sexta-feira, 9 de setembro de 2016

Ignorava que não é necessário ter dinheiro para ser rico

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Adquirira o hábito de olhar à minha volta, de observar as pessoas com quem me cruzava na rua, no metro, na tasca onde fazia as minhas refeições do meio-dia. Que é que via? Caras tristes, olhares fatigados, indivíduos desgastados por um trabalho mal pago, mas obrigados a fazê-lo para sobreviver, apenas podendo dispor do mínimo essencial. Seres condenados à mediocridade perpétua; (...) Seres que conhecem o futuro por não o terem. Robôs explorados e paralisados, respeitadores das leis, mais por medo do que por honestidade moral. Submissos, vencidos, escravos do despertador. Eu fazia parte deles por obrigação, mas sentia-me estranho àquela gente. Não aceitava. Não queria que a minha vida estivesse previamente resolvida, nem que fosse decidida por terceiros. Se às seis da manhã tivesse vontade de fazer amor, queria ter tempo de o fazer sem olhar para o relógio. Queria viver sem horas (...). Eu queria «ter tempo para viver», e a única maneira de lá chegar era não ser escravo dele. Sabia como a minha teoria era irracional, que era inaplicável como fundamento de uma sociedade. Mas o que era essa sociedade sem os seus belos princípios e as suas belas leis?
Aos vinte anos, mandara-me ela fazer a sua guerra em nome das liberdades, esquecendo-se simplesmente de me dizer que com a minha acção entravava a dos outros. Em nome de quê me dera ela o direito de matar homens que eu nem sequer conhecia e que noutras circunstâncias poderiam tornar-se meus amigos? Essa sociedade servira-se de mim como um peão, aproveitando-se da minha juventude e da minha inexperiência. Criara apenas um falso ideal em nome da «honra da pátria»... Servira-se da minha violência interior e explorara-a para fazer de mim um bom soldado, um bom matador. Via-a, essa mesma sociedade, indiferente à morte dos jovens que morriam em nome da pátria. Comia, arrotava, fodia e dormia na maior das calmas. A sua guerra era longe, estava-se nas tintas, desde que os dissabores não lhe tocassem de muito perto. (...) A sociedade enganara-me ao fazer-me arriscar a pele por uma falsa causa. Entregara-me à vida civil sem se preocupar com as sequelas que essa guerra deixara no meu psiquismo. Portanto, eu ia atirar-me a ela e fazê-la pagar o preço do que havia destruido em mim. Sabia que ao recusar as suas leis, ao recusar-me a seguir o rebanho, ia, mais cedo ou mais tarde, pagar muito caro. No entanto, friamente, conhecia todos os riscos que uma vida marginal podia acarretar para mim e aceitava previamente pagar o respectivo preço. Estava a suicidar-me socialmente. Talvez a minha ideia de felicidade fosse falsa. Ignorava que o homem que ganha pouco fica feliz por ter ganho esse pouco pelo seu trabalho; que não é necessário ter dinheiro para ser rico; que o facto de não ter tempo dá ainda mais sal à vida quando se pode aproveitar um momento de lazer; que criar um lar e ver viver os filhos gerados por nós é a base de uma verdadeira e sã felicidade; que o heroísmo talvez seja justamente fazer face à vida e aos seus problemas. Não sentia nada disso. (...) Queria tudo, mas repudiando o trabalho como se fosse uma doença vergonhosa. (...) Sim, aos vinte e três anos ia fazer do crime uma profissão. Sabia-o, porque assim o decidira. (...) Essa determinação ia conduzir-me ao topo e fazer de mim «o inimigo público número um»  de dois países: a França e o Canadá.
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, página 76-79

Jacques Mesrine
'O instinto de morte, autobiografia de um fora-da-lei'
Edição Antígona

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