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Lembro as palavras que deixo escritas numa folha dentro da cassete de vídeo que lhe deixarei postumamente, traduzo essas palavras aqui: o desejo é por vezes a nossa necessidade
de partilhar. Por vezes, somos refugiados. Outras vezes, somos crianças. Muitos de nós nasceram com missões a cumprir. Há sentimentos que precisam de ser exorcisados, movem-nos na direcção
da falta de ou do excesso de consciência e de capacidade de processar informação. Para exorcisar o nosso espelho, para chegar a termo com ele, para agarrar esta cabeça rapada, este pescoço
a precisar de uma lâmina romba, precisamos de agir de maneiras por vezes surreais, por vezes pós-modernas. Eu nunca devia ter existido. Transformei o meu ser durante um processo de realidade, senti-me num sonho
vagueando e perguntando por estantes e jaulas e janelas de madeira podre, eu contra uma mesa pé-de-galo num centro comercial empedrado e cheio de pessoas brancas em plástico dizedo adeus às janelas. Repito-me.
A vida já não é erógena. Estou cheio de poesia. Fui-me. Sou incapaz de viver.
Após estas palavras saio de casa, anódino e amoníacal, por volta das cinco horas para ir à biblioteca entregar dois livros sobre a Bauhaus. Ainda a vejo e eu
sei que ela me viu mas nem eu nem ela nos quisémos ver e apressado fui e apressado chego de volta a casa. Coloco tudo em ordem no meu quarto. Deito tudo fora, escondo tudo o que não deverá ser visto e
deixo à mostra tudo o que quero entregar. Por volta das seis horas, saio de casa debaixo de chuva em direcção à estação de comboios.
Um dia imaginei este evento, seria ao início da tarde no pico do sol sobre o céu limpo. A avenida deitaria as cartas tentando adivinhar, a sua pose seria calma e solitaria.
O ceu começa a escurecer. Não há nada de estranho neste fim de tarde. As pessoas caminham apressadas em direcção a casa após o emprego. Outros tropeçam
em sentido contrário. Os carros fazem ponto de embraiagem nos semáforos e dão piscas à esquerda. Não olho para nada nem para ninguém. Sempre em frente.
Gosto em especial dos prédios antigos e das casas caiadas. Associo-as aos contos de Mário de Sá Carneiro, aos minaretes e telhados do além e à mulher impossivel.
Apetece-me prestar homenagem a um pequeno salão de chá recatado. Chama-se SemNome. Desde as senhoras de meia-idade, que tomam meias de leite com torradas e conversam com dignidade sobre as suas ocupações
diárias, até aos pequenos pares de estudantes que lêem o jornal diário ao mesmo tempo que estudam os testes dos anos anteriores. Lembro-me de parar num quiosque para comprar o jornal de música
que na capa traz uma banda emergente na cena subterrânea: os Astonishing Urbana Fall. Continuo a andar sem olhar para ninguém pois não tenho qualquer interesse em ver ninguém, só eu, o jornal
e o saco. Se parar, talvez mude de ideias.
Vou-me apercebendo que, ao longe, um pobre diabo pede qualquer coisa às pessoas, ou melhor incomoda-as, tenta falar-lhes sem êxito. Quando passo por ele esboço um ar
de compreensão mas nem sequer abrando. Sigo em frente pensando que me identifico de certa forma com ele, lembro-me igualmente que é mais lúcido oferecer a cana de pesca que o peixe. Às vezes, em
vez de se dizer a uma mulher que se não a ama oferecem-se pequenas frases pessoais com algum significado pertinente no momento em que foram escritas dizendo-lhe: olha, mostro-te tal como sou, antes que me conheças
para ver se me aceitas e isso te incite a lutar por algo só teu. Estou convencido de ser infeliz por ser humano e ser incapaz de sequer conceber que posso errar. Considero-me inferior, um ser aspirando a ser uma máquina
estável, a ser científico, amoral, recuso qualquer tipo de ajuda.
Quando chego à estação, compro o bilhete só para metade do caminho pois alguém poderá dizer: olha, ali vai um jovem torturado. Tento dissimular
que todo o meu eu treme.
O meu filme continua. O sol esbranquiça os azulejos das paredes da estação dando-lhes a qualidade onírica de uma fotografia sobre exposta. Invejo os artesãos
locais, invejo-os por serem capazes de continuar a lutar contra o sistema. Não poderei em teoria afirmar viver segundo sistemas mas, ao negá-los, estou a seguir um sistema que julgo só meu.
No comboio, tento permanecer calmo relendo A queda de Camus, lendo o jornal, revendo as paranóias, voltando a elas sempre sem descanso. Faz parte do ritual voltar ao rodopio e recusar sobre o túnel da covardia a realidade de me sentir uma personagem
de filme.
Observo no compartimento da frente um casal constituído por um homem de cerca de sessenta anos, olhar duro e cabelos brancos, avô de uma menina de talvez seis anos que usa um
vestido branco qual anjo louro, ela dança na divisória para fumadores, em frente das nuvens agarrando o varão como uma pinup, canta uma melodia infantil dizendo: eu não quero viver... eu não quero viver...
Talvez tenha sonhado isto tudo mas começo a perguntar-me outra vez não pelos porquês mas sim pelos para quês. Onde tudo terminará e onde tudo começou?
Pergunto-me porque me acharei tão mau, aquele mau mais duro, mais baixo, mais Timor do termo. Primeiro, imaginava gostar de viver uma vida de aventuras como nos filmes. Agora, estou bem dentro do filme como um cogumelo
plantado nos verdejantes campos dos sonhos. Primeiro, imaginava o mal e praticava-o como um reflexo imaginário de um amor superpoético. Agora, o mal deverá ser aniquilado.
Então... ouço Coil, a sua música perturba-me. Fala-me por meio de metáforas que mal compreendo mas anseio pelos símbolos que crio recheados de ironia,
imagino-me mesmo um grupi, um superfã no camarim oferecendo a boca a um felácio, enquanto na realidade estou a tentar arranjar em algum lado da imaginação desejo para bater uma punheta e nem assim
consigo. Isto é um reflexo de alguma coisa, da morte ou do desgosto de pessoas conhecidas e amigas, de impressões de sangue, sexo e lençóis limpos. É como se me quisesse degradar ao ponto
de ser insultado. Mas e se não gosto de piça alheia... eu que sou narciso talvez goste da minha... e logo me vem à memória a ideia que uma vez me contaram do gajo que mandou retirar duas costelas
para experimentar o próprio sémen.
Existe em mim a necessidade de me proteger, de não me integrar pois não me quero abrir aos demais, escrevo só para mim e para ti por enquanto, os outros que se lixem.
Existe em mim um fascínio, um flash por aquilo que faz sofrer. São as rupturas que me fazem continuar e viver novas emoções, ou haverá beleza sem perigo? Pergunto pelo passado e pelo futuro.
Pergunto-me pelo destino e pela fé. Pergunto-me por futuros sempre adiados. Pergunto-me se as pessoas serão até um certo ponto loucas ou se será só uma questão de acreditar muito e
depois, apenas continuar a usar o hábito. Pergunto-me por promessas que se fizeram e que nunca foram cumpridas e por tentativas que abandonámos. Pergunto-me se será falta de vontade, falta de autocrítica
ou se não será apenas aquele sentimento eterno, gótico e decadente. Cultivo a identidade e a indefinição. Sou ambíguo porque depois de falhar com as mulheres, voltei a falhar com os
homens porque talvez fosse deles que gostasse... mas nem deles nem de nada gosto, se me cansei do cheiro da sua vagina também nem da piça nem mesmo de beijar a face barbeada de um homem, no caso o meu pai, o
único fora dos livros, e agora... eu falho do mundo. Já não sinto desejo por ninguém, nada me atrai e, para me proteger de uma futura próstata deficiente, recorro a Apollinaire e As onze mil vergas. É o único meio de me satisfazer, a internet ainda não chegou aos meus alojamentos nesta secção do campus do CREeA.
Sou indefinido e atraente ao olhar, entro facilmente em zona de gaydar. Mostro-me no meio dos supostamente grandes ou que imagino grandes. Dou abraços de parabéns e faço
vénias. Cultivo o sentido agitador, agiota da rebelião. Ajo como um rebelde em teoria. Vou ver espectáculos de poesia, compro livros nihilistas e não espero pelo autógrafo do autor. Faço
convites formais a mulheres atraentes e, no fim, afasto-me bloqueado culpando-me de não saber fazer o sexo quando, no fundo, nao é bem assim, é apenas uma tentativa de proteger uma certa
integridade que nao é a nossa mas que nos magnetiza... uma certa inversão dos papéis, um amplo sentimento de covardia, uma recusa em falar, um certo isolamento, uma tentativa de confundir e fazer mal e
ainda, misantropo, dizer-me admirador de mulheres, bem... mas não é bem isto que eu quero, não é com isto que eu sonho e o que é o sonho de uma ela quando tenho uma ela e a ela deixo?, não
deveria esta ela ser o nosso sonho eterno que nem deveríamos sonhar ou perguntar-nos pelo porquê de não ter de sonhar? Ter alguém atraente, inteligente, sensível e agora romper porque se deseja
conhecer mais mundo além dela e, depois, ela é tão agressiva quanto eu, eu dou-me mal com as igualdades porque não sei reconhecer os iguais, preciso de conhecer outros corpos, mais corpo para tentar
a paz eternamente afugentada e interrompida porque sentimos culpa de não ter tempo para dedicar ao estudo do qual até nem gostamos, é difícil, não é bem isto que gostaria de fazer e tal... mas que digo que tudo o que se começou tem de ser terminado, tenho de levar esta viagem até ao fim.
Gostaria de abandonar tudo e passar dos sonhos à realidade, abandonar todos os empecilhos, todas as escadas e viver só com ela uma vida de casal jovem cigano com paz, somente
em paz, eu pintando e ela fazendo missangas numa pequena vila, uma das muitas que conheceríamos a passar daqui para acolá. Deste modo, aceitar-nos-íamos certamente se a poesia movesse montanhas.
O meu filme continua fotograma a fotograma. Pergunto-me por violação, pergunto-me pela raiz da própria palavra e no porquê de pensar nela e no que poderá
sentir um objecto violado, será que terão sentimentos e serão entidades? Pergunto-me pela identidade biográfica da entidade que viola, será que escreve sobre maldade auto-inflingida, será
que escreve sobre a vontade de possuir friamente sem história?, será que escreve sobre cigarros e corpos arqueados no auge do suor criado nos sempre curtos momentos?, deveria ser possível estender até ao infinito a tensão criada por dois animais puros, deveria ser possível observar todas
as expressões e superfícies do corpo tu, tocar a tua pele, sentir o teu cheiro, a tua voz. Mas no fim, a sociedade sempre ri mais alto, a sociedade deles, a dos hipócritas, a dos lambe-cus em oposicao
à dos ingénuos, dos líricos e dos loucos dependendo da perspectiva em que o autor e o leitor se coloca. O leitor não sei mas o autor pode confessar que sentiu prazer com os dedos dela e que de algum
modo já os desejava, os pincéis não se amam, as cenouras apodrecem mas os dedos, duros no gatilho, eram amantes apaixonados. Mas tudo tem um limite, um fim e mil e uma noites sempre foram demais, ao testar os meus limites
testo igualmente os teus limites, não será que me quero vingar de alguma culpa tua ou minha ou até da imaginação de tudo? A partir daqui, será difícil acreditares-me. Para te
dizer que te não quero mais pois eu sou mau e assim só mal te posso fazer. Dizer que não tenho futuro, que não tenho vida que possa dar ou construir contigo pois eu recuso!, recorro a todos os meios
possíveis para o negar, quem sabe como Judas enforcado no Éden.
Perto da localidade destino do primeiro bilhete, pego no meu saco, considero o seu conteúdo e, de olhos tensos, fumo um cigarro enquanto aguardo que o comboio pare. Saio e peço
na estação um bilhete para mais longe e para fora. É meu desejo, quem sabe, ir para fora, esquecer tudo e começar de novo. Por isso, levo tudo o que me pode fazer falta, o que inclui aquilo que imaginei uma vez e passei ao papel. Os intervalos entre os meus fotogramas são preenchidos
de branco. Existem ódios infundados ou tiros disparados contra as pessoas erradas, coisas que ouvimos dizer mas, entre flashs de surdez, nem sabemos bem o que ouvimos, estávamos distraídos talvez ou, então,
estávamos apenas focados no trabalho. Momentos brancos esses, às vezes, deveríamos perguntar. Os meus ódios não são reais ou são mas ainda não ganhei a experiência
necessária para gerir conflitos de emoções, desculpem lá: não sou um gestor. Estes são ódios que achei necessário ganhar por impulso, achei que deveria adquirir certa atitude surreal, odiosa, não sou mau por natureza, só faço mal por reacção. No limite
do infinito matemático serei um merdoso anarcofascista, só porque não gosto que me pisem os calos. Os intervalos entre os meus fotogramas são preenchidos por recordações que não
parecem ser as de mais ninguem... às vezes, parecem não interessar nem mesmo existir, digo que terão cessado vida na minha etérea imortalidade, nas estações finais que se aproximam
e as pombas?!, as pombas suicidam-se de encontro às paredes de granito, de encontro aos vidros do comboio deixando impressões de sangue nos passageiros cansados de mais uma viagem, e em desespero anulo-me brutalmente:
sou um filho da puta, sou uma puta que nunca desmamaram, sou menor que zero, não tenho identidade. Não sou sol ou lua. Não sou filho ou filha. Não tenho pai ou mãe. Sou uma estrela negra
num sonho frio. Granizarei vermelho sobre o bar Armenia.
Pergunto-me o que acontecerá a seguir, quem receberá o dinheiro dos impostos e dos abonos, o que farão as pessoas, aquelas que foram ficando para trás em grande
estilo sempre apoteótico, vários estilos várias escolas. Pergunto-me porque as coloco como objectos ao lado dos meus ídolos. Então, se recuso toda a humanidade devo começar por algum
lado, devo aniquilar-me a mim próprio porque sou incapaz de te não poder ter todas as vinte e quatro horas do dia, porque queria em certas alturas impôr a minha personalidade mas esta não existe,
estou destituído da capacidade de pensar, estou cansado após um primeiro colapso vivido e sonhado em exorcismo jocoso numa fogueira de vaidades, é preciso mostrar às pessoas, sabes?, não
interessa o resultado final, o que interessa é fazer, é só o nihilismo a revelar-se. Se fosse mais que nihilista, diria ser preciso fazer bem. Quando se não tem nada ou se pensa que nada tem, quando
ando em círculos há muito tempo, quando há alturas em que mesmo exausto não durmo, quando se fumam charros atrás de charros, quando se pintam esboços de árvores de natal, quando
se pintam palhaços e aves góticas nas janelas, que dão para a eterna palmeira, adquire-se a certeza de que Eva ou Joana d’Arc está bem aqui ao lado... é apenas muito superior a mim, merece alguém melhor que eu, uma pessoa boa, e nem sequer uma pessoa santa, aliás, ninguém
é santo, eu não sou nenhum santo, posso uma vez ter confundido e pensado que era o centro do mundo, desculpa-me mundo, o actor vai deixar de representar. É por isso que a recuso, eu não tenho uma
entidade una, ser diletante significa ser disperso, confuso, inválido, vazio. É fácil identificar-me com as pessoas que estão perto, não amámos assim tantas vezes. Designs e aforismos,
meios pavlovianos, viste a laranja mecânica?, a passagem de bestial a besta, o jovem de grande potencial, o servil nihilista escondido mas ainda marginal, aquele, que tem por interesses especiais a rebeldia, a filosofia,
a livraria, a fotografia e a pintura, pergunta-se pelo sentido da palavra absoluta e absurda VIVER, como se escreve esta palavra?, um certo ess muss sein, o mesmo de Beethoven, uma certa lógica levada ao absurdo por certas visões brancas de hospitais pois a minha cabeca flipa das dores, o meu corpo treme, Id diz-me que se eu não sou não posso
pertencer nem dar nada a pertencer, Id faz-me escrever e depois abandonar ao acaso em papéis de guardanapo pequenas frases como: desculpa mas sou incapaz de viver.
É esta a imagem com que quero que fiquem, a de alguém brutal, torturado e doido, não necessariamente por esta ordem. Por aqui e por ali, deixo rastos de culpa em seres
humanos com sentimentos, atrofio-os, sofro, excito-me com o seu sofrimento, semeio desencantos, rugas, depressões nervosas, comprimidos e rupturas e pergunto: para quê? Toda a gente se
aproxima por causa do aspecto tipo: não sou de cá, vêm à procura de algo que não têm e que pensam ver. Todos se afastam quando reparam que a minha identidade não é o que
aparenta ser, não sou nenhum deus, nenhum senhor do mundo, sou estranho e esquisito. Tenho ódio por não fazer aquilo que mais gosto, tenho ódio por alimentar farsas, pausas, tenho ódio à
palavra ruptura, ela está mais ou menos prevista, no entanto, alimento o ninho dessa palavra. Somos todos maus em certos momentos, sou é incapaz de distinguir, ignoro que tenho qualidades e ainda penso que deverei
ter as costas largas, que deverei reflectir, quando olharem para o espelho as pessoas deverão envelhecer.
Vejo cortejos brancos ao som de Horse Rotor Vator. Só vejo pessoas com ar de santo, por anedota, se estou rodeado de santos, serei ou deverei ser santo? Ou um anjo revertido?
Olho para o relógio e reparo que só faltam cinco minutos para a minha morte, aquela que desejo a minha fantasia mais violenta. Toda a minha fé, tudo o que até
hoje escrevi, retiro de dentro do saco para a desperdiçar, rasgada folha a folha, porta fora, será adubo e flores azuis na próxima estação. A morte só pode ser solitária. Acreditem:
Eu nunca morrerei e farei o sinal da vitória com a mão esquerda, raparei a cabeça tal e qual um monge budista a recuperar da moca dos cogumelos.
Acreditem que fechei os olhos quando saltei a porta do comboio.
Paro de escrever. Nem dei conta da hora, escureceu. Meto mais um psicofármaco no bucho, dou um gole de cerveja, acabo de descobrir a fórmula mágica com que ganharei
todos os jogos: fechar os olhos e acreditar.
Do lado de fora do café Gungunhana, acaba de passar um Mini amarelo. Cinco minutos depois, duas cabeças femininas olham para dentro do café enquanto continuam a andar.
Não passa muita gente. Fumo um cigarro e converso com a minha consciência que lembra, envolta na penumbra dos olhos escuros de Id, óculos gradeados e barba rude, a frase chave de todo este mistério falsificado: A merda que esta noite está a ser. Escrevo.
Begin
Idealizo uma frase passível de ser dita de modo solene pela mulher dos meus sonhos masoquistas. No mesmo instante, fixo o momento onde o eu misantropo lhe aperta o pescoço
com carinho fetichista. O eu fotógrafo assiste e vê a sua pose de fumadora de Lucky Strikes esperando simplesmente que o eu masoquista lhe revele o seu segredo: pedir-lhe desculpa para talvez a conseguir ter de
volta.
São frequentes estas mutações de consciências. Belo motivo para um quadro. O modo como um vaidoso com algum talento é derrotado pelo mestre e sai depenado.
Passa-se o mesmo nm grande filme: A vida é um jogo com Paul Newman. Um sonho por isso: vingar-me, cuspir-lhe na cara. Procura e destrói. A vida é
um jogo. Um telefone toca. A banda sonora é Lilith, sons quase imperceptíveis, mensagens vindas de longe, misturando-se com Kaddish dos Towering Inferno e, porque não, a oração do Ginsberg.
Eu misantropo digo que não quero sentir culpa de nada. Nada mais deveria fazer sentido, sabes?, são frases como Fica Bem, são frases como Que Horas São? Dez e meia. Levanta-te, tens uma aula!, frases que surgem com frequência, frases como Vai-te Embora. A vida não passa de um jogo de olhares fixos em contrastes violentos e extremos. Ainda ontem, me disseras que não tinhas ninguém ao que respondi
submisso e apaixonadamente que me tinhas a mim. Ainda hoje, sentado numa casa de banho imunda, à espera que a temperatura da merda nos meus intestinos a fizesse dissolver, tremia de frio e medo perante uma resposta que sei ir ainda obter,
mais tarde. É uma resposta previsível, acontece frequentemente ao telefone e significa sempre um aumento do valor do coeficiente misantrópico da minha consciência, o elemento mais impessoal, mais
próximo dos animais, dos primitivos.
Vejo neste misantropo uma única vontade, um único ódio, o de partir as dezoito mesas e as setenta e duas cadeiras deste Gungunhana e, a seguir, embrenhar-se nas superfícies
acastanhadas e cortantes das garrafas de Super Bock, a melhor cerveja deste planeta. Visto este feio de prisioneiro ameaçado, dou-lhe balões e bolos e coloco-o a desfilar perante as beldades incrédulas
no Armenia, como se fosse um bobo. Qual seria a média temporal deste sistema MM1?, quantas pessoas entrariam no sistema, quantas pessoas bateriam palmas, pergunta o encenador. Entretanto, o bobo tem já os olhos
pintados e, mesmo não sendo virgem, parece inocente. É mazé um tonito. Há tantas coisas que levam anos a encaixar.
End
Olho.
Do parque de estacionamento arranca um Honda Civic com destino incerto e, dentro dele, vai um par que deverá ser um único ser, pelo menos, assim os imagino. Como é óbvio,
isto não passa de uma projeccão obscura de um conteúdo interno que pretendo exorcisar. O encenador saiu de casa deixando escapar palavras como psicotrópicos e psicofármacos, pastilhas e comprimidos,
intercaladas com risos de escárnio e frases como: ainda por cima tenho de me esquecer de ti agora que arranjaste sucedâneo, e isso não faz parte do meu vocabulário de deveres e competências,
não, não faz parte do meu trabalho, é trabalho para outra personagem. Para quem? Para o ressacado, diz o meu reflector fotografico e, aqui, a caneta torna-se frenética.
Olho para trás para ver se há espias, levo a mão ao bolso, retiro mais um comprimido Lorenin, engulo-o com cerveja e recordo como o velho duplo ressacado comprou o Concerto
para piano, trompete e cordas, opus 35 de Shostakovich. No passeio, um homem carrega um minitower, ou seja, um vulgo computador. Nada estranho a não ser a hora a que tudo isto acontece, o dia é irrelevante. Engraçado
como se torna difícil levantar a garrafa de Super Bock. Dizem que os psicotrópicos afectam a sensibilidade original. Quem se importa?
O poeta repara agora que um casalinho, agradável à minha vista, ultrapassa a linha do funâmbulo entrando no Gungunhana. O bobo, se o ouvisse, teria uma frase pronta a
disparar para superlativizar o estigma e essa frase ou um qualquer sinónimo, o que não constitui mais do que uma divagação, leva-me ao bar que daqui a duas horas estará uma vez mais cheio
de elementos da classe dos alternativos. No fundo boas pessoas.
Passa já da meia-noite.
A porta do café está fechada. A única luz que ainda persiste é a mehr licht que exijo à consciência para escrever, é aquela que permite que a minha caneta escreva e crie sombra. Vejo-me, eu reflexo fotográfico, envolvido
numa auréola de néones brancos. Beijo-me e deliro. As pernas movem-se, as mãos arrastam-se pelas folhas como pacotes de transmissão de dados de voz em linhas coaxiais perfeitamente dimensionadas
para os encaixotar em processos de nascimento e morte descritos um dia pelo senhor Markov quando estava na sua própria cadeia.
É lindo! Estranho é estas frases brancas serem motivadas apenas pela falta dela. Uma única. A que tive e a que me arrependi de não ter. O desejo é algo
de complexo. A empregada avisa-me que são horas de fechar. Toca a sineta. Um último sacrifício, diz o poeta.
Levanto-me e delicadamente retiro da algibeira um cigarro que ofereço à empregada que me olha com um sorriso que acredito de compreensão. A vontade animal, o misantropo
sente, esgota-se pulso a pulso e nele apenas sobra aquele resíduo, um sorriso obtido dela que lhe disse há dias uma vez mais: estás cada vez mais bonito. Assim, não existem mais jogos nem trigésimos
aforismos da cartilha. A felicidade talvez se resuma a não pensar em jogos limpos ou sujos ou em segredos escondidos ou verdades e mentiras brancas. Respeita o seu segredo, faz que não o conheces.
Sigo a pé. Na rua, o frio incomoda, lembro-me que o Armenia há-de estar quente. Felicidade. O meu funâmbulo tenta equilibrar-se na sua corda porque, lá em baixo,
existe o infinito e a possível explosão. Na praça de táxis, embarcam os clientes sedentos de sexo, cinco contos de réis por quinze minutos.
Penso que o bobo é perfeitamente controlável e só tenho de accionar o pequeno interruptor, implantado em criança na orelha direita após uma infecção.
Como ele está bêbado e pastilhado, vou ter dificuldade em não o deixar cair naquele terceiro estado indeterminado e ambíguo em que o eu ressacado, feliz hoje porque vive alimentando-se de uma imagem
em memória e sempre com a solução na ponta da língua para as situações em que tudo se rompe, ao trabalho ao trabalho e porque haverá sempre Paris, me lembra as mãos cheias
de ossos do condenado misantropo e me assusta.
No entanto, essa imagem não se desliga e tudo o que lhe está relacionado me vem à memória. O meu cérebro apaga-se, sinto que os meus movimentos não
são os mais correctos quando entro num outro café, o mais branco da região.
Serão os comprimidos a fazerem efeito?, será a possível explosão do subsolo? O ódio presente nos olhos do misantropo transmutam-se para o funâmbulo,
o sexo do bobo está igualmente presente nele. Somos todos um e um só.
Peço uma SuperBock e o funâmbulo retira, de dentro de um poço imaginário, um balde de água onde à tona dois bebés conversam ao som de um salmo:
Sto mondo rotondo se crolla su me Sto mondo rotondo se crolla su me. No auge da minha ressaca afirmo que o bobo, vivendo no subsolo, adora o bloqueio. Pergunto-lhe
irónico porque não consegue ele aplicar o cálculo da probabilidade de bloqueio de n circuitos telefónicos ao seu proprio atrofio.
Enquanto me vou apagando do sistema de comunicações e bebendo a segunda Super neste segundo café da noite, decido ligar-lhe, mal ouço o que me diz, ou ela está
a falar por um fio ou sou eu que já estou a ouvir mal e, desatento e desesperançado, delineio as personagens ou identificadores telefónicos desta conversa que correu mal.
Primeira personagem:
Quantas vezes já bloqueaste? 60%, 75%, quantas?
Bastante mais do que a positiva! Responde o bobo sorrindo.
Já alguma vez tentaste sair do bloqueio?, tentando, por exemplo, diminuir o numero n ou generalizar o sistema a uma fila de espera MMinfinito?
Nunca pensei nisso, nunca foi importante. Sempre considerei os bloqueios dos outros mais importantes que os meus. Isso torna-me incapaz de sair da terra,
tipo toupeira velha e gasta, para ultrapassar a lua que tu capturaste. Digo-te que só lhe faltam as esporas para ser um verdadeiro caubói, eu não!, eu só quero ser engenheiro. This sky will cover you when you fall down, this sky will cover you when you fall down.
Segunda personagem:
Porque bebes tu? Porque bebes tu, diz ela às cinco da tarde, desses cálices de Super Bock misturados com Lorenins e Normisons receitados por psicopatas pouco preocupados contigo?
Terceira personagem:
Mentira. Mentira. Os atrofios resolvem-se com psicotropicos e Super Bock. Não! Nada disso é valido! Ela disse: Agarra-te às tuas coisas. Ela repetiu-te: Agarra-te às
tuas coisas. E tu agora queres conservá-la como um teu pertence?
Quarta personagem:
Não. Nunca pensei nela como um objecto da qual pudesse abusar. Faz-me lembrar as frases que se escreviam nas lombadas dos livros do oitavo ano da minha infância: Agitar antes
de abusar. Não, nunca pensei nisso. Com ela não. O problema é que agora, se me agarro somente às minhas coisas, desapareço do planeta, torno-me numa espécie de ser mutante e autista.
Quero voar, quero voar... como Ícaro de encontro ao Sol. Isso não é solução, diz a ressaca que não sabe como ajudar. Eu ao misantropo ofereceria um machado, o que estava em exposição
na loja de antiguidades mas ao funâmbulo não tenho mais asas para oferecer e sabes porquê? Porque, meu amor, ainda gosto de ti e me preocupo com o teu futuro. E quando não gostar mais de ti, quando
me aborrecer de não mais quereres saber de mim, vou... eu vou...
Quinta personagem:
A tua loja, disseste...
Sim, agora trabalho numa livraria de antiguidades...
Numa loja de antiguidades...
Sim, não vejo porquê tanta estupefacção! Contactos. Consegui um emprego das dez às seis. De modo que a loja é, agora, o meu planeta e o meu equilibrio
e a ti só te falta encontrar o teu.
Sexta personagem:
Oito e meia da manhã. Preparo-me para ir trabalhar. Escolho o caminho mais longo que segue junto ao canal e trago comigo o manuscrito que comprei na livraria Cassiber. Uma das personagens
do livro diz que a sua maior desistência foste tu. Diz a personagem que ter desistido de ti talvez tenha sido um sinal que te amei ou que senti paixão.
Rio-me do estilo de telenovela. Afinal, desistir de uma mulher é um acto a assinalar?, é um acto a pensar fazer ou é só para pôr as pessoas a pensar ou
a fazer que pensam? Só se for por uma boa razão, uma excelente razão. Qual foi? Não consegui suportar pedir-lhe ajuda, senti que ela se fartara de mim e que já não lhe dava prazer,
senti que lhe seria um estorvo no seu futuro, abdiquei de algo que estava acima do meu poder. Pela segunda vez, renunciei a altos voos porque tenho pés de barro e resignei-me ao barro, ao chão.
O sol brilha-me nas faces, sigo, tudo me cheira a academismo, penso que pretendes atingir a santidade ou, não será essa a verdade?, pretendes ser justo, fiel, sublime e em
equilíbrio partilhado mas... não passas de um homem. No fundo, não passas de um homem que detesta a humanidade e na qual não vê nem uma só promessa de humanidade. Arrepender-me para
quê de ter perdido segundas oportunidades? A mim, poucos mas deram, deram-me mazé um pontapé no cu.
Sétima personagem:
Ela responde: tens a vida toda à tua frente.
Oitava personagem:
Levanta-te e anda. Olha os barcos dos pescadores, olha as mães que levam os filhos à escola, olha as casas, onde vês tu tristeza?
Digo que gostaria de comprar aqui uma casa, igual às outras, típica como as outras, indistinguível de todas as outras, bonita como as pessoas simples e sem a máscara
com que, às vezes, decidem sair à rua.
Nona personagem :
Detesto a cidade, detesto as pessoas, detesto a sociedade. Estás gasta e cheiras mal.
Décima personagem:
Ela não te quer mais. Tu tambem não. Estás obcecado pela derrota e de, desta vez, teres ficado sozinho para sempre, órfão de vez. Tu só tens esperanca
quando bebes uns copos e ouves Vaya con Dios na sua companhia. De qualquer modo, isso é esperanca suja, ouviste seu bobo?, porque, no fim, te esqueces, ela até bebeu mais do que tu, diz-te que não te quer,
quer apenas ser tua amiga, ela quer que sejas o seu palhacinho. Talvez tudo não passe de um jogo de xadrez.
Décima primeira personagem:
Gostaria que existisse um valor próprio, um sentido, um fim, uma certa honra naquilo que se escreve, oralidade, unicidade, cheiro, Artaud, a mistura dos eus... e ainda Ser.
Décima segunda personagem:
Chego ao Gungunhana e peço um café.
Ainda não compreendo os objectivos a atingir, qual é a tua escada? Os teus planos? Mostraste-me os teus planos para a capa. Tem que ser absolutamente
negra mas de um negro veludo com muito ouro, conterá o símbolo de uma metade de homem, ardente de desejo crucificado e envolto na cor vermelho sangrento, irradiando chamas entre as luas novas ou os eclipses cíclicos
onde ela não está como sempre não esteve, sempre teve medo, serão as aparencias? Que fazer? For I was yours and I am yours and I will be yours till death.
Décima terceira personagem:
É mais facil dizer do que fazer aquilo que se diz e é mais facil escrever que dizer tudo o que se deseja dizer a alguém. Escrever permite parar e pensar em cada palavra,
analisá-la, retirar-lhe a forma ficando a realidade ou retirar-lhe o sentido tornando-se abstracta, uma mera forma poética.
Em suma, esquecer-me das palavras. Escrever permite procurar a melhor metáfora porque o tempo de reacção a uma pergunta é infinito e, sobre este ponto de vista,
escrever não passa de um monólogo de alguém ao espelho com várias vozes e representações de si próprio. Escrever é uma mentira porque é difícil escrever toda a
realidade que se vive, porque não há tempo, porque é difícil de admitir todas as verdades. Por isso, contam-se meias verdades e mentiras brancas. São modos de apaziguar todos os que vivem como parasitas
dentro do Eu, quantas vezes não perturbam outros que nada têm a ver com a realidade onde vivem. O que são as metáforas que se escrevem? Será necessário influenciar os outros? É tão impossível controlar mentalidades e modos de agir nem podemos ter tempo para isso. Nunca acontece.
Um livro não deveria influenciar ninguém ao ponto de vivermos em função dele e vivermos pior. O que será mais importante? O prémio literário ou a sanidade mental? Haverá
incompatibilidade entre sensibilidade e inteligência? Que dizer das minhas opções? O meu eu inicial desapareceu sozinho, transfigurou-se. Eu cá estou, tenho este emprego do qual gosto, ouco rádio,
faço uma data de coisas para aprender que existem seres normais, sensíveis e inteligentes, para que não esqueça o mal que causei e para que R pinte céus menos académicos.
Décima quarta personagem:
Há dias, tive uma revelação quando estava numa barbearia. Só via a minha cabeca e o belo corpo da cabeleireira ruiva. A minha
cabeça parecia um disco voador castanho escuro com uma pequena franja loura na frente. Lembrei-me logo do que aquilo queria dizer. Ela disse: Like this you look like a priest. Eu digo: or like a saint.
Décima quinta personagem:
Penso que se escrever que um tiro se ouvirá numa prisão, eu poderia provar que, afinal, sou o pai do meu próprio ser.
Décima sexta personagem:
Eu tentei comprar a felicidade, estou a escrever um livro. Arrependi-me das minhas ambições porque perdi pessoas a quem não dei atenção. Só faltou
matar acidentalmente alguem. Nein!
Acordo. Tenho a vaga sensação de que me dirigi ao balcão para pedir o telefone. A memória falha-me. Não me lembro de dizer uma única palavra mas
lembro dum flash e de ficar com a ideia de uma frase vinda do outro lado do fio dizendo: fica bem. O Armenia?, devo lá ter estado mas não me recordo. Estou por cima dos lençóis fechados, meio despido
meio vestido e sem perceber, sem saber de nada, nada do que fiz e como aqui cheguei.
Ao indagar do caso, dizem-me ter pedido um chá às duas da manhã e ter estado no Armenia sentado numa mesa sem abrir a boca, tentaram falar comigo mas eu não abri a boca
e pensaram que eu estava pedrado de charros. Bela desculpa, não insistiram porque pensaram que eu tinha fumado um charro e não estava para ninguém, estava num filme qualquer não me apetecendo falar com ninguém e não insistiram. A minha resposta foi dizer
uma verdade incompleta: estava muito tenso e, por isso, tinha engolido um comprimido com cerveja enquanto estudava no café.
Riram-se, acharam piada talvez. Que loucura altamente!
É já demasiado tarde.
Última personagem:
WHY?
'
Claudio Mur
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