sábado, 26 de maio de 2018

E afinal um caso tão simples e tão vulgar.

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A criada passou apressada e fez de conta que não ouvira o Barão perguntar-lhe o que tinha sido. Então voltámos ao quarto para vermos. Já não havia fumo. No meio do chão estavam a colcha da cama e os restos do travesseiro de palha. Tinha sido com o cigarro.
-- Ias morrendo assado -- comentou o Barão, e começou a rir, a rir, com um grande exagero.
Pegou-me no braço. Eu também ria. Ele parecia doido, às gargalhadas; queria falar, começava a frase, mas tinha outro ataque de riso:
-- Quando saíste...
E o riso sacudia-o numa explosão irresistível. Daí a momentos podia dizer mais umas palavras:
-- ... parecia que vinhas do Inferno!...
Fomos dar outra vez à sala de jantar e o Barão quis festejar o meu regresso do Inferno com mais champanhe. Aquele sussto despertou-me uma alegria muito expansiva. Na verdade tinha escapado de morrer queimado, graças ao barulho que ele fizera a bater na porta. Devia-lhe talvez a vida.
-- Deves-me a vida!
E o champanhe continuava a transbordar das taças e a erguer-se em brindes a tudo o que nos lembrou, e a todos os nossos desejos, sonhos, ambições, a todas as nossas saudades, desilusões, a todos os nossos amigos, a tudo quanto nos ocorreu naquele momento de sinceridade. Esses brrindes foram verdadeiras confissões, como o abrir das nossas almas. E, na verdade, a quem podemos falar com mais franqueza do que a um desconhecido que nunca mais veremos? Além de que estes momentos de espontânea revelação em que abrimos quanto podemos todas as portas e alçapões de nós próprios, estes momentos são tão difíceis de atingir, por cobardia e por orgulho e pela incompreensão que nos rodeia, que, quando se consegue assim uma hora dessas, não devemos perdê-la, embora se fique, no fim, arrependido e triste como quem fez uma traição a si próprio. Mas, ao mesmo tempo, dá o alívio de quem abre uma válvula de escape quando a pressão por dentro é já demais. Entre outras coisas, contei-lhe uma melancólica história de amor, que era a minha. Foi a primeira pessoa a quem confessei, dez anos depois de ela ter passado e aniquilado a minha vida. E nunca mais, a ninguém. Creio que, naquele momento, principalmente, a recordava a mim próprio. Revivi essa história triste como se fossem os melhores dias da minha vida, que eu não quisesse deixar esquecer, recordando-a em voz alta, ouvindo-me a mim próprio, como se outro ma contasse. O Barão, imóvel, olhava-me com o olhar muito fixo. No fim vi-lhe os olhos cheios de lágrimas, Também os meus estavam rasos de água. E afinal um caso tão simples e tão vulgar.
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páginas 58-61
'O Barão'
Branquinho da Fonseca
edição Livros de Bolso Europa-América

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