sexta-feira, 30 de agosto de 2019

«Está bem. Luta o melhor que puderes.»

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Nyokabi e Njeri estavam sentadas a um canto. Njoroge via os rostos delas sulcados pelas lágrimas. Ficou deprimido, porque em criança lhe tinham dito uma vez que quando as mulheres choravam junto de um homem doente isso queria dizer que não havia esperanças de salvação. Mas mesmo ao olhar para o rosto irreconhecível do pai, Njoroge não teve forças para enxugar as lágrimas ou para confortar aquelas mulheres que choravam. Pela primeira vez, Njoroge estava diante de um problema para o qual nenhuma resposta podia encontrar no «amanhã». Foi o embate com esta percepção que o fez sentir fraco e encarar a emergência sob uma nova luz.
Ngotho mexeu-se de lado com grande esforço e pela primeira vez abriu os olhos. Nyokabi e Njeri aproximaram-se imediatamente da cama. Os olhos de Ngotho vaguearam pela cubata. Pousaram em cada uma das mulheres, numa de cada vez, primeiro em Njeri. Abriu a boca como se quisesse falar. Mas em vez de palavras, surgiu uma lágrima rolando-lhe pelo rosto. Tentou limpá-la. Mas como não conseguia levantar a mão, deixou que a lágrima rolasse desordenadmente. Duas outras se lhe seguiram e Ngotho desviou os olhos, repousando-os em Njoroge. Pareceu lutar com a memória. E depois fez um esforço para falar:
«Estás aqui...»
«Sim, pai.»
Njoroge voltou a acariciar esperanças. Sentiu uma fria segurança ao ver que o pai continnuava ao leme.
Estas eram as primeiras palavras de Ngotho desde que o tinham trazido do posto da guarda nativa, quatro dias antes. Njoroge iria recordar longamente esse dia. Ngotho teve de vir apoiado por um homem de cada lado. O rosto dele estava deformado por pequenas feridas e cicatrizes. O nariz estava partido em dois e as pernas tinham de vir de rastos. Fazia já quatro dias que a boca e os olhos se mantinham fechados.
«Vieste da escola?...»
«Sim, pai.»
«Para me veres?»
«Sim», mentiu.
«Espancaram-te lá?»
«Não, pai.»
«Então... vieste... só... para te rires de mim. Para te rires do teu próprio pai. Não te preocupes que eu hei-de voltar para casa.»
«Não diga isso, pai. Nós devemos-lhe tudo. Ó pai, que seria de nós sem o pai?» O lábio inferior de Njoroge estava a tremer.
Ngotho continuou: «Os teus irmãos andam todos por fora?»
«Vão voltar, pai.»
«Oh! Quando eu morrer. Para me enterrarem. E o Kamau? Onde está?»
Njoroge hesitou. Ngotho continuou: «Talvez o matem. Não o levaram para o posto? Mas porque é... Eles não querem o sangue de um velho. Não, não me faças perguntas. Fui eu que matei Jacobo? Fui eu que lhe dei um tiro? Não sei. Um homem não sabe quando mata. Há muito tempo que o julguei e executei-o. Ah! Ele que volte outra vez! Ele que se atreva!... Oh, sim, eu sei. Oh! eles... querem... o... sangue... novo. Olhem para ali. Para ali... ah!... eles levaram o Mwangi... E o Mwangi? Não era novo?»
Ngotho delirava. Durante todo o tempo, ficou com os olhos presos em Njoroge.
«Agrada-me que estejas a educar-te. Aprende tudo. Eles a ti não se atrevem a tocar-te. Sim, gostava muito que os meus filhos estivessem aqui todos... Eu quis, ah, ah, ah! fazer alguma coisa. Ah? O que é que aconteceu? Quem está a bater À porta? Já sei. É o Sr. Howlands. O que ele quer é chegar mesmo ao meu coração...»
A gargalhada de Ngotho era gelada. Deixou o ar opressivo, tenso. Mas agora as trevas tinham submergido a cubata. Nyokabi acendeu a lanterna como que para as afugentar. Sombras grotescas escarneciam dela, contorcendo-se nas paredes. De que valia a vida de um homem se podia ser reduzida àquilo? E Njoroge pensou: aquilo que ali estava era de facto o pai que ele secretamente adorara e temera? A cabeça de Njoroge ficou transtornada. O mundo estava virado do avesso. Ngotho continuava a falar. O riso dele não era claro, mas suas palavras eram surpreendentemente límpidas.
«Boro foi-se. Achou que eu era... um pai que não presta. Mas eu sempre soube que eles haviam de o mudar. Quando voltou parecia que nem me conhecia... Estão a ver...»
Njoroge virou a cabeça. Teve consciência de outra presença no quarto. Boro estava de pé à porta. Tinha o cabelo comprido e desgrenhado. Njoroge instintivamente desviou-se dele. Boro aproximou-se, em passo hesitante, como quem deseja furtar-se à luz. Viram Boro ajoelhar-se junto da cama onde Ngotho jazia. E num repente, muito antes de Boro começar a falar, Njoroge descobriu a verdade. Mal conseguia reter a respiração.
A princípio Ngotho não conseguiu reconhecer Boro. Pareceu hesitar. Depois os olhos pareceram recuperar a vida.
«Perdoe-me, pai... eu não sabia... oh! eu pensava...»
Boro voltou a cabeça.
As palavras saíram hesitantes, sem cor: «Não é nada. Ah, ah! Também tu voltaste... para te rires de mim? Serás tu capaz de rir do teu pai? Não. Ah! Eu só quis o bem de todos vocês. Não queria que te fosses embora...»
«Eu tive que lutar.»
«Oh... isso... Mas agora... Nunca mais te vás embora!»
«Não posso ficar. Não posso», gritou Boro, numa voz cava. Produziu-se uma mudança em Ngotho. Por momentos, voltou a ser aquilo que tinha sido -- um homem firme, com autoridade, o centro do lar.
«Tens que ficar.»
«Não, pai. Por quem és, perdoa-me!»
Ngotho fez um esforço e sentou-se na cama. Ergeu penosamente a mão e pousou-a na cabeça de Boro. Boro parecia uma criança.
«Está bem. Luta o melhor que puderes. Põe os olhos em Murungu e Ruiri. Que a paz seja com vocês todos. Ah! O quê? Njoroge olha... pela... tua... mã...»
Os olhos dele flamejavam ainda quando se afundou na cama. A cubata ficou em silêncio. Até que Boro se ergueu e disse num murmúrio: «Eu devia ter vindo mais cedo...»
Correu para a porta, fugindo da luz, mergulhando nas trevas da noite. Só quando viraram os olhos para Ngotho ficaram a saber que ele também nunca mais regressaria. Ninguém chorou.
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''Não chores, menino''
páginas 166-169

Ngugi wa Thiong'o

tradução Alice Nicolau
edição Editorial Caminho 1980

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