quinta-feira, 2 de abril de 2015

Não há instinto de morte

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Um masoquista, tal como diz Wilhelm Reich, não é biologicamente causado por um instinto ou desejo de morte. Ele prefere um sofrimento mediano porque teme a destruição final. Não gosta de estar sozinho, não gosta de perder o contacto com a pele quente, esta alivia a tensão erótica e dá prazer. Não gosta de perder o contacto com o objecto amado, estar sozinho é estar frio como morto. Quando perde este contacto e fica sozinho no mundo, queixa-se, vitimiza-se, faz-se de importante, procura um novo contacto com o passado, ah se pudéssemos voltar... Mas o sujeito masoquista aproxima-se do passado por meios errados, provoca e tal, faz merda e escândalo e tudo o mais porque, ao ter medo de perder a pele e ao errar uma vez mais, aumenta a sua culpa e sofre por fazer sofrer e fazer afastar aquela pele tão quente. Por isso, escreve, escreveu «faz frio muito frio, viesse um asteróide incendiar tudo» a ver se aquecia, não há instinto de morte mas sim o contrário, um instinto de vida e digo tudo isto ao caderno de linhas, digo o passado, agora não [digo agora], agora estou estabilizado, tenho até calor de mais, sinto-me com metade da minha idade, sei gerir a ansiedade, o emprego, o perigo de a empresa fechar por falta de encomendas, depois de amanhã volto ao trabalho, sei gerir o problema da residência, sei onde me dirigir, até [vejam só!] encontrei uma lavandaria perto, tenho um plano com soluções previstas e actualizações diárias, não não penso ser compulsivo mas também não serei tecnicamente masoquista, esse sofrimento menor foi uma máscara, um substituto em quem só eu acreditei e do qual me desligo cada vez mais, perdeu a razão de ser, essa armadura foi fabricada pelo ego como resistência, como um meio de defesa, nunca fui capaz de verbalizar correctamente e com voz moderada os males que sofri. A minha culpa que sinto é essa: perder a razão por responder a ofensas com palavras desbocadas mas também não fui criado num ambiente de concórdia, como pode hoje um homem explicar-se racionalmente num mundo de gritos e insultos? nunca me ensinaram a ser bem-educado, apenas a calar e a consentir, hoje digo que essa chantagem devia ter sido denunciada, a ruptura devia ter acontecido mais cedo. Assim esgotaram-se as possibilidades. Nem amigos sequer. 
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Claudio Mur

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