Eu tenho um passado.
Nem sempre tem glamour. Fui um gajo quase cool, irreverente, olhado, convidado a pertencer a capelinhas. Sempre recusei, sempre preferi seguir aquele que pensava ser o meu caminho. O lema, na altura, era «não fugir para trás, avançar, fugir para a frente.» Cheguei a escrever e, por isso, tinha alguma consciência que algumas pessoas ficavam pelo caminho, magoadas, desprezadas, ofendidas. Quando disso tinha conhecimento, fugia para a frente e dizia «deus não agrada a todos, porque hei-de eu agradar?», escrevia e as pessoas afastavam-se. E eu não me importava com isso, porque havia sempre novas pessoas a aparecer, sorrisos, olhos brilhantes à procura de algo que eu não sabia bem o que era, e eu pensava que era bonito, um gajo cool, que devia ser por isso, não poderia ser pelas minhas palavras que achava feias, sabia-me, afirmava-me rebelde embora não soubesse a causa, era um estudante jovem-adulto virginal em fase ascendente, a vida ainda não me mostrara o que era ser maduro, eu lia para aprender a viver, sabia que o meu futuro seria incerto, tinha consciência que a minha paixão não estava nas sebentas universitárias de, por exemplo, introdução à arquitectura de computadores, sabia que preferia a independência de pensar por mim e criar algo com as minhas mãos. Por isso, li o anúncio e inscrevi-me num curso de iniciação à pintura de 18 horas, um curso dado na associação de estudantes. O curso foi uma revelação para mim, notava-se que eu era um ser bruto, distante, de difícil comunicação, essa era a imagem que se revelava por detrás da aparência falsa do dia-a-dia de aulas de engenharia: aulas, bar para fumar e tomar café, aula, almoço na cantina, aulas, às vezes gazeta às aulas, casa, nenhum estudo, leitura ou... o que começou a surgir como resíduo de mim, a verdade de mim na qual me queria tornar: ver as formas tomarem corpo no papel, ver as cores misturarem-se na tela por acção da minha visão e da minha mão, tinha descoberto quem eu queria ser, recusava em absoluto o curso superior, queria acabá-lo mais por dever de gratidão para com a minha mãe por me ter pago seis anos de estadia numa cidade fora do seu ninho, demorei seis anos a terminar o curso e saí dele a pensar em tentar ganhar dinheiro para sustentar os meus vicios e a pintura, ao mesmo tempo imaginava-me a subir as ruas de Derza com telas gigantes para pintar em casa. Foi por estas alturas que o céu me caiu em cima, eu sabia que não era deus, mas comecei a reparar que as pessoas se afastavam e não eram substituídas, comecei a reparar que as que ficavam me olhavam já não com desejo mas com estranheza, do género «aquele gajo é completamente outsider, é fascinante», comecei a sentir-me um objecto e não sabia mais se queria que gostassem de mim pela minha vitalidade física, se pela minha capacidade intelectual, sempre fui até um certo momento um gajo com pouca auto-estima, desconfiava de tudo, não sabia porquê, não gostava de ser usado como um objecto à distância, comecei a distanciar-me cada vez mais, a tornar-me bruto, um vagaba, os dentes a cair, a careca a aparecer, até que deixei de ter companhia, substitui essas companhias físicas pelas vozes: falava alto nos quartos e imediatamente me respondia eu próprio em inglês, inventei diálogos, dialoguei com a televisão, fui internado e tudo se manifestou.
Tinha chegado ao fundo da escala. O mais irónico e absurdo é que talvez o tenha desejado.
Hoje, estou melhor, vivo sem televisão e deixei de ver cinema. Realizo os meus próprios filmes. Só fui sonâmbulo uma vez na vida embora tenha relapsado quatro vezes. Quatro internamentos, quatro começos a partir do zero. Hoje conduzo-me. Dou valor à amizade. Sei o muito que perdi.
(to be continued eventually)
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