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Acabei nesse dia, por levar o caçula a minha casa, fomos de autocarro. Ele agora vai dizendo que é cantor mas precisa de uma autorização de residência, e para isso precisa de um trabalho.
Sim, estás a pensar bem, arranja um trabalho, faz por te correr bem o dia de trabalho e, depois, ao fim do dia chega a casa e trabalha na tua arte, faz um verso, uma rima, canta, desenvolve a tua arte.
Ele pergunta, ao ver que eu pinto, ele pergunta o que eu acho do Van Gogh.
Ó!, era uma pessoa triste, vivia atormentado porque não gostava de si, acabou por se matar, e o mais engraçado: não vendeu um único quadro em vida, foi o irmão que lhe guardou os quadros, eles escreviam-se por carta postal, o irmão enviava dinheiro, o Van Gogh enviava quadros, foi um ser que viveu na humildade, estudou para padre, abandonou porque não tinha o que queria, ambicionava outras coisas, foi viver para o campo, cavou, colheu, desenhou os comedores de batatas, e pintou o campo, o que via, foi um grande pintor, mas teve coisas difíceis como cortar a orelha e oferecer a orelha à namorada que já não o queria.
É, ri-se o caçula, é quase de louco.
Sim, por isso, ele era diferente das pessoas à sua volta, estas querem um trabalho, uma casa, uma família um carro, e lutam por isso, e obtendo-o então descansam, vivem todos os dias essa vida e sentem-se bem. Mas há quem esse ritmo de vida não o preencha, é preciso algo mais, e aí surge a arte, a minha pintura, o teu canto, até guardar selos pode ser um escape, imagina mostar o livro e dizer: este é de Portugal, aquele é da Rússia, estoutro é duma carta de uma amiga na Irlanda, hein.
Ele ri-se concordando. Falamos também de tribalismo e eu reparo que os caçulas são todos urbanos e os que os une é a língua portuguesa, e não querem saber da cultura antiga, da cultura dos seus avós, têm medo dela.
Bruxaria parece ele dizer, fala de uma senhora que tem um salão cheio de esculturas em pau, com máscaras, ele parece ter medo ou, pelo menos, renegar o que os modernos chamam de superstição.
Sim, vocês enterram as máscaras. Elas têm uma função ritual.
Falo-lhe, no entanto, da cultura antiga das plantas e de como é bom conhecer alguém que saiba preparar um chá quando nos sentimos mal, uma pessoa que conheça o mundo vegetal.
Ele pergunta-me pelos ciganos, eu digo: sim, os ciganos são como essa senhora negra de quem tu falas, os ciganos são como os negros que foram escravizados para o Brasil e que alguns se libertaram e vivem em comunidades, em quilombos e que hoje formam o povo dos sem-terra.
Kilombos, sim.
Mas os ciganos são abaixo dos escravos e dos quilombolas, os ciganos também não têm terra, eles foram expulsos da Índia há mil anos ou coisa assim, na Índia há as castas como no ocidente há as classes: o operário, o intelectual, o comerciante, o político, o guarda... bom. Na Índia há as castas e os ciganos eram os párias, abaixo do escravo. Eles têm desde que expulsos vindo para Ocidente, mas têm a sua própria língua, o seu conhecimento da terra, mas nada está escrito. É como vós, não há um dicionário de kimbundu pois não?
Não, acho que não.
Por isso, os ciganos acabam por falar a língua dos países que os acolhem. E têm os seus rituais: cantam e tocam. Não fazem máscaras que eu saiba e os seus deuses acabam por ser aqueles do país onde estão. Tudo tem um ritual, a ciência explica quase tudo, mas há coisas que ela não consegue explicar. Já assististe a alguma missa?
Ele diz meio indeciso que já e eu faço-lhe notar que mesmo naquela rodela de trigo que põem na boca do crente na missa... nisso há um ritual, é como as vossas máscaras, nós temos cristos em cruzes, outros têm alá.
Fumámos dois charros nesta conversa, e depois ele despede-se, tem de ir falar com alguém que lhe prometeu um trabalho. Eu reparo que ele se sente um pouco contrafeito, eu pertenço ao mundo antigo e ele ouve-me como a um professor que lhe fala de religião. Os caçulas da quarda avançada recusam toda a religião e tribalismo. Fazem bem mas deveriam conhecer a história dos povos.
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John Moore
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