segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Os anos em tempo parcial no asilo

Este meu primeiro livro, diz o autor, foi uma viagem de dezassete anos em mares de tempestade intercalada por longos períodos do mais alienado deserto. No dia de sair do asilo a primeira vez tinha a minha família (como sempre tive) à espera, tinha acordado bem disposto por me saber de volta à liberdade, deixei até que me dessem uma injecção de haldol sem protestar, cheguei a casa e sentei-me na varanda, saudei os pedreiros que construíam uma divisão com telhado e janela no espaço do quintal que durante trinta anos tinha sido um galinheiro, o meu pai disse-me «é para ti, para as tuas pinturas, para ouvires música.», eu baptizei-o de Anexus 51 e fui fazer uma pequena introdução de texto no livro, no capítulo zero escrevi: «título pensado há seis anos.» Seis anos desde que a ideia surgiu, desde que imaginei algo tão grande como a história de vida, morte e renascimento de um personagem. Tudo o que escrevi durante três anos foi deseperadamente rasgado e lançado janela fora de um comboio em andamento, quando cheguei à conclusão que a minha vida era uma farsa e não tinha futuro válido e que mais valia suicidar-me a ter de suportar, não a farsa que o mundo também é mas, a minha própria culpa. Pouco me recordo dos escritos deste período, além de uma história em que táxis amarelos passavam pela frente do café, um ensaio a dizer como um pai devia ser, e um poema onde eu gritava a palavra jasmim, jasmim era a namorada que eu vivera, que eu morrera e que, depois de todas as torções necessárias ao texto, por fim eu renasceria forte como o touro, que eu dizia que era, pronto para dar a cornada nos, quem sabe, invejosos que diziam «as mulheres que tu arranjas…» Eu podia ignorar responder aos que me picavam e provocavam com palavras eruditas, eles mesmos cientes que as minhas respostas eram imprevisíveis, eu podia verificar que tinha culpa no facto de alguns contactos sociais darem errado, mas não podia suportar a lei do mais forte. O mais forte era para mim aquele que vinga, e eu sabia que o mais forte tem sempre histórias sobre como ultrapassou este ou aquele obstáculo, histórias sobre gente que vai sendo enterrada enquanto o mais forte ascende na escala, sabia que a minha escala não era a mesma das pessoas à minha volta, tinha de abandonar uma vida inteira, tinha de me transferir, tinha de me tornar transparente, tinha de me transfixar, ultrapassar paredes, tornar-me pintor em vez de engenheiro. 
Tudo se complicou quando a época de exames chegou, várias pressões internas e externas exerceram peso sobre a minha consciência e julguei que devia atirar-me nessa noite porta fora desse comboio, devia acabar comigo, não suportava a culpa do fracasso com professores, com pais, com amigos, com a namorada, comigo próprio por me sentir fraco, por não querer ser e viver uma farsa, uma fraude. Foi-me necessário ser muito forte, ganhar muita coragem mental, vontade de vencer o medo de morrer, não me lembro de nenhumas últimas palavras, fechei os olhos e lancei-me no escuro e falhei a morte, falhei porque o meu desejo foi morrer e quando abri os olhos não morri e pensei que estava noutra realidade, noutro mundo, no outro mundo. Três anos passaram até ao inevitável internamento num processo em que me tornei quase-actor da minha peça de teatro, fui o ser imortal, o ser que emana, fui o ser que não morre mas que também não vive, o ser que atrai toda a espécie de comentários, e, quando nessa manhã o hospital me abriu as portas da liberdade, eu cheguei a casa escrevi I'll never die e fiz propósitos de ir comprar cds durante a tarde, entrei no autocarro e sentei-me na cozinha e li o grafitti nas costas do banco da frente dizendo «lourenço nº12», fiquei a pensar que era a primeira aposta da equipa quando fosse necessário melhorar o resultado. O problema é que eu, primeiro jogador suplente, comecei a sentir-me no autocarro com muito sono, os olhos a quererem fechar, o corpo a ficar rígido, a viagem foi um tormento, quando cheguei a casa ao fim da tarde e nos dias seguintes foi um suplicio, durante o dia não conseguia manter os olhos abertos, durante a noite não dormia, a médica na consulta seguinte prescreveu-me um comprimido para combater os efeitos adversos do haldol, a rigidez, a própria ganza deixou de fazer efeito, a médica acabou por responder à minha simples pergunta: «O que é que eu tenho?» «Você tem esquizofrenia mas se for medicado pode ter uma vida normal…» E eu que tinha passado os últimos anos a admirar os malucos pelo que eles deixaram de obra ao mundo, eu que tinha desejado escrever obra semelhante à obra dos meus mais malucos heróis, eu via-me agora, todos os dias em casa, maluco e deitado ao comprido na cama, sem conseguir dormir, sem ter vontade de ouvir musica, escrever, desenhar, sem saber porque tinha a doença, sem saber como eles tinham descoberto sem eu ter alguma vez lhe aberto a boca, e estar, ainda por cima, transformado num cadáver com cérebro de vegetal, eu simplesmente não conseguia pensar, o haldol bloqueara não só o excesso surreal de imagens pensadas como a mais leve expressão de vida pensante, descobri que do pensamento à fala muito neurónio se queima. Havia alturas em que estava no café com os vizinhos e queria participar nas conversas, dizer algo, e nem sequer conseguia esboçar mentalmente a frase quanto mais dizê-la de boca. 
Uma vez, disse a um vizinho, trolha de profissão, que tinha estudado engenharia, e, a partir dai, passei a ser conhecido como «o engenheiro», a farsa, portanto, continuava a nível social. Se eu, na fase ascendente da minha psicose, tinha alimentado a farsa, exagerado causas e consequências, toda ela se manifestou no dia de diagnóstico pré-internamento, as palavras saíram da minha boca, as acusações foram lançadas à arena do consultório e, quando lembradas mais tarde, fizeram-me sentir ainda mais desgraçado. Não saí de modo nenhum curado do hospital. Descobri as causas mas tive vergonha delas e, como agora estava na merda, já ninguém mais se importava. Já ninguém batia em mortos para ver se eles acordavam. Já ninguém matava os que queriam viver e não sabiam como e como eu deixei de saber, de me preocupar com factos apenas plausíveis que iam sendo notícia, acabei por adormecer e, durante meses, alienado sem motivos para acordar, sem motivos para viver, fui perdendo os empregos. Afinal quando o poeta escreveu «first they came for the jews» e eu não me importei, agora eles tinham tocado à minha porta, uma das vezes até conheci o metal das algemas, afinal ainda havia várias andares abaixo do zero na escala social e eu tinha sido um insecto e tinha ajudado a escavar o meu próprio subsolo e agora sentia-me um caracol impotente chorando com as lágrimas bloqueadas. Era um inumano humano sem manos que o aceitassem.

(continua daqui)


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