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Ximenes chega ligeiramente atrasado «olha, se tivesses chegado há dez minutos tomavas deste café, não lhe tinha colocado o leite» mas vem com um bom propósito «põe música, olha trago uma prenda, o Vermelho pediu-me para eu lhe ir arranjar moks, eu fui e ratei este pedacinho».
Dirijo-me ao leitor de cd e ponho a tocar Charles Mingus. «Boa, eu também acabei agora o meu trabalho por hoje, passei seis textos do Giuliani, eu acho que até ao fim do mês estará pronto.»
«Olha, preciso de tudo para fazer o berlinde...»
«Tenho tudo o que precisas, aqui a caixinha do tabaco, as mortalhas, o cartão para filtros, agora ando a usar cartão da marca risperidona, a caixa acabou, já aviei a nova receita, vês?. ao usar este cartão também vou fazendo reciclagem...»
«Tabaco é que já tens pouco...»
«Tenho de sair para comprar, já nem me lembrava, o Giuliani pediu-me uma nota para gastar no seu maço Regina e o resto em ir trabalhar nos computadores da loja, que abriu no espaço onde ele estampava as t-shirts... mas eu disse-lhe que não à cara podre, disse que não podia, que ainda não tinha recebido pela venda do quadro à galeria... e afinal, a nota que eu tenho no bolso vou gastá-la em mais tabaco de enrolar, é da maneira que depois tenho trocos para o pequeno-almoço na dona Ana.
«Eu tenho um isqueiro mas não é melhor do que este.»
«Houve agora o baixo desta música, este Mingus era um génio. Diziam que era muito exigente e até mau com os seus músicos, mas isso todos são.»
«Sim, nós todos fumamos ganza e às vezes até mandámos acidos, gostamos do Zappa e ele era contra as drogas.»
«Sim, mas fumava prá mundial, fumava em todos s mundiais, até há capas com o seu cigarro fixo no braço da guitarra, também tinha a sua hipocrisia, olha foi casado com uma portuguesa segundo o Giu me disse.»
«Mas o melhor ainda é o Bob, não queres ouvir o Catch a Fire?»
«No tubo pode ser, queres o álbum ou a música?»
«O álbum. A primeira música Concrete Jungle, tu tem-la noutra versão naquele best-off.»
«Ah pois tenho, estou a reconhecer, um dia ainda vamos poder ir beber legalmente uma caneca de café com canábis...»
«É o sonho de todos nós.»
«Eu acho te vou fazer um café para acompanhar a tua prenda, e depois vamos apanhar ar, estou a ficar abafado, aqui em casa desde que fechei o postigo junto ao corredor tenho pouca circulação de ar, vamos até às escadinhas, fica a caminho da tabacaria.»
«Pois é, tu já nos falaste, o teu problema é expirar menos do que inspirar...»
«Sim, os meus pulmões retêm ar, portanto fumos e cheiros de tintas e aguarrás... fazem-mal, eu nunca conseguiria viver na China, em Pequim... de vez em quando, ouvem-se notícias do ar de Pequim...»
«O meu pai diz que me arranjava emprego lá, mas eu disse-lhe que não, eles lá têm a pena de morte, é por isso que Hong Kong se revoltou, o direito penal na China é mais ditatorial, em Hong Kong agora está muito mau...»
«Sim, olha aqui este blog, se quiseres mandares dinheiro... olha aqui a notícia, as fotos das manifestaçãoes, a conta paypal para apoiar...»
«Cada um faz o que pode.»
O café já ferve, a broca está feita, a obra está pronta a ser fumada, neste momento ouvimos Burning Spear ao vivo em Itália.
«Sabes uma coisa, eu aprendi a ouvir o meu pai mas continua a ser difícil de lhe aceitar as ideias, ele é mais vetusto que o nosso poeta, o nosso poeta leva e sempre levou a vida que lhe conhecemos e os resultados vêem-se, as suas ideias são paralelas, as nossas derivam em parte das da sua geração, seja nas drogas, na institucionalização hospitalar, na luta diária por arranjar beleza, o Giu na sua luta por um maço de tabaco, e lá anda ele com a sacola cheia de livros a ver se lhe aparece aquele visconde filho de reis que o salvou há dias, o meu pai era e é diferente, sempre poupou e eu revoltava-me, mas olha com a idade aprendi a dar valor à poupança, ele se tem um problema de saúde ou a minha mãe, eles não vão ao hospital enterrar-se numa fila de espera, vai ao hospital privado e paga a consulta e, olha, a minha mãe soube e retirou um sinal da cara que lhe poderia vir a dar problemas, revelou-se o mais benigno dos tumores malignos, vai ter duas consultas de vigilância por ano.»
«Sim, é para isso que o dinheiro serve, para gastar em saúde.»
«Mas olha a quase maldade das suas palavras... ele nunca bebeu nem fumou, dou-lhe algum valor por isso... mas ele não pode compreender, só quem já fumou um cigarro é que pode perceber, olha o que ele foi dizer, não compreende como uma nossa familiar depois de um enfarte e de um avc pode ter voltado a fumar, chegou a dizer: um colega meu fumava três maços de filtro e foi ao médico, o médico disse-lhe ou pára ou morre; e ele parou. Eu respondi-lhe calmo mas emocionado: a mãe da senhora morreu, a mãe passou um grande sofrimento e a filha sofreu com ela, ao mesmo tempo teve o enfarte, deixou-se estar na cama e de manhã o avc, a fisioterapia deu-lhe a mobilidade de volta, pediu a reforma, a mãe morreu, ela já tinha deixado de fumar mas voltou, pode muito bem ter pensado: sou eu a próxima, agarrou-se às poucas coisas que lhe dão prazer. Fumar é um prazer, alivia a ansiedade, faz-nos parar a rotina dos movimentos, coordena o nosso pensamento.»
«O teu café é melhor que o cimbalino dos cafés e o cheirinho lá dentro é muito bom, havemos de experimentar pôr uma broca do valor de uma nota dentro do café a derreter, quem experimentou diz que é do melhor.»
«Olha vamos à tabacaria, preciso de comprar tabaco, tu logo vais à sopa?»
«Sim, mas ainda temos tempo.»
Saímos de casa, corremos a ilha e virámos à direita na rua.
«Sabes, eu sou como um arqueólogo, ando sempre à procura de pepitas, palavras em livros, há quem ache que eu perco tempo com os textos do Giuliani mas foda-se!, com cinquenta inéditos alguma coisa de bom deve haver!»
«Sessenta, ele diz que tem sessenta inéditos.»
«E olha, hoje encontrei uma que já valeu o dia, e provavelmente até foi um erro dele, a gente até duvida se foi essa a intenção...»
«Estás a falar de quê?»
«Num dos vários textos sobre Timor, ela fala lá das milícias pró-indonésias que massacravam os timorenses, mas escreveu melícias, melícias de terror, e olha... gostei tanto do poder poético da frase que não lhe corrigi o engano e até pus em itálico.»
«Fizeste mal, devias corrigir...»
«Não, deixei passar, não sei se ele o quis ou não escrever, provavelmente se o corrigisse ele nem iria reparar, talvez nem agora repare, e eu ao pôr-lhe melícias de terror estou a engrandecer o poder de inflamar o leitor contra os indonésios. É uma grande pepita.»
«Ok.»
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Claudio Mur
Olá
ResponderEliminarestive a ler aquele texto do DVP (reparei no teu cometário), que no Ouriquense foi apelidado de não-sei-quÊ. Vamos lá ver, o DVP é muitas vezes um camião tir que leva tudo à frente, porém, os motivos compreendo-os também muitas vezes, ao passo que outros Diogos há que se devem achar igualmente demolidores mas só dizem e fazem merda. O DVP exagera talvez no belicoso do discurso, porém, diz muita coisa certa, certeira, para a minha compreensão, e escreve muito bem. Olha, era só isto.
Concordo com tudo e acrescento em relação a «outros Diogos»: esse é um wannabe, um farsante e vive do soundbyte, e é mais ateu do que nós, ele é que não sabe ou não quer assumir. agarra-se a deus julgando-se um eleito.
EliminarSobre isso:
Eliminarposso aceitar um ataque a A ou B (ainda que com reservas, "morais"?, olha tá bem!), desde que com argumentos, agora vir chamar "nomes" só porque sim, OH!
O DVP fala muitas vezes no geral, e quando particulariza explica as razões do seu desagrado. E eu acredito que o mundo "literário" deve ser cá um putedo que vai lá vai.
deve ser deve, eu não conheço,
Eliminarsó conheço/vivi com dois poetas, os poetas do albergue junto à praça da república, aqueles que aparecem no seu jornal com poemas de vez em quando: o Artur Rockzane conhecido no submundo como Arturinho e que tem 3 livros publicados, 2 na extinta quasi. e o Júlio com duas edições de autor e um 3º publicado há dez anos por um editora sem nome e que já faliu.
(sou leitora assídua do Ouriquense, gosto muito)
ResponderEliminarEu também, é muito informativo.
Eliminar"O valor de um texto hoje já parece desejar ser lido menos segundo critérios literários do que à luz da declaração universal dos direitos do homem."
ResponderEliminartenho mixed-feelings: acho que cada um deve fazer aquilo que gosta, mesmo que não seja bom, e isso inclui escrever. mas custa-me quando as pessoas se acham grandes artistas e ... nem são. desde moça muita gente me diz "ah e tal devias escrever um livro", e eu fico zangada, porque as pessoas não percebem que aqui não há talento, há paixão pelas palavras?, sim, há tantas vezes gosto em escrever?, sim, catarse?, sim. mas não é talento, caralho!, o talento têm tantos outros, felizmente, que sorvo qual vampira :))))
Agora estou a ler «Helena» de Machado de Assis.
Eliminarbom dia :)
Eliminaresquece o talento e o grande artista, e escreve sempre que tenhas vontade e sintas que tens algo útil a dizer, e, se te sentires segura partilha. não te sintas perturbada por uma crítica que consideres injustiça, tenta ver se existe algum resíduo de verdade nessa crítica e assim conseguirás construir uma ponte entre o que és ontem e o que és amanhã. o ego é uma construção e muitas vezes atrapalha a percepção da realidade.
Há uns meses resolvi cumprir um desejo/ promessa e escrevi uma carta a uma amiga, uma carta à moda antiga, em envelope selado e manuscrito (foi assim que nos conhecemos há uns 30 anos, por correspondência, através do "Blitz"). Quando a carta lhe chegou de surpresa, correu ao Whatsup toda contente a acusar a recepção :) , e às tantas este diálogo que transcrevo:
Eliminarela - quando escreves um livro?
eu - ahahahahahah
falta-me quase tudo
Em primeiro lugar o talento 😎
ela - Tens sim, não lhe chames talento, é deixares em papel o fluxo das
tuas palavras.
(este tipo de desconversa já a tive várias vezes e confesso que me deixa um bocadinho irritada, não sei onde raio se foi buscar a ideia, muito moderna, de que qualquer bicho-careta pode escrever um livro!? e claro que pode, está bem, estão no seu direito, mas dizerem-me isso a mim é que quase levo a mal, porque porra, das duas uma, ou não me conhecem nadinha e presumem qualidades que de todo não possuo, ou estão a chamar literatura a toda a merda que apareça impressa. e mais, por mais capaz que eu fosse, por mais que até passasse os dias a escrever com desenfreada paixão, ou como forma de sobrevivência (coisa que já aconteceu no passado), também não entendo o porquê de isso ter de me levar a "escrever um livro". )
não te irrites :) o livro escreve-se todos dias 24 horas respirando. esse é o verdadeiro livro!
Eliminare olha, eu deixei de escrever livros e tenho já 3 online em pdf,
eu agora só escrevo textos ou comentários em blogues. quando me dá na gana,
às vezes, até nem os acabo, chego ao ponto do texto em que digo o que me levou a escrevê-lo e páro, deixo o diálogo a meio.
O DVP tem razão no texto do jornal i: há livros que não deviam ser escritos quanto mais impressos ou lidos, mas no fundo a cópia de um livro é como um quadro: é preciso encontrar-lhe uma família que o trate bem e nele se orgulhe.
e o modus operandi dele hoje no seu blog? gostei, ele é bom e é-me útil, ensina-me.
e olha, encontrei aqui um espaço blogosférico onde me sinto à vontade, realmente, para dizer o que me apetece. posso não concordar muito amanhã, comigo mesma, em me relendo, mas também não acho que o anfitrião me vai "julgar" por isso e rotular seja daquilo que for. os espaços nos blogues são uma espécie de guetos, ou és ou não és, ou estás a favor ou contra, se não estás comigo estás contra mim, e para isso já não tenho paciência.
ResponderEliminarboa noite :)
Boa noite sista, o Ouriquense há dias mandou passear um anónimo dizendo-lhe que não faz ia terapia de grupo.
EliminarMas os blogues são de facto espaços livres para se partilhar palavras e afinidades. Só não me peçam para dizer para estar sempre a mandar beijinhos.