente masoquista, esse sofrimento menor foi uma máscara, um substituto em quem só eu acreditei e do qual me desligo cada vez mais, perdeu a razão de ser, essa armadura foi fabricada pelo ego como resistência, como um meio de defesa, nunca fui capaz de verbalizar correctamente e com voz moderada os males que sofri. A minha culpa que sinto é essa: perder a razão por responder a ofensas com palavras desbocadas mas também não fui criado num ambiente de concórdia, como pode hoje um homem explicar-se racionalmente num mundo de gritos e insultos? nunca me ensinaram a ser bem-educado, apenas a calar e a consentir, hoje digo que essa chantagem devia ter sido denunciada, a ruptura devia ter acontecido mais cedo. Assim esgotaram-se as possibilidades. Nem amigos sequer. 
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Claudio Mur

Mudar de vida


'Mudar de vida'
óleo sobre tela
60cm por 70cm
2007-2015
ZMB

Filho de um pai reaccionário e de uma mãe adepta da hipocrisia da jonet
(porque assim ainda se consegue dar uma côdea a um pobre e o céu fica garantido, dizem)
que poderia eu ser, que poderia eu fazer da minha vida?
Se ele fosse director de uma empresa e eu o bajulasse tanto como os meus cunhados
podia quem sabe ter o meu lugar ao sol e agradecer ao papá
e dar-lhe netos para que também ele pudesse invejar o tablet oferecido
mas não...
não foi esta a vida que escolhi.
Mas queriam o quê então? Que fosse revolucionário e assassinasse o pai?
Não, apenas o escrevi morto. Nada aprendi com ele a não ser fascismo.
E então como vivo?
Fugindo, recusando o seu dinheiro, sendo pobre por opção,
ele não gosta de mim e eu não gosto dele.
E sinto vergonha, escondo-me, não saio à rua.
Eu não nasci maluco nem foi a droga que me fez um doente psicótico.
Acho que foi a falta de amor filial.
Ser maluco foi uma escolha que fiz para ser livre.
Sim, eu mudei de vida: sofro menos se me desligar.
O meu papá tem quem lhe dê vales de desconto.
Não precisa de mim para nada.
Ele nunca mudará e eu estou farto de tentar conciliar o impossível.
A minha família acabou.


(fotografia de época)