quarta-feira, 22 de maio de 2019

Maria João Potiguá

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É o que eu digo: dá para fazer um livro. Esse, pelo menos, teve outro tipo de pensamento, não quis se matar, não quis se suicidar, olha, entrou para a polícia, «para fusilar os bandidos», ah olha, prender os bandidos, «é não é?», pois... hoje ele é tenente... não, ele é capitão, pelo menos teve um bom pensamento, tocou a vida dele para a frente, mas tem um problema: ele não casou, ainda não casou, «eheh vai casar contigo quando voltares à tua terra». Não, não quero, não dá certo, ele é da polícia e eu sou da turma dos vagaba: «ele é o eterno apaixonado». Depois ainda há outro, o pai da minha filha, esse é que foi uma guerra para me livrar dele, chamava-se... é engraçado que tive um casal de filhos e os pais se chamavam pelo mesmo nome: Zé Tó, sim, casei com duas pessoas com o mesmo nome, sim, para me livrar do pai da minha filha foi problemático, eu com seis meses de gravidez parecia que tinha duas crianças dentro da barriga, poim!, uma senhora barriga, não foi à toa que a minha filha pesou três kilos e trezentas gramas, e ele mesmo, eu grávida, puxou uma faca para mim, eu disse que não queria mais ele e botei a roupa dele no meio da rua, eu quando era mais nova era ruim, não suportava ninguém, eu era como minha mãe dizia «tu não tem coração» ah pois não, pois o meu caminho eu faço sempre, não sei porquê, ele ameaçou-me com uma faca, eu grávida, pôs uma faca na minha barriga, eu disse «olha empurra, se és homem enterra, agora ficar contigo eu não fico», e não fiquei, tive minha filha e não fiquei com ele nem lhe dei o direito de olhar para a minha filha, eu não deixei ele se aproximar da minha filha, só o via bêbado caindo pelos cantos, bêbado mesmo, não comia, bebia para dormir e dormia para beber, ia chegar perto da minha filha bêbado por que propósito?, não, não deixei. Aí uma rapariga se interessou por ele, também era cachaceira como ele, juntaram tomé com bebé, e os dois andavam pela rua bêbados, uma caía para o lado o outro caía para o outro, olha que figuras lindas!, mas mesmo depois que o mandei embora ele me pastoreava na rua como se eu fosse a ovelha e ele o flautista que puxa de faca, ele me seguia. Na altura, a minha mãe estava separada de meu pai, viviam em casa separadas e era minha tarefa levar o jantar a casa de meu pai, ele sabia cozinhar como ninguém, ele era cozinheiro de restaurante e tudo mais, e não tirou curso, nunca foi a uma escola, é analfabeto, só sabe escrever o nome mas cozinha como ninguém, mas eu tinha de levar a comida de meu pai: na altura em que ele se separou da minha mãe, ele passou um período difícil de doença, e era eu que estava ali segurando o barco, ia lá levar-lhe o almoço, ele não obedecia a ninguém, mas eu tinha maneira de falar com ele, primeiro porque ele era meu pai e não lhe ia faltar ao respeito, muita calma, dava as voltinhas, brincava com ele, fazia como com os bébés «olha o aviãozinho» e ele abria a boca, começava a dar-lhe a volta, o meu pai era jovem na altura, e foi aí que quando eu deixei o pai da minha filha ele me começou a seguir quando eu ia levar o almoço a meu pai, e me pastoreava, como eu não levava desaforo para casa, eu era daquelas «a faca entrava, o sangue descia, dizia ‘empurra anda lá isso é pouco’», não levava desaforo para casa, senão ficava com remorsos, tinha de chegar perto da pessoa e conversar e concerteza eu ia dormir no xelindró, eu era assim, dormia um dia e o outro dia também, todo o dia eu arranjava uma zaragata, uma bagunça, na minha terra eu chegava num café, começava a beber cerveja e ia logo para o balcão, sentava-me em cima do balcão, parecia a patroa quando não era, eu era uma cliente, já estava chapada «agora vou-me sentar em cima do balcão e se quiser chama a polícia», e eles chamavam, lá vou eu, os rapazes já estavam tão acostumados que acabavam por dizer «dorme aí em cima do balcão e amanhã vais para casa», era assim que eles diziam para mim, era um dia sim outro dia também, o que eles não me aturaram, e olha que na minha terra eu tenho um primo que é cabo da polícia, e por causa de eu estar sempre a ir de saco ao fim da noite, ele hoje não fala comigo, quando ele passa na rua ele muda de passeio, todo fardado todo autoritário nariz empinado ele é a lei mas quando está à paisano como eu e tu: ele quando me vê muda de passeio, e um dia eu estava fodida com esta merda e lhe disse «vem cá, eu tenho alguma lepra?, porque quando me vês mudas de passeio? não te esqueças que és do meu sangue, muda o sangue que eu quero ver, tu és meu primo!, não te esqueças disso», olha, engoliu minhas palavras, nem disse bem nem mal, abaixou os olhos e foi-se embora para casa. No outro dia, mandou-me chamar para eu ir conversar com ele na sua casa, ele disse que ele estava fazendo o seu trabalho e que eu pisava a linha, eu disse que meu pai não me ensinou a ser frouxa, sou quase uma maria joão da terra dos Potiguá, uma mulher no meio dos homens pronta para tudo, ele disse «vai-te embora» e eu disse só para o arreliar «mais logo à noite estarei no posto de polícia para a gente apertar dois dedos de prosa.» «Tu consegues irritar o próprio satanás!, ai meu deus, onde fui amarrar meu bode...»
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anónim@s do séc. xxiii

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