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domingo, 28 de fevereiro de 2021
«Poética» de Heberto Padilla
sábado, 27 de fevereiro de 2021
MI admirando a flor
«MI admirando a flor»
óleo sobre tela
40cm poor 40cm
2021
ZMB
A minha sobrinha na candura dos seus vinte e nove meses.
A minha irmã já teve que arranjar uma botelha com água para colocar as flores que a MI admira.
Os seus pais não dizem mas digo eu, todo babado: vai ser gloriosa!
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021
O caminho do Tao
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Sean, como se adivinhasse tudo isto, pergunta assustado quando voltarei eu cá. Respondo que talvez no próximo fim-de-semana, mas digo-o com tal abandono, com a consciência de estar a mentir que digo tchau e dirijo-me para a porta ao fundo do corredor.
Ouco Sean chamar-me. Estou há dois minutos a tentar passar pelas duas bicicletas estacionadas no corredor, tentando fazer com que elas não caiam barulhentamente. Volto à cozinha. Sean mostra-me a lata de Pepsi, eu rio-me e retiro do bolso da gabardine a lata de coca-cola que ele tinha comprado. Sean ri-se e diz-me Good luck!
Sem comentários, por favor.
Desembaraço-me das bicicletas e saio pela porta aberta. Joe esta cá fora limpando os vidros da janela. Diz qualquer coisa como are you going to see the jazz, diz jazz no seu estilo rasta. Hoje, sem mais comentários por favor, vou para casa a pé.
Penso que num dia normal, o percurso duraria meia hora. Hoje demorará muito mais entre ameaças de chuva, desespero, ameaças de desistência disfarçadas momentaneamente pelo descanso numa paragem de autocarro, poderia simplesmente esperar o autocarro mas não, prefiro sofrer e caminhar até casa, tenho de me sentir vivo e descobrir o caminho, descobrir esta paisagem em nada semelhante àquela maravilha no alto de um monte com o nevoeiro abrindo para outros montes e paisagens de turfa e rebanhos de ovelhas pastando e pessoas falando da àgua da vida, o whisky. Foi pena eu não pensar na logística dessas caminhadas de Domingo pelo monte e, por isso, terem deixado de me convidar. A volta era sempre feita em carro particular, eu nunca levava calçado alternativo e, da última vez, a terra estava húmida, sujei-lhes os tapetes e o interior do carro, foi pena, talvez hoje levasse pelo menos dois sacos de plástico e os calçasse por cima das botas. Sarah foi comigo na primeira caminhada, levou Sven.
O sueco Sven e a sua namorada francesa Sarah lêem livros sobre o caminho do Tao. Na sua festa de aniversário, ela já com os copos emociona-se e acaricia-me o rosto, diz-me que sou bonito, enquanto Sven olha, não para ela e para a sua talvez expressão de free love, olha para mim intrigado pela minha não-reacção, talvez a ética: não comerás a namorada do teu amigo, e tal, enquanto a sua amiga Michelle me diz na manhã seguinte à festa enquanto tomamos os quatro um porto com limão: tu es un garçon, e tem razão, deve estar a referir-se a Sarah, eu não compreendi ou não quis compreender, talvez Sven tenha mesmo concordado em abdicar de Sarah pelo menos durante um futuro beijo, uma futura e única noite de capricho, para consolidar-lhes o namoro talvez, e eu não quis, não quis Sarah nem de graça e um homem que não serve a mulher quando ela se mostra disponível é um... insert tag here, desculpa: os rapazes têm sentimentos de culpa que ainda não dissolveram, por isso deixámos de ser animais para sermos morais em potência, temos impulsos e não devemos reprimir os impulsos, «deves libertar a tua mente, se fizeres isso descobrirás a verdade ou a paranóia de uma verdade escondida, pode dar para os dois lados». O pensamento é moral. O que nos distingue do instinto animal é a moral, mesmo o pensamento ascético é uma má e distorcida moral.
Digo que te compreendo, as tuas amigas rejeitam-te ou não te ligam porque pensam que tu lhes vais roubar o marido ou o namorado e isto quando são eles próprios, os namorados, que te fazem convites, e tu dizes: eu não quero ele, vou dizer tudo à minha amiga, vou contar... e elas viram-se contra ti, chamam-te mentirosa e ladra. Comigo às vezes é igual, as namoradas dos meus amigos sorriem-me de um certo modo que me leva à loucura de uma frase mais audaz e até prometedora de um futuro qualquer, com ela, comigo, pensam elas, o que faz que o único dealbar da situação é haver zangas entre o casal, acabarem relações, ficar cada um dos três para seu lado, ele a odiar-me, ela a achar-me incompetente, e eles trocando os restos da vida em comum. Tu ao menos ainda ganhas uns presentes corrompidos mas eu chucho sempre no dedo e só te tenho a ti, aí bem longe.
Eu deveria ir viver para Sligo onde, dizem algumas pessoas, as pessoas lá são looper, calão para maluco. Aliás, que pensar do misterioso gajo dos divinos Dead Can Dance, ele que vive numa igreja? Eu devia apanhar a camioneta e ir-lhe lá bater à porta e mostrar-lhe como prova de admissão o facto de já não ter medo e de o poder provar, diria: olhe senhor, eu estava com eles a passear na relva das escarpas de Cove no Domingo de tarde no final do aniversário, já descíamos o declive os quatro e eu olhei em frente, via-se o mar mas não se via a praia, a relva acabava a quinze metros e eu começei a correr, pensei talvez je suis un garçon un garçon vou-vos provar que sou grande, quando atingi o abismo saltei e aterrei noutro socalco natural dois metros mais abaixo, não tive medo de só haver ar e rochas lá embaixo, afinal eu havia há muito escrito um poema semelhante onde me sentava olhava e atirava-me, a água a cem metros de fundura, aterrei e olhei para trás e vi Sven fazendo o mesmo que eu, ele viu que eu consegui e, para não ficar atrás, fez o mesmo, atirou-se ao desconhecido e aterrou em segurança, diga-me lá, senhor Perry, não me aranja aí um lugar onde eu possa estudar as iluminuras do livro de Kells?, eu varrro-lhe o chão, qualquer coisa assim...
Fuckin’ hell yeah.
Quando chego finalmente a casa para lá de Douglas, em Rochestown, levo a mão ao bolso, olho para a chave e reparo que ela está torta. Porquê?!
Tento endireitá-la para abrir a porta e ela acaba por se partir nas minhas mãos. Porquê?!
Para terminar o que me parece mais um produto de alucinação, bato à porta e Tony atende, pergunta if I am ok, digo que sim, que apenas perdi a chave de casa. Vou direito ao quarto no primeiro andar, deito-me no colchão estendido no chão, coloco os lençóis por cima, coloco a cabeça na improvisada almofada e aos poucos vou esquecendo, vou adormecendo, take it easy boy, you're gonna make it.
Reparo que só consigo verdadeiramente dormir se me sentir em segurança. Aqui, sinto-me seguro. Apesar de tudo, apesar de estar afastado da civilização e do mundo real, este é o meu espaço, aqui neste abrigo temporário ou em Sligo.
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John Moore
quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021
Kenaz: Mother Destruction
domingo, 21 de fevereiro de 2021
Ora, porque tenho vontade!
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-- Tazaver, nada mudou, continua tudo igual, você sempre a viver em casa-apartamento com várias divisões, uma banheira que para mim seria um jacuzi, cozinha equipada, bom sistema de som e ecrâ de metro e vinte hd, tudo do melhor mas sem um tostão, vivem do fiado. E eu, em casas velhas mas ainda assim o dinheiro vai chegando para o vício de um disco de vez em quando.
-- Vc não precisa de mais discos!
-- Ó, há sempre um que falta, mas não era isso que eu queria dizer, o que eu queria dizer é que nada mudou, eu continuo remediado, é claro que agora só ouço pássaros e não violência doméstica entre vizinhos, mas você continua escrava...
-- Eu hein...
-- É, primeiro era escrava conjugal mas com cartão de crédito e agora é escrava de trocos contados.
-- Pô, sabe que eu ontem me chateei com ele? Pois sim, ele dá-me sempre dinheiro certo para o supermercado mas às vezes não está certo, dá dinheiro a menos, e eu ontem estava no caixa a pagar e aconteceu! Cheguei a casa e disse: a partir de agora vai você às compras. Mas escrava pois sim, o que vale é que tenho tu.
-- Dá-me um beijinho...
Ela sorri e há quase uma transmissão de pensamento, eu sorrio e avanço, mas ela desvia a cara, não devia ter pedido, devia ter avançado de surpresa quando ela disse tu e sorriu.
-- Dá lá um beijinho!
Ela sorri e é como se estivesse indecisa, vai para dizer qualquer coisa mas expira apenas e não conclui a palavra, ri-se, suspira, ela quer dizer mas não diz.
-- Diz, mulher, que não te ardam os pensamentos nos pulmões, sabes que comigo podes dizer tudo, aqui estás a salvo.
-- É, ainda sou desejada e já estou quase nos cinquenta...
-- Sim, ainda é desejada mas você já não deseja. Só quando a apanham distraída ou borracha.
-- Não desejo? Porque diz isso?
-- Podia desejar-me a mim que a conheço há uma data de verões, sou seu devoto fiel.
-- É fiel é?
-- Sim, até hoje ainda não houve ninguém depois de você...
-- E no entanto há sete mulher para um homem hein?
-- Sim mas até hoje ainda não apareceu ninguém melhor que você e quando aparecer...
-- Eu vou matA vc!
-- eheheh matar?, atão mas porquê?
-- Ora, porque tenho vontade!
-- Ah atão tábem, se é só porque tem vontade, está bem. As mulheres geralmente querem matar os homens, especialmente as baixinhas, estão sempre a levantar o punho pra ver se chegam ao pescoço do homem eheheh
-- Tá calado. Põe música. Põe a nossa música.
-- Ok.
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anónim@s do século xxiii
quinta-feira, 18 de fevereiro de 2021
Me as San Tonito
«Me as San Tonito»
óleo sobre tela
50cm por 40cm
2007 - 2021
Este foi um dos três santinhos
https://zmb-mur.blogspot.com/2014/07/tres-santinhos.html que eu ofereci à loja de ajuda aos pobres onde a minha mãe colabora,
e que ela me devolveu o ano passado após mais de uma década na parede
sem ninguém lhes achar amor e os querer levar para casa.
A minha mãe diz que uma das razões eram não só a fraca técnica mas também
o facto de não se ver a cabeça toda do santo antónio.
A minha mãe disse ou pediu que eu os melhorasse e eu respondi:
«melhorar pra quê? se ninguém os compra!»
De modo que resolvi javardar o santo ponto final
terça-feira, 16 de fevereiro de 2021
Prefiro ser cinzas a pó
«Prefiro ser cinzas a pó! Prefiro que a minha chama se extinga com um brilho luminoso, em vez de ser abafada pela podridão. Prefiro ser um magnífico meteoro, em que cada átomo meu resplandeça, a um planeta eterno e adormecido. A função do Homem é viver, não é existir.»
segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021
Alguém sente curiosidade em saber quem ela é
Pensamento do dia
domingo, 14 de fevereiro de 2021
Festa de São Valentim
«Festa de São Valentim»
desenho a grafite e caneta bic sobre
papel de 300grsm grão grosso
50cm por 70cm
2021
ZMB
sábado, 13 de fevereiro de 2021
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
Corticeira, the pinturafilme
video description of a painting in oil over wood by ZMB, 2021
the audio is taken from ZMB's personal collection of records from:
Cassiber on The beauty and the beast Scanner on Scanner 1 Gonçalo F Cardoso on Impressões de uma ilha, with snippets from two tracks Nico on Desertshore Cranioclast with a compilation track L' Orange on The mad writer
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
My fake sister from Brazil is very real
Emma Goldman diz:
pede trabalho. se não to derem, pede pão. se não te derem nem trabalho nem pão,
toma o pão.
domingo, 7 de fevereiro de 2021
sábado, 6 de fevereiro de 2021
O desenho não valia nada
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Rob pergunta se alguém está a ter visões, todos respondem negativamente. Então, como eu fui o que mais o acompanhou, pergunta-me se estou a ter visões, aceno que não.
Duma vez que comi cogumelos ao lado de Rob, ele estava sentado numa poltrona, olhei e ele pareceu suspenso, pareceu um daqueles papas majestáticos que tanto obcecaram Francis Bacon. Suspenso. Espécies de linhas brancas formavam uma espécie de nevoeiro, ou aura turva, uma nuvem onde talvez ele estivesse a desaparecer, suspendendo-o acima dos padrões geométricos do chão alcatifado. Rob olhava-me com a sua cara pedrada de ganza e, sorrindo sem compreender, perguntava-me o que se passava, are you ok, man?
Que dizer disto?, Bacon dissera que as drogas não o favoreciam ou não o influenciavam no seu trabalho, mas ele também disse que nunca fizera um desenho preparatório e, mais tarde, esta afirmação veio a ser posta em causa pela descoberta de «uns papeis».
Há trés ou quatro meses, eu próprio fizera um desenho que pensei vir a transformar num quadro e mostrei-o ao John, o meu colega de apartamento da altura, que olhou e perguntou se eu conhecia Henry Moore, eu disse que não e John disse que Henry Moore poderia ser a minha gestalt. Neste caso de eu alucinar um Rob papa, esta hipótese de gestalt não se punha porque, de facto, eu conhecia um pouco do trabalho do Francis Bacon.
Era eu um Bacon olhando uma alucinação, a minha tela grandiosa ou era apenas uma projecção do que a mente gostaria que o meu corpo fosse, um papa, um pintor ou o proprio Rob? Não sei, nessa noite o outro Rob vira um porco na cara do Sean.
Agora, na sala deste apartamento, o meu taparuére de cogumelos está no fim, os rapazes continuam a falar, um fala de mulheres mas fala de um modo algo brutal, machista: the bitches the bitches, sem respeito, não chego a perceber uma única frase, acordo em momentos aleatórios e ouço the bitches... the bitches... and so on and so on.
São horas de voltar. Restam dois deles após o rapaz, que mora ali, se ter ido deitar. Decidem apanhar um táxi para Bishopstown. Eu, entretanto antes de sair com eles, tenho que ir à casa de banho.
A porta fecha-se sozinha, olho para a sanita e toda a geometria me parece alterada, começo a mijar e o chão está cheio de minúsculas pintas de várias cores, reparo que elas se começam a mexer, a andar como se fossem pequenos vermes.
Rio-me, é mesmo verdade, está a acontecer, deixo de olhar, continuo a rir, mija depressa John.
A luz, neste momento, é desligada e eu sinto algum medo por ficar alucinando no escuro mas compreendo que é tempo de sair, eles desligaram a luz para sair de casa, eu tenho de sair deste medo para não ficar fechado dentro de uma casa estranha tendo alucinações.
Então, abro a porta e vejo que Rob é o último a sair, dizem-me que pensavam que eu já tinha saido e assim haviam desligado a luz.
Rob olha-me e assusta-se, pelo menos assim parece, não esperava que alguém saisse de um canto escuro. Hey wait for me ou qualquer outro grunhido e fecho a porta de casa atrás de mim.
Seguimos pelo corredor e Rob volta a olhar para trás como se assustado comigo, com o meu ser, o que verá ele em mim neste momento?, que alucinação?, não devo parecer a pessoa mais sã deste grupo. Recapitulando: não tomo banho há uma semana, não me alimento decentemente, estou sem casa ou vivo a maior parte do tempo em casa dos outros, tenho a barba comprida, a gabardine suja, esta uso-a todo o dia desde que a comprei por alturas do último Natal, carrego sempre a mesma mochila. A imagem de um ser assassino ou a de um vagabundo há muito que deixou de ser uma imagem, uma mentira, a psicofisiologia transparece na imagem, pelo menos é isso que me vem à cabeça ao devolver o olhar a Rob.
Eu estou sempre a falar de mim masé porque estou a viver, a conhecer quem eu sou e como comunico com quem estou, e é, às vezes, ao olhar para os outros e ver o modo como interagem comigo que eu descubro quem eu sou a cada momento, sum ergo cogito.
Uma vez, quando vinha pelo canal em direcção a casa, após o trabalho numa tarde de Inverno escuro, um homem aproximou-se de mim e disse-me, ou melhor, gritou repetindo e declarando que era do IRA, não lhe liguei muita importância e continuei a andar, quando cheguei a casa comentei com Evan e ele observou justamente que nunca alguém diria pertencer a uma sociedade secreta e considerada terrorista, seria deixar cair o disfarce e habilitar-se a ser preso. Talvez não passasse de um exibicionista com algumas paintes a mais que talvez estivesse a pedir uma moeda.
Outra vez, sonhei que caminhava a noite numa rua estreita com lojas no centro da cidade. Um homem com uma faca aparece e quer roubar-me. No meu sonho digo: kill me kill me what are you waiting for?, kill me. Ele, talvez impressionado com aquelas palavras, alivia a pressão e, então, retiro-lhe a faca, vejo medo nos seus olhos, seria tão fácil desfigurá-lo... deixo-o, continuo a andar e deito a faca ao rio Blackwater.
Outra vez, fiz um auto-retrato anatomicamente incorrecto e perguntei a Dan se ele reconhecia a personagem, ele disse não mas que o podia prender.
Nessa noite aprendi duas coisas importantes: ele poderia estar a mentir mas se eu tivesse a capacidade de desenhar correctamente a realidade, nunca ele me teria dito o que disse porque me reconheceria. Apesar de tudo, é capaz de corresponder à minha realidade; se tivesse mostrado a alguém que percebesse alguma coisa de arte, dir-me-ia provavelmente que a técnica daquele desenho lhe fazia lembrar este ou aquele pintor, ou então, diria que o desenho não valia nada.
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John Moore
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
Mesmo de dia sonhava mar assim alto desta altura
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Canoa, parar nos pés ainda não está e já miúdo avançar mar dentro. No olhar, mais-velho tem receio no primeiro, no despois habituação e vê rindo neto é peixe no mar.
Contentamento dá para pular, gesto largo, gritar maju dentes alegres, Pai Zé! Pai Zé! Pai Zé!
Cada manhã é assim. Velho vem vindo ximbicando musculosamente petu grande nas águas cada cadavez menos irrequietas sem longe da praia. Figura do pescador e da canoa é mais vista e movimento ritimado dele de se baixar e se levantar, cantiga no meio, também. Marulhar das ondas é vento quem põe nos ouvidos.
Quando rede é cardume, desembarca da embarcação e com o neto, ali mesmo já areias molhadas, vendem peixe. É ver então quitandeiras se pegarem na disputa e a caírem no meio dos peixes ainda traquinos.
Na tarde, muhehe brisante refrescando corpos, ventando nas cassuarinas, canoa nos pés fronteira do mar, massuicas mufetando peixe, sentados na areia pescadores falam conversas deles, enquanto põem ngúia nos remendos e mangonham olhar no mar.
- Pai Zé, amanhã me levas?
Mesmo de dia sonhava mar assim alto desta altura. Muitos kwanzas se juntaram um dia e então assim apareceu o mar -- foi assim que me explicaram o aparecimento do mar. Avô nunca lhe respondia sim está bem. Ora lhe sorria só e quando estava atrapalhado no serviço não lhe respondia.
Pai Zé cospe longe, arremata mais um nó na rede e fala:
-- Sim, amanhã vou te levar no mar!
No coração do neto está falar é mentira e por isso outravez: «Amanhã me levas?». Mais-velho repete sim. Miúdo berrida notícia nos avilos. Cada noite, Pai Zé saindo kamene-mene madrugada fora, pés arrastando areal, neto lhe espreitava tapando tosse.
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, páginas 81 - 82
Boaventura Cardoso
em
«O fogo da fala»
edição Edições 70
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
O seu troco. Volte sempre.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2021
Os caçulas da guarda avançada
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Acabei nesse dia, por levar o caçula a minha casa, fomos de autocarro. Ele agora vai dizendo que é cantor mas precisa de uma autorização de residência, e para isso precisa de um trabalho.
Sim, estás a pensar bem, arranja um trabalho, faz por te correr bem o dia de trabalho e, depois, ao fim do dia chega a casa e trabalha na tua arte, faz um verso, uma rima, canta, desenvolve a tua arte.
Ele pergunta, ao ver que eu pinto, ele pergunta o que eu acho do Van Gogh.
Ó!, era uma pessoa triste, vivia atormentado porque não gostava de si, acabou por se matar, e o mais engraçado: não vendeu um único quadro em vida, foi o irmão que lhe guardou os quadros, eles escreviam-se por carta postal, o irmão enviava dinheiro, o Van Gogh enviava quadros, foi um ser que viveu na humildade, estudou para padre, abandonou porque não tinha o que queria, ambicionava outras coisas, foi viver para o campo, cavou, colheu, desenhou os comedores de batatas, e pintou o campo, o que via, foi um grande pintor, mas teve coisas difíceis como cortar a orelha e oferecer a orelha à namorada que já não o queria.
É, ri-se o caçula, é quase de louco.
Sim, por isso, ele era diferente das pessoas à sua volta, estas querem um trabalho, uma casa, uma família um carro, e lutam por isso, e obtendo-o então descansam, vivem todos os dias essa vida e sentem-se bem. Mas há quem esse ritmo de vida não o preencha, é preciso algo mais, e aí surge a arte, a minha pintura, o teu canto, até guardar selos pode ser um escape, imagina mostar o livro e dizer: este é de Portugal, aquele é da Rússia, estoutro é duma carta de uma amiga na Irlanda, hein.
Ele ri-se concordando. Falamos também de tribalismo e eu reparo que os caçulas são todos urbanos e os que os une é a língua portuguesa, e não querem saber da cultura antiga, da cultura dos seus avós, têm medo dela.
Bruxaria parece ele dizer, fala de uma senhora que tem um salão cheio de esculturas em pau, com máscaras, ele parece ter medo ou, pelo menos, renegar o que os modernos chamam de superstição.
Sim, vocês enterram as máscaras. Elas têm uma função ritual.
Falo-lhe, no entanto, da cultura antiga das plantas e de como é bom conhecer alguém que saiba preparar um chá quando nos sentimos mal, uma pessoa que conheça o mundo vegetal.
Ele pergunta-me pelos ciganos, eu digo: sim, os ciganos são como essa senhora negra de quem tu falas, os ciganos são como os negros que foram escravizados para o Brasil e que alguns se libertaram e vivem em comunidades, em quilombos e que hoje formam o povo dos sem-terra.
Kilombos, sim.
Mas os ciganos são abaixo dos escravos e dos quilombolas, os ciganos também não têm terra, eles foram expulsos da Índia há mil anos ou coisa assim, na Índia há as castas como no ocidente há as classes: o operário, o intelectual, o comerciante, o político, o guarda... bom. Na Índia há as castas e os ciganos eram os párias, abaixo do escravo. Eles têm desde que expulsos vindo para Ocidente, mas têm a sua própria língua, o seu conhecimento da terra, mas nada está escrito. É como vós, não há um dicionário de kimbundu pois não?
Não, acho que não.
Por isso, os ciganos acabam por falar a língua dos países que os acolhem. E têm os seus rituais: cantam e tocam. Não fazem máscaras que eu saiba e os seus deuses acabam por ser aqueles do país onde estão. Tudo tem um ritual, a ciência explica quase tudo, mas há coisas que ela não consegue explicar. Já assististe a alguma missa?
Ele diz meio indeciso que já e eu faço-lhe notar que mesmo naquela rodela de trigo que põem na boca do crente na missa... nisso há um ritual, é como as vossas máscaras, nós temos cristos em cruzes, outros têm alá.
Fumámos dois charros nesta conversa, e depois ele despede-se, tem de ir falar com alguém que lhe prometeu um trabalho. Eu reparo que ele se sente um pouco contrafeito, eu pertenço ao mundo antigo e ele ouve-me como a um professor que lhe fala de religião. Os caçulas da quarda avançada recusam toda a religião e tribalismo. Fazem bem mas deveriam conhecer a história dos povos.
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John Moore