sábado, 18 de maio de 2019

Lama

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-- Eu jantei ainda agora...
-- O que é que jantaste?
-- Macarrão com salsicha!
-- Ainda tens?
-- Sim, não vês que eu voltei para casa dele.
-- Mas eu só te dei um pacote e duas latas, um pacote só dá para duas refeições.
-- Mas aí eu tomei água.
-- Iá...
-- Quando eu olho para a minha casa e ela está de cabeça para baixo, chega a dar-me uma tristeza, no máximo em dois dias eu ponho ela em ordem. Tem que ser. Tu já jantaste?
-- Já. Já são quase nove horas. Eu daqui a pouco até me vou deitar, mais uma hora ou quê e...
-- Ora eu me acordo e você vai dormir? Danou!
-- Ihihih, sabes como é o meu sistema, deito-me sempre cedo.
-- Eu vou dormir aí estilo meia-noite praí, vou assistir ao filme, vou dormir, amanhã tenho de acordar cedo para ir resolver os meus problemas, dependendo da hora que eu acordar eu vou lá buscar as minhas coisas... e entregar a chave dele.
-- É o que fazes melhor, ele mandou-te embora.
-- Eu fiquei revoltada com ele é porque... foi a maneira como ele falou «saia de dentro da minha casa», e me humilhou.
-- O que é que ele disse mesmo?
-- Saia de dentro da minha casa!
-- E a que horas é que ele disse isso?
-- Quando eu cheguei?
-- A que horas é que chegaste?
-- Sei lá, umas cinco, seis horas da manhã.
-- Ele queria que tu saísses de casa às cinco da manhã?
-- Pois. Mas eu estava com sono e fui dormir.
-- Claro, foste dormir, e onde é que ele dormiu?
-- Ã!, ele dormiu no canto dele... mas ele dormiu e quando eu cheguei ele acordou... e depois não dormiu mais, ele saíu, uma coisa assim, eu peguei no sono e acordei na hora do jogo, olha o meu Boavista ganhou de três!
-- O Boavista ganhou três?
-- Quando eu saí estava três a zero e não sei quanto ficou no final.
-- Espera aí que eu vou ver, deixa ver se eu consigo ler o resultado do Boavista... ah, o Boavista ficou três a um...
-- Eu não estava reparando muito no jogo, depois de terminar o jogo eu estava sentada numa mesa e ele estava sentado noutra, mas eu nem falei com ele nem nada, não quis conversa, portanto... eu ia falar com ele para ele me tratar mal? Não!, e à frente dos outros? Aí é que eu me ia passar dos carretos.
-- Iá...
-- Eu fiquei num canto e ele ficou noutro e quando terminou o jogo ele ficou mais um pedaço ali, depois foi embora para casa dele, depois... ele voltou, só para ver se eu estava lá, ele voltou, sentou numa mesa, e nem passados cinco minutos levantou-se e foi-se embora. Foi quando eu me vim embora, terminei a minha cerveja, vi um pedaço do Boavista e vim embora, se ele voltou lá novamente eu não sei, também não me interessa, quero lá saber, para mim ele morreu, está morto e enterrado, agora não tem volta, quero a minha liberdade, estou na minha casinha estou no meu canto, não me chateio não digo nem escuto. Não é?
-- É, acho que sim.
-- O homem sempre a duvidar... como é que eu sabia se era homem ou mulher?
-- Diz...
-- Eu disse: ninguém podia ligar-me para o telemóvel que ele queria saber quem era, e eu sou obrigada a dizer quem me liga?!, ele queria saber se era homem ou mulher... havia dias em que chegou às duas horas da manhã, duas!, quer dizer... ele pode sair e eu não posso?, a hora que eu quiser ora que caralho!, desde quando ele é meu dono?
-- Claro!
-- E apeteceu-me ir tomar uma cerveja e fui, o bar estava fechado, então fui ao da porta ao lado, bebi paguei e olha, e fui-me embora, quando eu chego depois ele acorda e diz «saia de minha casa!», ele tratou-me como se eu fosse uma cadela, ele que fique com a riqueza dele, eu fico aqui na minha pobreza...
-- Tratou-te mal.
-- Mas ele não é meu dono, ninguém é meu dono, eu sou dona de mim própria.
(Silêncio na chamada pela câmera web, ouvimos um vinil de música andalusa marroquina.)
-- Gostas mais desta música?
-- Não. Música indiana é muito mais bonita.
-- Não gostas? O que queres ouvir? Queres ouvir Nubinha?
-- Pode ser.
-- Eheh eu já tinha saudades destes momentos. Vais ouvir Nubinha. Nunca ouviste Nubinha pelo computador!
-- Pode ser.
( Então eu ponho um lp de Núbia LaFayette a tocar no giradiscos, a primeira música chama-se Lama, fala de humilhações conjugais.)
-- Estou sem net no telmóvel. Não posso falar com a minha mãe.
-- Tens que te ligar à rede do computador pelo wifi.
-- Ah mas eu não sei como isso se faz.
-- É facil, é ir ao router e ver por trás o nome da rede e a palavra passe e depois meter no telemóvel.
-- Ah mas eu vejo isso amanhã, deixei lá os meus óculos...
-- Tens a lupa!
-- É! Com um olho fechado e outro aberto?
-- Escreves num papel.
-- Quando eu criar coragem que eu daqui não saio agora.
-- Tábem, não precisa de ser agora.
-- Também agora não vou falar com a minha mãe, mas nem consigo jogar, não tenho os óculos... diz?
(Ouve-se Núbia a cantar devolvi e eu começo a cantar o refrão.)
-- Ah mas eu não devolvi nada, que ele não me deu nada, quero dizer, para não dizer que ele não me deu nada ele deu-me umas botas e eu gosto muito delas.
-- Já trouxeste?
-- Não, estão lá. Vou lá amanhã.
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Anónim@s do século xxiii



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