segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

Tudo pela vitória


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Tudo pela vitória

Se vires um polícia
correr atrás de mim com uma pistola
não lhe apontes a tua ponta e mola
Se me vires cair num horto baleado e morto
toca apenas um triste e fúnebre hino
que encha de esperança o teu coração menino
Se vires um velho cansado de mala na mão
dá-lhe a tua ajuda sê tu também meu irmão
Se vires um batoteiro prégar e bater nos filhos
é porque não acertou no totobola senta-te no chão
e deixa que entre no seu rude coração
uns acordes de viola
Se vires um cego
e uma bengala branca de Sofrimento
dá-lhe a tua ajuda
não o deixes cair com o vento
Se ouvires histórias imundas de mulheres
procura conhecê-las na beleza dos malmequeres
Se te sentires preocupado com a bomba atómica
ou a de neutrões
Segue em frente
no meio da gente
que há-de calar os maus corações
Se a morte te vencer ergue-te
tu és mais forte
O que conta é o teu querer
Se vires teu irmão na miséria
dá-lhe ainda a tua mão
não deixes que lhe falte nunca em tua casa
o teu carinho e o teu pão
Se levares pontapés em troca
não esmoreças
porque a vitória só será vitória
quando nós a merecermos
e tu que nada fazes
que só desgostos nos trazes a mereças
Sim porque a vitória também
ou é de toddos ou não é de ninguém


1984
J. Alberto Allen Vidal

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Neste abrigo nada se perde, tudo se encontra

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-- Havias de ter visto... ontem parecia um circo.
-- Um circo, então porquê?
-- Não encontro a meia, onde está a meia?
-- Vê ao fundo da cama, nas prateleiras...
-- Ah, Giuliani, procura as meias, este homem põe-me fora do sério...

Quem assim fala é a Bidente, o Giuliani e eu. Estamos na Casa 4, o Giuliani procura a meia branca de algodão que a Bidente lhe deu. Tem a outra na mão. A cama ocupa o quarto todo, à volta uma parede onde estão as fotocópias de quadros de pintores famosos e uma fotografia de Giuliani personificando Cristo na cruz durante uma procissão pascal, outra parede com armários e livros e outra parede com uma estante onde está o rádio e alguns retratos e caricaturas que um amigo do Giuliani lhe faz. «Olha aqui esta do Guevara, está fixe não está? As pessoas não dão nada por ele, dizem que ele é maluco, mas olha está fixe, quero ver se encaixilho.» Disse-me isto no outro dia, agora procura a meia junto à entrada do quarto-cama, procura por baixo da cortina.
-- Olha, debaixo da cama. Diz a Bidente.
-- Não está, a cama não tem fundo. Ó Mur, queres fazer um charrinho?
-- Está bem, tens uma mortalha grande? Não, pronto, eu uso duas das minhas e faço um l. Mas ó Bi, 'tavas a dizer que ontem foi um circo eheheh, atão porquê?
-- Tudo começou porque o bacalhau à espanhola estava uma merda, o mastodonte passou-se, o bacalhau estava duro e sabes que a Bi não tem papas na língua... Diz o Giuliani.
-- Ihihih até já lhe tinha chamado de fascista, ele ficou pior que estragado. 
-- Mas eu fiz-lhe frente, diz o Giuliani, ele sabe que não pode abusar, se não quiser que vá morar para os palácios que diz que a família tem.
-- E eu ajudei, meti-me à frente como um cento e doze, eu sou assim, estou tão orgulhosa do Giu... foi uma cenas de ciúmes na verdade, o mastodonte viu que o Giu me pôs a mão na cintura e passou-se, deu um chapo ao Giu e o Giu rispostou com um soco, eu meti-me à frente, o mastodonte chama às gajas de vacas, ele quando me punha a manápula eu tinha medo, tenho medo dele, ando há uma semana a dizer-lhe para ir ao hospital levar com o decanoato no cu...
-- É isso mesmo Giuliani, ele tem que saber que há limites, fizeste bem, tens de te defender.
-- Ele não paga nada, queria que a Bi lhe pagasse a ele, quem pensa ele que é?, as coisas mudaram, sinto-me bem, o Benjamim ensinou-me, foi ele quem me defendeu no Verão quando o Luis se passou, na altura tive medo, ele andava a dizer que a casa era dele, até queria alugar a Casa 4 e a 5, partiu-me a clavícula e eu fui amigo dele. retirei duas queixas, ele ontem passou-se e depois pôs a Bi fora da 3, e ela veio práqui, prá minha beira, estou tão feliz...
-- Só não consegues encontrar a meia, não te arranjo mais meias!, ah eu não posso viver aqui, passo-me com a falta de higiene, eu vi um anúncio perto do albergue, amanhã tiro o número...
-- Calça já essa para não a perderes... digo eu. Viro-me para a Bidente e continuo: -- Não Bi, não precisas de te ir embora, só precisam vocês os três, tu, o Giuliani e o Rui de arranjar maneiras de todos contribuirem para o bem-estar desta casa, por exemplo, tu tratares da limpeza, o Rui ir buscar água, o Giuliani... não sei, mas vocês são muito taralhoucos, já no tempo do Speed e do Ben as meias desapareciam eheheh mas na altura a culpa era do cão, agora não sei é preciso ter mais paciência...
-- Ah este homem tira-me do sério.
Eu vejo o Giuliani com um cigarro numa mão, a outra a levantar a cortina e a procurar no chão entre a cama e a parede com a prateleira do rádio. Ele está stressado porque não tem mais cigarros e quer ir comprar. Faz tenção de calçar os sapatos sem meias e, quando pega num deles, embate no aquecedor que se vira e danifica, parte-se uma das três varetas eléctricas e os vidros caem ao chão.
-- Cuidado Giuliani, olha os vidros, cuidado com os pés.
-- Olha encontrei, vou calçar esta.
Vejo-o calçar uma meia azul, a meia desirmanada que ele procurava era branca. Vejo e a Bi não porque está na sala, mas eu não digo nada senão ela irrita-se, ela diz que o Giuliani tem cultura mas está a ficar primitivo. É um pouco verdade, às vezes penso que o Giuliani se desleixa com a saúde, penso não, desleixa-se mesmo, perdeu a medicação pós-operatória há dois meses atrás, a gente até pensou que alguém a roubasse para ir vender no mercado negro mas, afinal, foi encontrada um mês depois ao fundo da cama, o problema é que o problema de pele, ao qual tinha sido operado, passou~lhe para a orelha, agora alastrou para a cara, porque ele não tomou os antibióticos na altura certa, vá-lá que houve um enfermeiro na Caixa que lhe fez um penso a cobrir a cara toda, assim ele não vai lá coçar o pus.
Agora já ele calçou os sapatos, faz ideias de ir ao café buscar o tabaco.
-- Espera aí Giu, olha o charro, fuma um pouco, acalma um pouco, relaxa.
Entretanto o Rui entra em casa, estamos todos a mudar a nossa opinião acerca dele, está a fazer-se à vida, arranjaram-lhe um curso de formação num centro textil, três dias por semana, subsídio de almoço e de deslocação, são mais algumas dezenas de euros por mês, está contente, a Bidente aproveita para me contar que o Luis quando a expulsou da Casa 3 convidou o Rui para jantar.
-- Sentiu-se sozinho ihihih.
O Riu ri-se monocórdico: -- Ah a conversa dele, só filmes, esteve no Afeganistão como sniper, matou o terrorista, apanhou o avião para casa, aterrou no lago e ainda acordou antes de nós, só filmes...
-- E quando ele disse que foi a Madchester... ouviram bem, a Madchester tocar quatro horas e meia no concerto de solidariedade ihihih. Ri-se a Bidente.
-- Bem, Bi, sabes o que eu acho, tu estavas a dormir com o inimigo, tu dormias a dois metros do colchão dele, a imaginação dele cresceu, o teu sofá estava mesmo ali pertinho...
-- Não, ele não era inimigo, ele não toma, é, os comprimidos, qualquer dia está aqui a polícia para vir buscá-lo para o acompanhar ao hospital. Mas ele, às vezes, até era fixe, tínhamos conversas interessantes, falávamos sobre sexo...
-- Atão claro, interrompi eu, é o que eu digo, a dormir com o inimigo, é natural, a imaginação cresceu, cresceu.
Repito e faço um pouco de silêncio dramático para que ela perceba que além de ter crescido a imaginação também cresceu mais qualquer coisa ao mastodonte. O efeito na Bidente foi tão grande que ela disse:
-- De facto, tens razão, eu andava mesmo a dormir com um inimigo, ah aquelas manápulas...
-- Olha, vou-vos dizer uma coisa, vocês não se passem com ele, mas o Giuliani não foi sem meias ao café, ele calçou uma branca e uma azul, vá lá, tenham paciência, não lhe fodam a cabeça, a meia aparece. Levem na desportiva. Riam-se apenas, dormirão melhor.
Começo a fazer outro charro quando Giuliani chega. Senta-se em cima da cama em frente a mim que estou na sala, sentado na poltrona de executivo que encontraram no lixo. A Bidente e o Rui estão ao meu lado sentados em bancos. A Bidente repara na cor das meias quando ele passa e ri-se para mim. O Giuliani tira os sapatos e mostra o saco com os novos sapatos que um amigo do café acaba de lhe oferecer, estende-se ao comprido, puxa de mais um cigarro, mete-o na boca, procura o isqueiro.
-- Onde está o isqueiro, alguém viu o meu isqueiro vermelho?
-- Este é meu, diz o Rui.
Giuliani leva a mão ao bolso e, surpreso, olha para mim. Eu olho para a mão dele e vejo que ele tem a meia branca, aquela que faltava, na mão. Desato a rir:
-- Ahahahah olhem, o Giuliani andava à procura do isqueiro, meteu a mão no bolso e encontrou a meia ahahah o Giuliani é o maior.
-- Eu sou mágico, neste abrigo nada se perde, tudo se encontra.

Agora só falta encontrar o isqueiro mas agora vou-me rir até adormecer. O riso é terapêutico
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Claudio Mur

Protect me you

protect me from ravagement I'm ten years old I don't know what to do protect me myself I'm fourteen there's nothing to do protect me yourself I'm sixteen protect me from starving I'm eighteen protect me you I don't know what to do protect me demons that come at night I don't know what they say their whispering sends the night air away and makes me forget I hope they come again and again here they come again and again I hope they come again again again

quarta-feira, 14 de fevereiro de 2018

Beto police on the dread

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Horace, um agente da polícia, estava a preparar frangos do campo Rock Cornish para um jantar especial. Estes frangos do campo estão congelados, duros que nem pedra, pensou Horace. Tinha vestidas as calças azuis do uniforme.
Dentro dos frangos do campo estavam os miúdos num saco de plástico. Usando o alicate de pontas finas, Horace extraiu os miúdos congelados do interior das aves. Hoje a noite vai ser o baile da polícia, pensou. Vamos dançar até de madrugada. Mas, antes de mais nada, estes frangos do campo têm de ir para dentro do forno a cento e oitenta graus.
Horace engraxou os sapatos pretos de atacadores. Será que Margot iria «para a cama» com ele naquela noite? Naquela noite tão especial? Bom, se não fosse... Horace remirou os pescoços de frango, que o alicate dilacerara. Não, reflectiu, este pensamento não é apropriado. Porque eu sou um membro das forças da ordem. Tenho de tentar refrear o meu ódio. Tenho de tentar ser um exemplo para o resto das pessoas. Porque se elas não podem confiar em nós... nos homens de uniforme azul...
No escuro, à porta do baile da polícia, a mais negra melancolia esperava por Horace e Margot.
Margot estava sozinha. As companheiras de quarto dela tinham ido passar o fim-de-semana a Provincetown. Pintou as unhas com verniz de pérola, para condizer com o tecido cor de pérola do vestido novo. Vão lá estar coronéis e generais da polícia, pensou. O condestável da polícia em pessoa. Ao rodopiar diante do palanque, irei volver um olhar para o alto. O tom de pérola dos meus olhos a cruzar-se com o cinzento de aço das altas patentes.
Margot meteu-se num táxi e foi até à casa de Horace. O taxista estava a pensar: Que bela lasca. Era bem capaz de dar umas voltinhas com ela.
Horace tirou as aves do forno. Enfiou pequenos anéis de folhos dourados, que vinham incluídos na embalagem, nas pontas das pernas dos bichos. Em seguida, tirou a rolha do vinho, pensando: Esta cidade é impiedosa, impiedosa. Para aqueles a cuja voz falta o timbre da autoridade. Felizmente, o uniforme... Porque é que ela não se me entrega? Será que se julga capaz de resistir à força? À força das forças de ordem?
«Estes frangos estão deliciosos.»
Conduzindo Horace e Margot suavemente até ao arsenal, o novo taxista pensava acerca de basquetebol.
Porque é que as pessoas aplaudem sempre o homem que lança ao cesto?
Porque é que não aplaudem a bola?
É a bola que, na realidade, entra no cesto.
O homem não entra no cesto.
Nunca vi um homem que entrasse no cesto.
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páginas 232-233

'60 histórias'
Donald Barthelme
tradução de Paulo Faria
edição Antígona



terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

Um pintor de cavanhaque

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Eu, Mur, me pergunto: escrever, escrever porquê, escrever para quê?, eu que não sou, não me considero escritor pergunto porque ainda escrevo textos. E porque digo que não sou escritor se até tenho já cinco livros editados em papel e encadernados pela minha própria casa e três já disponíveis em pdf no archive-ponto-org? É assim tão diferente a minha situação daqueles que escrevem para a gaveta?, não escrevo eu para a gaveta também? E porque escrevo eu para a gaveta? Há muito tempo, enviei para uma editora uma encadernação em papel A4 do que pensava ser o meu primeiro livro acabado e eles responderam dizendo que a obra era original e que a editariam se eu pagasse na altura quinhentos euros pela edição de três mil exemplares, eu telefonei para lá dizendo que não tinha esse dinheiro e eles sugeriram que eu arranjasse patrocínios, eu desinteressei-me, fiquei a pensar que aquilo não era uma editora e era mais uma tipografia, foi também numa altura em que eu estava mal psico e fisiologicamente, abandonei mesmo o livro, deixei-o de lado, mas as palavras não me largaram, não descolaram da memória, tornaram-se fantasmas, o que era verdade tornou-se ficção por não haver testemunho e o que era ficção saltou da campa para me abismar, coisas mal resolvidas que se iam diluindo em quadros como gritos pincelados a partir de ideias navegadas entre a memória e o meio-ambiente, ia tentando arranjar um emprego quando sentia que nada de útil sabia fazer, o stress era diário, todos os dias caminhava meia-hora até ao cibercafé para ver se havia propostas de entrevista no email e quando uma aparecia eu ia e eles olhavam para mim e diziam que depois ligavam, a medicação deixava-me em estado rigído com os nervos e músculos atrofiados, descer escadas sem mexer a cabeça seria mais fácil a um aleijado do que a mim, ele já estaria treinado para esforços físicos, eu era novo ainda mas parecia um inválido, pensei que uma editora queria simplesmente ganhar dinheiro à minha custa. Verifiquei que se pagasse eles editariam um livro cheio de erros ortográficos e gralhas não pretendidas. Escrever por isso para quê? Para que algo bem feito, algo de bom se transmita, algo faça o mundo girar em certa direcção, escrever para criar um lóbi, escrever para ter dinheiro nos bolsos, para ter cem mil amig@s na conta do face mandando beijinhos e forças e abraços? Porque escrevo eu em primeiro lugar?, sei porque escrevi no passado, escrevi para me libertar do que estava mal dentro de mim, daquilo que era errado fazer, escrevi talvez para contar uma história de como um gajo pode andar a vida inteira sem nunca perceber o que anda cá a fazer, a espécie de confissão de um Dostoievski louco e não epiléptico, se anda cá para agradar aos outros já que ninguém nos agrada, há um grau de paranóia no mundo em que eu vivo, será que eu vivo?, será que me respeitam será que eu respeito os outros?, a comunicação é dolorosa, faz-se de quase-agressões a todo o momento, coisas que ficam no ar quase-ditas, os olhos que as pessoas fazem e o significado que imagino nesses olhos, as pessoas limitam-se a ganhar o seu e a afastar quem lhes pode causar problemas, escrever, escrever, escrever a agressão diária?, escrever que estive duas horas e meia no centro de saúde e vi a médica sair para ir tomar café e voltar e meter à minha frente um ou mais doentes para depois me dizer que se era para pedir uma receita podia ter feito um pedido por escrito?, escrever o que está mal no mundo, escrever para quê?, vai a médica mudar o seu modo de atender os doentes?, vai ao menos dizer-lhe boa tarde quando ele entra no seu gabinete?, não, vai fazer tudo igual no dia seguinte e ainda queixar-se que tem muito trabalho, escrever talvez que lhe disse que a última consulta tinha sido há seis meses, escrever que lhe dei a entender que o seu trabalho não vale nada assim, deverei eu estar a cair de morto para aí se preocuparem comigo, escrever que saí de lá com fúrias e que  por causa da fúria quase tratei mal uma mãe cigana, vestida de preto que trazia o filho à consulta marcada para uma hora à qual eu ainda não tinha sido atendido, escrever que a funcionarária em atendimento usou a minha fúria para dizer à mãe cigana que ainda teria de esperar mais, e que por causa disto não consigo descansar, é por isso que escrevo, escrevo para ver se a ansiedade me deixa dormir, escrever um livro do ressabiado, dizer os males que me fazem, escrever que me quiseram publicar um livro que estava cheio de erros ortográficos, será que o leram, será que ia haver um revisor de texto, será que um editor não se preocupa com a qualidade do que publica, ou são tudo sociedades anónimas onde o editor se descarta e remete para o autor a responsabilidade?, eu fui revisor do meu próprio texto e ainda hoje encontro erros, gralhas nos pdf online, eu quis ser tudo e a tarefa é grande demais para uma só pessoa, mas lá está ninguém se interessou e eu também me desinteressei, não procurei outros editores, não conheço muitos, não tenho amigos no meio, e os amigos publicam os amigos, eu não sou escritor, eu sou um escrevedor, quem é escritor é o meu vizinho Giuliani, mais velho que eu quase vinte anos, esse sim, sempre de livros e cadernos e esferográficas na mão, sempre a escrever poemas, eu à beira dele não posso ser escritor, não levo vida de escritor, a minha vida de escritor resume-se a dois ou três anos do meu passado, refere-se à passagem da universidade para o hospital passando por um período de emprego, foi nessa altura que mais escrevi, também eu andava entre casa e o café com livros na mão, ia ler e fumar para o café, a lei do tabaco acabou com a minha vida de café e o tempo em que eu ia ler para o Armenia Bar às três da manhã já é apenas uma memória selectiva, não foi só a lei do tabaco, foi também o aparecimento de um quase-sósia no café, Claudio como eu entrando de livro debaixo do braço, mas ele todos os dias trazia um diferente, parecia ser o seu objecto equivalente a uma mala de senhora, nunca falava do livro «que andava a ler», anos mais tarde faliu uma imobiliária, cansei-me, cansei-me de escrever e de andar com molesquines, só durante surtos psicóticos posteriores no que chamei as cartas-bomba a escrita voltou, tornou-se epistolar, agora, escrever é rever todo esse caos e o modo como eu me conjugo agora com o caos, o mundo, a selva, como eu dou um sentido ao dia-a-dia, as ligações que vou fazendo. O Giuliani tem isso tudo também, à maneira dele, e também ele está bloqueado num período do seu passado, o tempo que passou em Angola, o boi-cola que ia comprar aos musseques, os palácios dos pais dos amigos que visitava e com quem acampava no Mussulo, também ele tem saudades de um idílio que não voltará, eu talvez já me tenha desinteressado de ter saudades, poucas pessoas ficaram desse passado, com poucas tenho contacto e não é difícil esquecer-me até das caras das pessoas, um amigo com quem não falo há quase três anos trabalha agora como segurança no centro de saúde, passei por ele e não o vi da primeira vez, eu esqueço-me das pessoas, vou vivendo o dia com a comunidade, aprendendo histórias, uma ou outra lição de vida com o Giuliani, fiquei a perceber que há famílias bem piores que a minha, eu que me queixo de indiferença e falta de amor... não posso senão concordar que a família do Giuliani o trata bem pior, contou-me que o quiseram interditar, pô-lo debaixo de um tutor tinha ele já mais de trinta  anos, chegou mesmo a ser internado e a receber tratamento de electrochoques na Casa Rosa, isto em 1984, por causa de um charro, por causa de fumar ganza, a família pô-lo fora de casa, deixou de lhe dar dinheiro, preencheu-lhe os papéis para uma reforma de invalidez e obrigou-o a assinar a sua condenação à indigência, deu-lhe três casas devolutas com telhado, a irmã desloca-se do seu palácio para visitar o outro irmão internado-para-sempre na Casa Rosa e nem uma visita de cortesia ao Giuliani lhe faz!, eu ouço ele contar tudo isto e depois pergunto a mim próprio porque me queixo de as minhas irmãs quase não me telefonarem, da minha mãe me ligar uma vez por semana, do meu pai mal me dirigir a palavra, o pai do Giuliani deixou de lhe dar brinquedos aos seis anos porque ele espatifou um carrinho de brincar... tirando todo o exagero, a minha história é pequena em comparação com a de Giuliani, ele vende uma encadernação A4 a preto e branco de um livro seu por vinte euros, os meus textos pouco valor têm em comparação, há muito que tenho dificuldade em escrever, há muito que descobri que prefiro pintar imagens, há muito que deixei de querer ser tudo, sou apenas um pintor de cavanhaque que foi vêr a exposição da Mariza Merz a Serralves.
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Claudio Mur




Still a child

The day I was born,
Your shadow fell across my mother's breast
When I opened my eyes,
You coloured my mind
Every move I make is by your desire.
Every move I make is by your hand only
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
But I'm closer to death
Cover me in roses,
Gently touch me while I sleep.
When I dream I'll dream of drowning in a pool of scented blood.
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
But I'm closer to death
You said "Take this, it's yours",
So I've kept it locked away.
Now you're curled up beneath me in a pool of your own blood.
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
But I'm closer to death
I'll cover you in roses,
I'll hold your head against my breast
When I dream I'll dream of drowning in a pool of your sweet blood.
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
Now I'm still a child,
But I'm closer to death


quarta-feira, 7 de fevereiro de 2018

Publicidade literária:
Barthelme, João Ubaldo Ribeiro, Diogo Vaz Pinto e Alface por Teresa Carvalho

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Ontem à tarde, encontro o Rui na Casa 4, ou melhor, o Rui encontra-me na sua própria casa. eu estava a ajudar o Giuliani a colar na parede do seu quarto impressões em papel formato A3 de quadros de piintores para os quais estou a fazer algumas versões. Aproveitei para fotografar Giuliani, talvez o venha a pintar, tenho ideias de fazer composições em tela dos meus vizinhos. O Rui que anda longe e só chega noite dentro para dormir, entra e, cheio de alegria, cumprimenta-me, a Bidente vem atrás porque lhe cheirou à ganza do Giuliani e com grande lata-de-pau pois, uma hora antes, ela tinha-lhe dito, à frente de todos nós, que ele causava mau ambiente, foi aí que ele, Giuliani, me convidou para irmos para a casa ao lado. Mas, na realidade, a Bidente sentiu-se só, entrou e disse «o mastodonte está a dormir.» Ora, compreendi eu «a dormir o mastodonte, como tu lhe chamas, não representa besigol...» mas fiz por lhe sacar à socapa uma foto e ela, zangada ou surpresa com a audácia, ordenou-me, é quase o termo para o seu tom de voz, ordenou-me que ligasse o cilindro para ela tomar banho e eu respondi-lhe que só Domingo próximo. Como o Giuliani me fez sinal, disse à Bidente que queria falar a sós com Giuliani, foi uma espécie de chamada à ordem, afinal, ela parece putativamente a nova mandona em duas casas ocupadas e está a querer tomar banho duas vezes por semana no meu polivan, pensando talvez que o meu alojamento é um hotel com electricidade de graça. Por isso e como ela estava feita estátua em mármore, apliquei-lhe a taxa turística e repeti-lhe se não se importava de abandonar a Casa 4 para eu ter umas palavras com Giuliani. Para a compensar da sua descida à realidade e, também para poupar ao Rui e ao Giuliani a ida ao fontanário para recolher bidões de água, disse que lhes arranjaria a água eu-próprio. 
Eles vêm comigo buscá-la, eu trago o casaco que troquei com o Giuliani e com o qual agora já não vou passar frio e ao mesmo tempo melhorar a minha aparência em público, quando sair do buraco e me tornar mais apetecível aos olhares femininos, Valha-me Cão, foi assim que gastei o dinheiro do último quadro que vendi: dois pares de calças de ganga em saldo, um casaco comprido em terceira mão, um almoço no restaurante à patrão e o sinal de entrada (metade do valor) para três molduras em caixa alta de madeira, uma nova tela para pintar «O circo de amigos» a partir de Chagall. Fiquei com trinta euros para comprar comida e tabaco. Ainda assim, o vício da literatura tentou-me e pensei em comprar «A casa dos budas ditosos» de João Ubaldo Ribeiro, lembrei-me da tesão que a sua leitura parcial me deu há anos numa noite surrealista numa livraria-galeria, entretanto já falida, onde vi o livro à venda pela última vez. O vício deste livro tentou-me uma vez mais, mas ainda não foi desta.

Oito horas da noite, não me apetece demorar muito tempo na cozinha, arranjo três sandes de pão-de-forma com duas fatias de queijo, uma de mortadela, um bom pedaço de omolete e duas salsichas grelhadas, ponho o café de saco a ferver, tomo a medicação rotineira e lembro-me que o Rui não tem aparecido em casa a horas decentes porque não tem quem lhe cozinhe o jantar, a Bidente anda sempre a mandar bocas dizendo ao Giuliani para o põr debaixo da ponte, e eu tenho pena do Rui porque ele é esquizofrénico como eu, aliás como muitos nesta comunidade e todos, mesmo a Bidente, já passámos pelo sistema hospitalar, o Rui é como eu, como a Bidente, como o Giuliani, como o Luis, como o amigo Dário saído há um mês da Casa Rosa onde esteve noves meses em tratamento a uma psicose tóxica e enquanto a assistente social não lhe arranjou um quarto, todos fumamos e alguns tomam metadona, alguns recebem uma injecção quinzenal intra-muscular na nádega, e eu sei que o Rui não jantou, a Bidente não cozinha para ele, aliás, tenho sérias dúvidas de que saiba cozinhar, uma vez de passagem em casa deles reparei que ela perguntou ao repatriado Benjamim como se cortavam batatas para fritar, o Luis também se desenrasca mas era Ben que cozinhava para todos, agora que ele se foi embora ninguém cozinha de tacho, comem o que a associação de caridade lhes oferece: sandes, iogurtes fora de prazo, sopas e fios de ovos, bolos de creme e pão de sementes, «... se ao menos dessem carne e sacos de arroz e massa, agora doces e guloseimas...». Nada disto chega à boca do Rui, ela não deixa, ela que rouba brincos nas lojas dos chineses está obcecada e diz que ele lhe roubou o topo-de-gama, ela quer ver o Rui fora da casa, casa!, um abrigo, não passa de um abrigo com telhado!. e eu penso a meio da minha segunda sandes mista: «vou-lhe ligar e dizer para vir aqui.»
Ele chega e eu pergunto-lhe se já comeu e ele diz que não, ofereço-lhe uma sandes, arranjo-lhe um iogurte líquido para ele não se empanturrar, verto a cafeteira para duas canecas e preparo um dos charros que o Giuliani me arranjou. É ai que Rui me diz que o seu jantar costuma ser duas sandes mistas e uma cerveja no café onde tem conta mensal, paga quando recebe a reforma, paga cinquenta euros ao Giuliani por um colchão numa casa sem porta, sem água, sem luz e sem comida, compra tabaco barato ao Adriano e fica sem dinheiro dois dias depois. Digo-lhe para nunca deixar de pagar ao Giuliani todos os meses: «tu não arranjas mais barato e em nenhum quarto tens comida grátis, a tua reforma tal como a minha é pequena, mas nunca te esqueças de pagar, isso é uma garantia para que não te obriguem a sair, sabes que a Bidente manda mais ou menos no Giuliani, ela não gosta de ti...»
Rui pergunta-me o que estou a ler e eu digo-lhe que é um livro de Donald Barthelme e falo-lhe das histórias absurdas e sem sentido, dou um exemplo: « eh pá, uma história é uma gajo a falar, começo a ler e leio um gajo a falar, um monólogo ao longo das frases, depois começo a reparar que ele está a falar para dois amigos que de vez em quando vão também falando com inserções de parágrafos em calão acerca da vida familiar, e depois reparo que eles estão num carro a falar, conduzem um carro e conversam a caminho de algum lado, eles falam do caso em que um deles foi abandonado pela mulher que partiu para o estrangeiro num avião, alguns calam e lembram na sua memória o seu caso semelhante acontecido anos antes, depois viram-se para o defunto e dizem que não acreditam nele!»
«Não acreditam nele?!» diz Rui. «Conta lá isso melhor, Mur?»
«Dizem que ele não está a contar os pormenores, dizem que falta emoção e que ele está a mentir, que não está a contar que roupa vestia ela, o que jantaram juntos pela última vez, a frase fatal, etc. sei lá, e depois a história acaba com eles saindo, acho que, numa estação de serviço e dando-lhe uma carga de porrada eheheh, é absurdo!»
Despeço-mo do Rui e venho ler para o quarto, leio mais uma história e decido fazer o último finex, abro o email e vejo uma nova mensagem de uma livraria em Derza, faço planos de ir lá amanhã gastar os meus últimos euros e comprar «Ultimato» de Diogo Vaz Pinto e «Alface. Levantar as saias ao Diabo», dois livros da editora Maldoror. O que vale é que dia 8 recebo a reforma.
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Claudio Mur

sábado, 3 de fevereiro de 2018