terça-feira, 28 de janeiro de 2020

Quando ao romper da manhã se fazia ouvir a sineta do seminário

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Quando ao romper da manhã se fazia ouvir a sineta do seminário, suspensa à entrada do Convento da velha cidade, começavam a acorrer ao seu chamamento sonoro grupos de estudantes -- gramáticos, retóricos, filosóficos, teólogos -- vindos de todos os lados. Os gramáticos, ainda de tenra idade, empurravam-se uns aos outros e insultavam-se em voz de falsete. Normalmente tinham os fatos sujos e rotos, com as algibeiras transbordando de inúmeros e variados objectos: ganizes, apitos, côdeas de pão e até mesmo pardais, cujo piar indiscreto, quebrando por vezes o silêncio sagrado da aula, atraía sobre os seus possuidores uma chuva de palmatoadas e de vergastadas. Os retóricos, é claro, tinham um ar mais grave. Se, por um lado, o seu vestuário estava virgem de manchas, os rostos não o estavam: olhos negros, lábios pisados, orelhas derribadas. Os filósofos, por sua vez, falavam um oitava abaixo, e nas algibeiras apenas guardavam restos de tabaco. Nunca faziam reservas de alimentos, preferindo devorar imediatamente tudo o que o acaso lançava sob as suas mãos ávidas. Exalavam um tal cheiro a tabaco e aguardente que as pessoas, ao cruzarem-se com eles na rua, se detinham a cheirar o ar, como o cão de caça que fareja a presa.
A esta hora matinal o mercado começara há pouco e as vendedoras de biscoitos, de pão, de pevides, de bolos, agarravam-se às abas dos casacos dos estudantes mais bem vestidos.
-- Venha cá, meu senhor, venha cá! -- gritavam todas à uma. -- Olhe os bons biscoitos torradinhos, os pãezinhos finos bem cozidos, as frituras frescas.
-- Comprem-me os caramelos, senhores -- gritava uma, brandindo uma espécie de trança comprida, feita de alteia.
-- Não lhe comprem nada a ela -- clamava a vizinha. -- Não vêem como ela é feia? Tem um nariz que mete medo! Pfff!
Contudo, todas elas tinham o cuidado de não incomodar os filósofos e os teólogos, pois sabiam que estes descarados, sem nunca comprarem nada, procuravam sempre provar de tudo com abundância.
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página 99-100

'A cidade do sossego' e 'O capote'
Nicolau Gogol

tradução de Ana Féria e A. Nogueira Santos
edição livros de bolso europa-américa

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