quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O caminho do Tao

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Sean, como se adivinhasse tudo isto, pergunta assustado quando voltarei eu cá. Respondo que talvez no próximo fim-de-semana, mas digo-o com tal abandono, com a consciência de estar a mentir que digo tchau e dirijo-me para a porta ao fundo do corredor.

Ouco Sean chamar-me. Estou há dois minutos a tentar passar pelas duas bicicletas estacionadas no corredor, tentando fazer com que elas não caiam barulhentamente. Volto à cozinha. Sean mostra-me a lata de Pepsi, eu rio-me e retiro do bolso da gabardine a lata de coca-cola que ele tinha comprado. Sean ri-se e diz-me Good luck!

Sem comentários, por favor.

Desembaraço-me das bicicletas e saio pela porta aberta. Joe esta cá fora limpando os vidros da janela. Diz qualquer coisa como are you going to see the jazz, diz jazz no seu estilo rasta. Hoje, sem mais comentários por favor, vou para casa a pé.

Penso que num dia normal, o percurso duraria meia hora. Hoje demorará muito mais entre ameaças de chuva, desespero, ameaças de desistência disfarçadas momentaneamente pelo descanso numa paragem de autocarro, poderia simplesmente esperar o autocarro mas não, prefiro sofrer e caminhar até casa, tenho de me sentir vivo e descobrir o caminho, descobrir esta paisagem em nada semelhante àquela maravilha no alto de um monte com o nevoeiro abrindo para outros montes e paisagens de turfa e rebanhos de ovelhas pastando e pessoas falando da àgua da vida, o whisky. Foi pena eu não pensar na logística dessas caminhadas de Domingo pelo monte e, por isso, terem deixado de me convidar. A volta era sempre feita em carro particular, eu nunca levava calçado alternativo e, da última vez, a terra estava húmida, sujei-lhes os tapetes e o interior do carro, foi pena, talvez hoje levasse pelo menos dois sacos de plástico e os calçasse por cima das botas. Sarah foi comigo na primeira caminhada, levou Sven.

O sueco Sven e a sua namorada francesa Sarah lêem livros sobre o caminho do Tao. Na sua festa de aniversário, ela já com os copos emociona-se e acaricia-me o rosto, diz-me que sou bonito, enquanto Sven olha, não para ela e para a sua talvez expressão de free love, olha para mim intrigado pela minha não-reacção, talvez a ética: não comerás a namorada do teu amigo, e tal, enquanto a sua amiga Michelle me diz na manhã seguinte à festa enquanto tomamos os quatro um porto com limão: tu es un garçon, e tem razão, deve estar a referir-se a Sarah, eu não compreendi ou não quis compreender, talvez Sven tenha mesmo concordado em abdicar de Sarah pelo menos durante um futuro beijo, uma futura e única noite de capricho, para consolidar-lhes o namoro talvez, e eu não quis, não quis Sarah nem de graça e um homem que não serve a mulher quando ela se mostra disponível é um... insert tag here, desculpa: os rapazes têm sentimentos de culpa que ainda não dissolveram, por isso deixámos de ser animais para sermos morais em potência, temos impulsos e não devemos reprimir os impulsos, «deves libertar a tua mente, se fizeres isso descobrirás a verdade ou a paranóia de uma verdade escondida, pode dar para os dois lados». O pensamento é moral. O que nos distingue do instinto animal é a moral, mesmo o pensamento ascético é uma má e distorcida moral.

Digo que te compreendo, as tuas amigas rejeitam-te ou não te ligam porque pensam que tu lhes vais roubar o marido ou o namorado e isto quando são eles próprios, os namorados, que te fazem convites, e tu dizes: eu não quero ele, vou dizer tudo à minha amiga, vou contar... e elas viram-se contra ti, chamam-te mentirosa e ladra. Comigo às vezes é igual, as namoradas dos meus amigos sorriem-me de um certo modo que me leva à loucura de uma frase mais audaz e até prometedora de um futuro qualquer, com ela, comigo, pensam elas, o que faz que o único dealbar da situação é haver zangas entre o casal, acabarem relações, ficar cada um dos três para seu lado, ele a odiar-me, ela a achar-me incompetente, e eles trocando os restos da vida em comum. Tu ao menos ainda ganhas uns presentes corrompidos mas eu chucho sempre no dedo e só te tenho a ti, aí bem longe.

Eu deveria ir viver para Sligo onde, dizem algumas pessoas, as pessoas lá são looper, calão para maluco. Aliás, que pensar do misterioso gajo dos divinos Dead Can Dance, ele que vive numa igreja? Eu devia apanhar a camioneta e ir-lhe lá bater à porta e mostrar-lhe como prova de admissão o facto de já não ter medo e de o poder provar, diria: olhe senhor, eu estava com eles a passear na relva das escarpas de Cove no Domingo de tarde no final do aniversário, já descíamos o declive os quatro e eu olhei em frente, via-se o mar mas não se via a praia, a relva acabava a quinze metros e eu começei a correr, pensei talvez je suis un garçon un garçon vou-vos provar que sou grande, quando atingi o abismo saltei e aterrei noutro socalco natural dois metros mais abaixo, não tive medo de só haver ar e rochas lá embaixo, afinal eu havia há muito escrito um poema semelhante onde me sentava olhava e atirava-me, a água a cem metros de fundura, aterrei e olhei para trás e vi Sven fazendo o mesmo que eu, ele viu que eu consegui e, para não ficar atrás, fez o mesmo, atirou-se ao desconhecido e aterrou em segurança, diga-me lá, senhor Perry, não me aranja aí um lugar onde eu possa estudar as iluminuras do livro de Kells?, eu varrro-lhe o chão, qualquer coisa assim...

Fuckin’ hell yeah.

Quando chego finalmente a casa para lá de Douglas, em Rochestown, levo a mão ao bolso, olho para a chave e reparo que ela está torta. Porquê?!

Tento endireitá-la para abrir a porta e ela acaba por se partir nas minhas mãos. Porquê?!

Para terminar o que me parece mais um produto de alucinação, bato à porta e Tony atende, pergunta if I am ok, digo que sim, que apenas perdi a chave de casa. Vou direito ao quarto no primeiro andar, deito-me no colchão estendido no chão, coloco os lençóis por cima, coloco a cabeça na improvisada almofada e aos poucos vou esquecendo, vou adormecendo, take it easy boy, you're gonna make it.

Reparo que só consigo verdadeiramente dormir se me sentir em segurança. Aqui, sinto-me seguro. Apesar de tudo, apesar de estar afastado da civilização e do mundo real, este é o meu espaço, aqui neste abrigo temporário ou em Sligo.

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John Moore

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