sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

A tarde cairá...

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Não tive coragem suficiente para contornar a mansão e chegar ao outro lado. Certamente seria visto por alguém. Porque tenho então a impressão de já ter estado lá há muito tempo? Será que, no fundo, não conhecemos de antemão todas as paisagens que encontramos na nossa vida? Será que, de facto, ainda pode acontecer algo totalmente novo, que não seja pressentido com muita antecedência, no fundo dos nossos reservatórios? Sei que um dia, numa hora tardia, estarei lá, na entrada dos jardins, ombro a ombro com Bianka. Entraremos nesses recantos esquecidos, onde entre muros antigos estão enclausurados parques envenenados, os paraísos artificiais de Poe [*], cheios de cicutas, papoilas e convolvuláceas entorpecentes, ardentes sob o céu cinzento de frescos muito velhos. Vamos despertar o mármore branco da estátua de olhos vazios adormecida nesse mundo marginal, além dos limites da tarde murcha. Espantaremos o seu único amante, um vampiro vermelho que dorme com as asas pousadas no seu seio. Ele voará silenciosamente, macio, fluido, ondulando com os seus restos exânimes, imateriais, sem esqueleto e sem substância e, girando e batendo as asas, há-de dissolver-se no ar entorpecido. Entraremos por uma pequena porta numa clareira deserta. A vegetação estará queimada como fumo, como as pradarias no fim do Verão índio. Isso será talvez em Nova Orleães, no Louisiana -- afinal os países são apenas pretextos. Sentar-nos-emos na borda de pedra de um açude quadrado. Bianka molhará os seus dedos brancos na água morna, cheia de folhas amarelas, sem erguer os olhos. Do outro lado do açude sentar-se-á uma figura negra, delgada, toda coberta. Perguntarei sobre ela murmurando, e Bianka, acenando com a cabeça, responderá silenciosamente: -- Não tenhas medo, ela não ouve, é a minha mãe morta que mora aqui. -- Depois ela dir-me-á as coisas mais doces, as mais silenciosas e mais tristes. Não haverá nenhum consolo. A tarde cairá...
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[*] O autor de Paraísos Artificiais, livro sobre as sensações provocadas pelos narcóticos, é Charles Baudelaire (1821-1867). Baudelaire foi tradutor de Edgar Allan Poe (1809-1849), conhecido sobretudo pelos seus contos fantásticos.

, páginas 83-84

'Sanatório sob o signo da clepsidra'
Bruno Schulz

tradução de Henryk Siewierski
adaptação da tradução Patrícia Guerreiro Nunes
edição Edições do Tédio


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